Numa intervenção marcada pelo tema da “resposta aos desafios da História”, Ursula von der Leyen considera que o momento que vivemos exige à UE que alargue fronteiras e supere os 30 membros. “Completar a nossa União é o melhor investimento em paz, segurança e prosperidade para o nosso Continente”, afirmou no Parlamento Europeu, em Estrasburgo, durante o seu discurso anual sobre o Estado da União.
Num mundo pós-invasão da Ucrânia em que o peso geopolítico se revela fundamental, é do interesse da UE construir um bloco maior e mais forte. A presidente da Comissão Europeia pretende que seja desenhado um caminho para um alargamento bem sucedido, acreditando que “pode ser um “catalisador de progresso”. O recente aprofundamento da União no campo da saúde, defesa e geopolítica foi feito a 27 e von der Leyen acredita que pode ser concluído com mais de 30 membros.
Contudo, notou que será necessário “responder a questões práticas acerca de como funcionará na prática uma União com mais de 30 países”. Em especial, notou, a capacidade de tomar decisões. Uma possível referência ao debate acerca do fim da exigência de unanimidade na votação de certos temas, como a fiscalidade. Também referiu a necessidade de repensar como funcionam instituições como o Parlamento Europeu, bem como o orçamento comunitário. “O que financia, como o financia e como é financiado.” Outra referência a um debate ativo sobre a busca por recursos comunitários que permitam acomodar novos membros (relativamente mais pobres) e as necessidades de investimento futuro.
Não afastou a possibilidade de revisão de tratados, embora defenda que os processos de adesão podem acelerar sem essas mudanças. Nos próximos meses será conduzida uma espécie de teste de stress comunitário, identificando o que teria de mudar com a entrada de três ou quatro novos membros. “As boas notícias é que, a cada alargamento, ficou provado que aqueles que diziam que nos tornaríamos menos eficientes estavam errados”, sublinhou.
Foi um Estado da União com a Ucrânia no seu centro. Ursula von der Leyen mencionou-a várias vezes e não quis deixar dúvidas: “O futuro da Ucrânia é na nossa União.” E disse o mesmo em relação à Moldávia e aos Estados balcânicos. A invasão lançada pela Rússia tornou o tema mais urgente e terá mudado a posição de alguns Estados-membros em relação ao alargamento. Um processo lento que, nalguns casos, já se estende por mais de uma década.
Prometendo “ficar ao lado da Ucrânia” por “quanto tempo for necessário”, a presidente da Comissão anunciou também a extensão do estatuto de proteção temporária aplicado a cidadãos ucranianos (abrange mais de 4 milhões), lembrando ainda o compromisso de 50 mil milhões de euros em ajuda para aplicar até 2027 em investimentos e reformas no país.

Piscar o olho à direita?
Von der Leyen escolheu como primeiro tema o Green Deal ou Pacto Ecológico, que prevê cortar 55% das emissões até 2030 e atingir a neutralidade carbónica em 2050. Apresentado em 2019, é uma bandeira que gosta de agitar. Lembrou os incêndios e cheias que têm marcado o verão em muitos países europeus. Reflexo de uma intensificação de eventos climatéricos extremos. “Esta é a realidade de um planeta em ebulição”, afirmou, lembrando as palavras de António Guterres. “No que diz respeito ao Pacote Ecológico Europeu: mantemos o rumo. Continuamos ambiciosos.”
No entanto, por trás dessas palavras audazes, o discurso foi visto como uma recuo na ambição europeia nesta área, reflexo de divisões mais profundas que se têm manifestado no seio do Partido Popular Europeu, a família política de von der Leyen (e de PSD e CDS). O PPE tem pedido avanços mais cautelosos, procurando travar legislação que poderá penalizar os agricultores. Um grupo que recebeu bastante atenção durante o Estado da União. Houve também várias referências à indústria e uma ideia de caminhar lado-a-lado com as empresas nesta fase de transição energética.
O clima é uma das áreas em que a UE parece reconhecer que tem de concorrer com o resto do mundo. Mas não é a única. Von der Leyen anunciou ter pedido ao ex-presidente do BCE, Mario Draghi, um relatório sobre o futuro da competitividade europeia.
No campo da inteligência artificial, um dos temas que, talvez surpreendentemente, mais tempo ocupou, foi anunciada uma iniciativa que permitirá o acesso de startups de IA aos super-computadores europeus, para que os usem para treinar os seus modelos. Possivelmente uma cenoura para convencer essas empresas a aderir voluntariamente a nova regulação europeia que procurará tornar a nova tecnologia segura e ética.
Porém, é no “capítulo China” que essa vontade de competir ficou mais clara. A presidente da Comissão reconheceu que a Europa tem sido ultrapassada pelo poder de fogo de outros países cujos Estados apoiam de forma mais musculada certas indústrias e mencionou especificamente como “as práticas injustas da China afetaram a nossa indústria de energia solar”.
No campo dos carros elétricos foi ainda mais longe. Notou que a China consegue vendê-los a preços muito baixos devido a subsídios públicos e anunciou uma investigação a essa prática. “A Europa está aberta à concorrência. [Mas] não para uma corrida para o fundo.”
Silêncios ruidosos
Os silêncios podem ter tanta relevância como as palavras. Ursula von der Leyen optou por falar muito pouco sobre a crise do custo de vida na Europa, onde as famílias suportam uma inflação ainda elevada e a mais agressiva subida de juros de sempre do BCE. Acerca de habitação – tema de uma carta assinada por António Costa a pedir intervenção comunitária – nenhuma palavra. Também não tocou em temas mais divisivos, como o Estado de direito na Hungria e na Polónia.
Por último, não abordou a sua possível recandidatura. No entanto, a forma como promoveu as suas conquistas sugere que as suas ambições políticas não ficam por aqui. Num discurso em que começou por dizer que cumpriu 90% dos princípios definidos no início do seu mandato – as contas do Parlamento Europeu são mais modestas e apontam para 69% -, von der Leyen promete, até às eleições europeias, “acabar o trabalho”.
O jornalista viajou a convite do Parlamento Europeu