Aquando da sua tomada de posse, em janeiro do ano passado, disse que não queria ser uma
espécie de comentador desportivo da área da Saúde. Mas queixa-se de que os problemas lhe caíram em cima com o agudizar da crise. Com isso justifica a sua presença assídua na comunicação social. Polémico, José Manuel Silva, de 53 anos, bastonário da Ordem dos Médicos, divide a sua vida entre Lisboa e Coimbra, num movimento diário de pêndulo ferroviário. “Com três filhos pequenos, não posso deixar de voltar a Coimbra”, afirma. Médico hospitalar e professor universitário na cidade do Mondego, suspendeu o ensino e resumiu a prática clínica a um dia por mês, para não se desligar dos doentes.
Falou à VISÃO no rescaldo da apresentação de um Orçamento do Estado que contempla 7.800 milhões de euros para o Serviço Nacional de Saúde (SNS), o que, a retirar-se o efeito de verbas extraordinárias para o pagamento, em 2012, de dívidas atrasadas, representa um aumento de meio ponto percentual. Ou seja, o SNS terá o mesmo dinheiro para se governar.
Como analisa o orçamento que acaba de ser proposto para o setor da Saúde?
Indica que as dificuldades se vão manter e que é preciso continuar a racionalizar e a gerir rigorosamente o SNS para que seja possível melhorar a capacidade de resposta.
Gostaríamos que tivesse aumentado, mas assinalamos como positivo o facto de não haver uma redução. Vemos com alguma preocupação a necessidade de cortes suplementares, mas reconhecemos que há espaço para poupanças, nomeadamente através da agilização de uma
central nacional de compras ou da criação de centrais regionais. Outra medida que assinalamos como positiva é a assunção do compromisso com a construção do novo Hospital de Lisboa Oriental que permitirá poupanças significativas através da concentração de várias valências de outras unidades.
A crise tem um impacto tremendo sobre a Saúde. Pratica-se pior medicina por escassez de recursos?
Há, oficialmente, racionamento implícito, no SNS. Com um corte, em 2012, de mais de mil milhões de euros, qualquer outra coisa seria impossível. Há portugueses que não têm acesso atempado aos cuidados. O SNS não consegue acomodar os cortes impostos, sem redução da atividade.
Quer dizer que a situação piorou?
Tem tendência a piorar e os efeitos começam a sentir-se. Uma auditoria do Tribunal de Contas aos Institutos de Oncologia concluiu que alguns serviços ultrapassam os níveis de espera admissíveis.
Um parecer do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida fala de racionamento em saúde. Subscreve a opinião de Bagão Félix que lhe chamou “eutanásia financeira”?
Subscrevo. É um caminho muito perigoso, fazer as discussões éticas dentro de quatro paredes. Têm de ser abertas. Este parecer teria sido muito interessante para circular em draft e receber propostas e opiniões. Os pareceres do conselho de ética traduzem exclusivamente a opinião dos seus autores.
Não são representativos?
De quem? Os membros estão lá para veicular a sua opinião pessoal.
Os médicos estão representados…
A atual Ordem dos Médicos, não. Está lá um ex-bastonário. Os problemas teriam sido evitados, se tivéssemos conhecimento daquele parecer, para discutir inter pares.
Substituiriam a palavra racionamento por racionalização?
Claro. Este parecer não inventou nada, nem teve o mérito de lançar uma discussão, porque ela já existia: a questão dos custos em saúde, da racionalização, das normas de orientação clínica. Surpreendeu-nos profundamente, por admitir à discussão a possibilidade de racionamento por idade, o que é chocante e completamente inaceitável. Seria diferente se lá tivessem escrito “racionalização por condição clínica terminal”.
Não acredita que tenha sido uma confusão entre racionalização e racionamento?
Aceitar que foi uma confusão de palavras seria menorizar a inteligência das pessoas que elaboraram o parecer. E prezo muito a inteligência dessas pessoas.
Que consequências teriam esses racionamentos?
Prejudicariam os mais desfavorecidos. No meu conceito ético isso é inaceitável. Não aceito que digam: “Tratem quem puderem, quem não puderem, não tratem.” Uma decisão destas tem de ser submetida a referendo. Deve basear-se numa ética coletiva e não na de um grupo favorecido.
Muitos argumentam que o racionamento serve para defender o SNS.
Já percebemos que o País tem sido mal governado. Admitir discriminação, quando estamos a viver uma situação social grave, é inaceitável. Não aceito que me digam: “Agora para a saúde vão só 5% do PIB, porque precisamos de pagar PPP rodoviárias, frotas automóveis milionárias, excesso de deputados e de assessores.”
Que áreas estão a ser prejudicadas pelos cortes em saúde?
Tendem a afetar as patologias mais caras. A cirurgia de obesidade está praticamente suspensa, embora se pague a si própria pela redução dos consumos em saúde. A cirurgia da obesidade tem o potencial de curar os diabéticos.
Há portugueses a correr risco de vida pelo atraso no atendimento?
Essa é uma afirmação potencialmente alarmista. Mas por cada atraso em cirurgia oncológica colocam-se problemas à cura do doente. E fica mais caro ao sistema tratar mais tarde.
Onde é que se pode poupar em saúde?
Os médicos são responsáveis por desencadear 80% da despesa. Estamos a elaborar um documento e a fazer auditorias independentes. É preciso consenso e um padrão que defina o estado da arte para reduzir a heterogeneidade da prática clínica. A troika também diz que os gestores hospitalares devem ser nomeados por mérito e por currículo e não por outros fatores que sabemos serem a prática no sistema português e que levam a má gestão pública. É preciso mais rigor de gestão.
A crise ameaça a sustentabilidade do SNS?
A ideia de insustentabilidade, que nos andam a vender há muito tempo, é mentira. Não podemos aceitar que, não tendo sido o responsável pela crise, o SNS seja posto em causa. Gastar 10% do PIB em Saúde não é nada de especial. Os EUA gastam 18% e excluem milhões de doentes. Nós não excluímos ninguém, temos excelentes indicadores e um custo per capita inferior à média da OCDE.
Pagamos de mais pela saúde?
Segundo a OCDE, em 2009 gastámos 10,6% do PIB em saúde. A Alemanha 11,6%, a França 11,8% e a Holanda 12 por cento. É verdade que estamos acima da média da OCDE, mas também há países com indicadores muito piores do que os nossos. Porque é que nós não podemos gastar 10,6% do PIB em saúde?
Defende um agravamento da carga fiscal sobre fast food num país já castigado por muitos impostos.
Sobre o fast food, o sal, a gordura saturada, o álcool e os refrigerantes. Esses impostos permitiam financiar parte das despesas de saúde. As batatas fritas são veneno empacotado. Os refrigerantes deviam ser taxados a 100 por cento, para reduzir o seu consumo. Há um potencial enorme de influenciar positivamente os comportamentos através dos impostos.
Não seriam mediadas antissociais, já que a má alimentação é tida como mais barata?
Não é verdade. A alimentação saudável é mais barata. Há conceitos errados que inquinam a tomada de boas decisões. Compare o custo de um pastel e de uma banana ou de uma maçã. E temos de ter também em conta todos os custos que decorrem da má alimentação: obesidade, hipertensão, diabetes, colesterol… É possível prevenir. O problema é que o lóbi da indústria agroalimentar é poderosíssimo e não quer que se instituam essas regras.
Mais que o faramacêutico?
Muito mais. O farmacêutico é escrutinado, o outro não. O lóbi da indústria agroalimentar vai fazendo o seu trabalho com discrição e com muita eficácia.
Quando se candidatou dizia que tudo tinha de mudar na organização da Ordem. Quase a cumprir dois anos de mandato, conseguiu cumprir a promesssa?
Sim. Conseguimos descentralizar. Falta rever os estatutos.
O que mudará com a alteração dos estatutos?
Esperamos uma maior representação democrática. Até agora, a Ordem funcionava numa posição de tudo ou nada. Pretendemos que as listas não eleitas tenham representação nessas assembleias.
Quer dizer que está disposto a libertar-se de alguns poderes?
Não, por acaso é ao contrário. Não gosto da palavra poder porque está muito mal conotada em Portugal. Para mim, poder é serviço, não é mandar. Vamos dar mais capacidade de decisão nalgumas áreas ao bastonário, elegê-lo como equipa. Queremos que o bastonário seja eleito com uma equipa de trabalho.
Porque elegeu esta como uma das prioridades do seu mandato?
Porque agiliza as decisões e porque dará mais voz aos jovens, os internos. Passarão a ter representação no conselho nacional da Ordem, com direito de voto.
Isso quer dizer que se vai candidatar a um segundo mandato?
As eleições são daqui a um ano. Não é saudável falar em eleições com mais de um ano de antecedência.
Justifica-se uma Ordem profissional apoiar uma greve, como aconteceu este verão?
Os problemas que se colocam à Saúde, aos doentes e aos médicos são hoje mais
graves, por força da crise. A intervenção também tem de ser mais intensiva.
Que leitura fez do êxito dessa greve?
Só foi uma grande surpresa para o Governo e alguns comentadores, tão desligados da realidade do País que nem se aperceberam da comunhão de ideias entre médicos e doentes. Entendo que o papel de bastonário da OM é ser o provedor dos doentes.
Não dos médicos?
Não. Dos doentes. Ao defendê-los, estou a defender a qualidade da Saúde e os médicos.
A Ordem substituiu-se ao Estado quando o ministro da Educação, Nuno Crato, retirou os prémios de mérito aos futuros alunos de Medicina. Foi uma decisão política?
Tudo o que fazemos é político. A forma e o timing de retirada do prémio foi extremamente negativa. Privilegiamos e permianos o mérito. Se isso é política, chame-lhe política de defesa de mérito e eu assino por baixo. Infelizmente, vemos na política pessoas com pouco mérito a tomarem decisões catastróficas para o país. Por isso estamos na banca-rota.
Foi uma chapada de luva branca?
É uma expressão demasiado violenta.
Continua a defender que há médicos a mais?
Já temos mais vagas do que o país necessita. Teremos desemprego médico a curto prazo.
Como é que encara o encerramento da Maternidade Alfredo da Costa?
Estou à espera que apareçam estudos a demonstrar que essa unidade deve encerrar, que esse encerramento é benéfico para o SNS, que me digam como esse encerramento é feito, se as equipas são preservadas ou não e se as mulheres e as crianças são ou não prejudicadas. Depois de aparecerem esses estudos terei uma opinião. Estou cansado de ouvir responsáveis políticos e governativos dizerem que têm estudos que provam qualquer coisa, mas nunca os mostram. Estou à espera que alguém tenha a honestidade de os divulgar para que a sociedade perceba se a MAC deve encerrar ou não. Na ausência de estudos será uma decisão política sem fundamento técnico.
É um favorecimento às PPP?
Não sei porque é que me faz essa pergunta. Mas se a fez foi porque sentiu que ela tem alguma lógica. Se calhar há muita gente no País a fazer a mesma pergunta.