Até agora, a invasão russa à Ucrânia foi responsabilidade da NATO, da União Europeia e dos Estados Unidos: é este o olhar comunista sobre o conflito no leste europeu. O PCP escolheu não se envolver demasiado e, na Assembleia da República, foi o único partido a não condenar o avanço das tropas separatistas pela Ucrânia; não participou em nenhuma das manifestação de apoio aos ucranianos, que têm estado a acontecer em Portugal, e um antigo deputado até o fez saber ao presidente da Ucrânia, via Twitter. A postura dos comunistas não é uma novidade: agiram de forma semelhante quanto ao pacto germano-soviético (1939), à invasão da Hungria (1956) e de Praga (1968). “Qualquer uma destas datas são tempos de negrume para as linhas oficiais dos comunistas”, diz o politólogo José Adelino Maltez, que prevê que, tal como aconteceu em 1968, a falta de clareza do partido perante “a defesa do principio da autodeterminação vá levar a dissidências, mesmo que sejam silenciosas”.
Antes da madrugada da última quinta-feira, 24, quando a Rússia entrou território ucraniano a dentro, o PCP defendia que não estava a ser preparada nenhuma invasão. O dirigente António Filipe chegou mesmo a ironizar na sua conta no Twitter que “Biden decidiu que a Rússia tem de invadir a Ucrânia quer queira quer não queira. Se não invadir a bem terá de invadir a mal” ou: “a guerra da Ucrânia não será uma recreação televisiva da Guerra dos Mundos do Orson Welles? Recriação, queria eu dizer”. Horas mais tarde, com as imagens dos tanques de guerra e das explosões a circular por todo o mundo, seria inevitável manter a mesma convicção, já a leitura que o partido fazia dessas imagens começou logo a destoar da dos restantes. A guerra resulta do “problema da utilização da NATO como instrumento desses objetivos e o problema da subordinação da União Europeia à política belicista dos Estados Unidos e da NATO”, argumentou o líder parlamentar do PCP, João Oliveira, na primeira reação oficial, em que também defendeu ser preciso “travar a escalada de confrontação política, económica e militar”.
As declarações que se seguiram de outros dirigentes não destoaram: o vereador da Câmara de Lisboa João Ferreira atribuiu, no Twitter, a responsabilidade também à “estratégia de alargamento e confrontação da NATO/EUA”; e a deputada e membro do Comité Central Alma Rivera escrevia que as violações ao acordo de paz de Minsk já aconteciam há oito anos, não são de agora, acusando os média de fazerem “tábua rasa de bombardeamentos a estruturas civis no Donbass” anteriores. “Um dos problemas é que a nossa história não começa a contar a partir do momento em que se torna notícia”, acrescentou.
“O PCP expressa a sua profunda preocupação pelos graves desenvolvimentos na situação no Leste da Europa e apela à urgente desescalada do conflito, à instauração de um cessar-fogo e à abertura de uma via negocial. […] O agravamento da situação é indissociável da perigosa estratégia de tensão e confrontação promovida pelos EUA, a NATO e a UE contra a Rússia, que passa pelo contínuo alargamento da NATO e o reforço do seu dispositivo militar ofensivo junto às fronteiras daquele país, e em que insere a instrumentalização da Ucrânia, desde o golpe de estado de 2014, com o recurso a grupos fascistas, e que levou à imposição de um regime xenófobo e belicista, cuja violenta ação é responsável pelo agravamento de fraturas e divisões naquele país.”
— Comunicado do Partido Comunista, 24 de fevereiro de 2022
O secretário-geral do PCP usou as mesmas palavras para se referir à Guerra na Ucrânia, sublinhado, no entanto, que Putin “desfere um ataque à União Soviética e à notável solução que esta encontrou para a questão das nacionalidades e o respeito pelos povos e as suas culturas”. Segundo o professor universitário e investigador José Adelino Maltez, os comunistas também não estão a respeitar a autodeterminação da Ucrânia, quando não se posicionam claramente ao lado deste país. “Gostava de ter visto uma bandeira comunista na manifestação de ontem”, lamenta o politólogo. Confessa-se ainda “desgostoso” com a atitude do PCP, que não encontra paralelo noutros partidos comunistas na Europa – “na Bélgica, por exemplo, vemos bandeiras com foices e martelos nas ruas em defesa da Ucrânia”.
“Há quem queira ver a realidade e há quem queira ver filmes de ficção”, continua José Adelino Maltez, que refere que o partido está “embarcado numa propaganda que os faz ser aliados de regimes como o de Cuba, da Venezuela, da Síria. Utilizam uma terminologia de guerra híbrida para se manterem fiéis ao conceito de ódio à NATO e à União Europeia. E estão a equiparar isto à defesa de um povo”.
Não estamos em período eleitoral e, por isso, o professor não crê que esta posição vá prejudicar muito o partido nas urnas, daqui a dois ou três anos, mas José Adelino Maltez prevê alguma contestação interna. Recordando o exemplo da invasão à Checoslováquia pelos exércitos do Pacto de Varsóvia, que colocou um ponto final na Primavera de Praga, em 1968, virando o país para o comunismo. Morreram 72 pessoas e outras 700 ficaram feridas. Em Portugal, Álvaro Cunhal defendeu a invasão da então União Soviética, contrariamente ao que aconteceu com a maioria dos partidos comunistas da Europa, como o francês, o espanhol, o italiano, o austríaco. Cunhal não tomou esta decisão, sem resistêcia interna e teve até de se deslocar à Checoslováquia para acalmar os ânimos na célula comunista portuguesa, mas não evitou uma onda de desertores. “Dentro do partido houve resistência em aceitar a invasão soviética mas fomos sendo convencidos dos riscos que a revolução checoslovaca podia representar e venceu a doutrina Brejnev”, contava o histórico dissidente comunista Carlos Brito, ao DN, a propósito dos 50 anos da Primavera Árabe.
“O PCP não evoluiu, ao contrário de outros partidos comunistas”, considera José Palmeiras, professor de ciência política na Universidade do Minho. “Mantém a mesma ortodoxia: O PCP age como se não tivesse caído o muro de Berlim e com nostalgia da União Soviética”. O que lhe pode valer um desgaste “ainda maior” da sua imagem e “seria pior se ainda existisse Geringonça”, acrescenta o politólogo, que descreve a posição comunista perante a Guerra na Ucrânia como “embaraçosa”.
Esta segunda-feira, o antigo deputado do PCP Miguel Tiago fez questão de dar mais um passo no seu posicionamento em relação à Ucrânia e comentou uma publicação do presidente Volodymyr Zelensky, em que este agradecia o telefonema de apoio do Presidente da República português e os contributos de Portugal (que enviou armas e equipamento de proteção individual para a Ucrânia). “Não em meu nome”, quis esclarecer Miguel Tiago.
A relação do PCP com a Ucrânia
O posicionamento do PCP em relação à Ucrânia tem de ser contextualizado com os acontecimentos de 2014, quando a Crimeia foi invadida pela Rússia, e do ano seguinte, quando a lei da descomunização do País foi levada a cabo.
Há oito anos, a par do que já vinha acontecendo desde o início do século com a Revolução Laranja, o Partido Comunista Ucraniano (KPU) opôs-se aos episódios na Praça Maidan, que passaram pela luta da população para uma maior integração europeia e por protestos contra o presidente Viktor Yanukovych – próximo da Rússia. Isto foi em fevereiro de 2014, e nos meses seguintes o executivo que se seguiu decide perseguir o partido por alegada colaboração quer com a Rússia, quer com os separatistas russófonos do leste ucraniano.
Entre a ostracização dos 29 deputados do KPU no Parlamento até às eleições de outubro, que deixaram os comunistas de fora do hemiciclo, o PCP foi alertando para tais acontecimentos – basta observar os vários comunicados que a Soeiro Pereira Gomes emitiu na altura. Daí que, já em 2015, quando o Estado ucraniano decide “descomunizar” o País, mandando retirar todos os símbolos comunistas (ação para a qual contou com a colaboração de forças de extrema-direita) e impedir – até hoje – Petro Symonenko, secretário-geral do partido, de se candidatar, o PCP nunca mais viu Kyev com os mesmos olhos, nem mesmo agora, com os russos a invadiram aquele território. Ainda há duas semanas, os eurodeputados comunistas Sandra Pereira e João Pimenta votaram contra a prestação de assistência macrofinanceira à Ucrânia no valor de 1,2 milhões de euros (e os bloquista José Gusmão e Marisa Matias abstiveram-se).