Uma dúzia de anos após o fim da Segunda Guerra Mundial e da derrota dos Estados fascistas, Salazar viu-se mais isolado do que nunca. A comunidade internacional, que já vira com maus olhos o grupo de países fundadores da NATO incluir uma ditadura, pressionava constantemente o Estado Novo por causa das suas colónias. Por isso, quando a rainha de Inglaterra foi autorizada pelo Governo britânico a viajar para Portugal, Salazar tudo fez para tirar vantagens diplomáticas da visita e transformá-la num reforço ao velho Tratado de Windsor, a mais ancestral aliança entre dois Estados. Custasse o que custasse. Custaria caro.
A chegada de Isabel II ao Tejo, a bordo do iate real Britannia, estava marcada para 18 de fevereiro de 1957, mas os preparativos começaram com muita antecedência. Assim como as queixas sobre a fatura, incluindo o delicioso e revelador pormenor de incluir os centavos na conta. «Enquanto as ofertas inglesas parecem não ascender a mais de 20 ou 25 mil escudos, as nossas somaram 222 590$90», lamentava, em janeiro, o gabinete do Ministério dos Negócios Estrangeiros (aos valores atuais, equivale a cerca de 60 mil euros). Ele era um serviço de jantar e outro de chá para oferecer ao casal real que custara 90 contos, uma banda de música por 95 e até vestidos, um toucador e uma boneca, no valor de 11 contos, para a pequena princesa Ana, filha de Isabel, que tinha seis anos, na altura (com os pais e a irmã, vinha ainda o príncipe Carlos, de oito anos). E não estava incluído o cavalo lusitano de pura raça, para dar de presente à rainha, nem o Rolls Royce que o Estado teve de comprar para fazer de viatura oficial. Em segunda mão, é certo, mas mesmo assim dispendioso. O avarento Salazar espumou, rosnou, mas lá foi assinando as notas de despesa. Pelo menos o preço da comida da própria rainha não deveria ser astronómico: Isabel II mandou avisar que adorava as sardinhas enlatadas portuguesas e esperava tê-las no seu prato.
Na manhã de 18 de fevereiro, uma segunda-feira mimoseada por um sol generoso para a época, centenas de milhares de lisboetas cobriam a margem direita do rio, queixos apontados à Barra e mãos a servir de pala. De Belém à Ribeira das Naus, não se vislumbrava um espacinho livre. As águas à frente da população encontravam-se também apinhadas de botes, barcos, traineiras, fragatas, dragas e corvetas. Quem conseguira desencantar uma bandeira britânica emparelhava-a com a da República, nos mastros das embarcações e nas janelas das casas.
A entrada do Britannia foi anunciada por canhões e morteiros de São Julião da Barra e dos navios de guerra ancorados às portas do Tejo. Quatro bombardeiros passaram sobre o rio num voo baixo, sobrevoando o iate que se aproximava lentamente, como que a apreciar os clamores de júbilo da população em terra. À sua proa, as centenas de barcos abriam caminho. Pouco depois das dez, o iate passou em frente ao Cais do Sodré e o navio-escola Sagres disparou uma salva. Eram dez e meia quando ancorou em frente ao Terreiro do Paço.
O Britannia impressionou o povo, fechado na redoma tradicionalista de Salazar e pouco habituado a manifestações de luxo daquele calibre. Neste caso, no entanto, até havia razões para abrir a boca aos pouco impressionáveis. Construído apenas 4 anos antes, o navio era uma maravilha tecnológica do seu tempo. Elegantemente pintado a preto e branco, tinha 126 metros de comprimento, cinco mil toneladas de peso bruto e uma tripulação de 236 homens, incluindo 19 oficiais. Para se ter uma ideia, o maior iate privado do mundo (propriedade do milionário russo Roman Abramovich, dono do Chelsea F. C.) tem 160 metros de comprimento e 70 tripulantes. A embarcação estava preparada para se transformar em navio-hospital, em caso de conflito, e para servir de refúgio à rainha – na eventualidade de uma Guerra Nuclear, a família real navegaria em direção às águas do norte da Escócia e aí esperaria, confortavelmente, que tudo acabasse. No fim da sua vida, em 1997, o Britannia (último iate a que a família real teve direito e entretanto transformado em navio-museu) já levava nas hélices quase 700 visitas de Estado ao estrangeiro e mais de dois milhões de quilómetros percorridos, o equivalente a 50 viagens de circum-navegação.
Isabel II e Filipe de Edimburgo não estavam menos impressionados com a receção. Do convés, acenavam à população enquanto tiravam fotografias, hábito pouco comum entre a austera realeza. A situação assim o pedia: contam os jornais da época que um milhão e meio de pessoas enchiam as ruas numa tentativa de pescar a mais leve olhada à rainha (as imagens gravadas pelas câmaras da RTP confirmam que a visita nada ficou a dever às dos Papas – pelo contrário). À sua volta, um cortejo de barcos desfilava com primor, até se desviarem para deixar passar a velha galeota real – o gracioso barco oficial dos reis e rainhas portugueses desde 1780 até 1910, puxado por 78 remadores, resgatado ao pó para a ocasião. O casal desceu para a galeota, que percorreu os seus últimos 300 metros em remadas perfeitamente sincronizadas e atracou, pela última vez na sua longa história, no Cais das Colunas.
Quando o barco se aproximou da margem, o presidente da República, Craveiro Lopes, vestido com o seu uniforme de general e de chapéu armado na cabeça, encaminhou-se para a ponta da doca, acompanhado pela mulher. Soaram todas as sirenes dos barcos no Tejo e descarregaram-se os canhões do Castelo de São Jorge. «Viva a rainha!», gritava a multidão. Aviões a jato sobrevoavam o Terreiro do Paço, em formação de gala. Isabel II desembarcou, galgou a escadaria do cais, percorreu uma passadeira grená, ladeada por milhares de tulipas brancas e avencas, e subiu para uma imponente tribuna coberta de veludo e adornada com talhas douradas. As revistas do social exaltariam, mais tarde, o seu distinto vestido azul cintado, de seda, suficientemente curto para deixar os tornozelos reais apanharem ar, o chapéu da mesma cor e o discreto alfinete de diamantes ao peito.
No palco de honra, Isabel II e António de Oliveira Salazar cumprimentaram-se pela primeira vez. Alguns jornais garantiram, no dia seguinte, ter notado um olhar de admiração na cara da rainha e de enternecimento na do ditador. Verdade ou fantasia, aquele momento foi um eficaz instrumento de propaganda para Salazar e um poderoso trunfo político para ser usado no estrangeiro.
Ouvidos os hinos de Portugal e de Inglaterra, o casal real entrou para uma carruagem de cerimónia, puxada por seis cavalos brancos, passou pelo Arco da Rua Augusta, atravessou o Rossio, os Restauradores e a Avenida da Liberdade e subiu ao cimo do Parque Eduardo VII, onde saiu para apreciar a vista sobre o Tejo. A escolha da paragem teve o seu quê de simbólico: o mais famoso tapete verde da capital nasceu em 1903 para honrar o bisavô de Isabel II. Eduardo VII, soberano de Inglaterra, visitara Lisboa nesse ano para a sua primeira viagem de Estado, após a coroação. Fora a circunstância de, nessa época, Portugal ainda ser uma monarquia, a chegada à cidade foi muito semelhante à da sua bisneta. O rei britânico viajou no iate real Victoria and Albert (antecessor do Britannia e praticamente com a mesma monumentalidade), entrou no Tejo ao início da tarde de 2 de abril e desembarcou no Cais das Colunas pela mesma galeota. Os cruzadores portugueses D. Carlos, D. Amélia e Adamastor serviram-lhe as boas-vindas, disparando salvas cerimoniais – mal sonhariam Eduardo VII e o rei D. Carlos que, sete anos mais tarde, estes mesmos três navios seriam fundamentais no êxito da Revolução Republicana de 5 de Outubro. A viagem de Eduardo VII foi recordado por Isabel II durante uma receção no Palácio da Ajuda, na sua primeira noite em Lisboa.
Na manhã seguinte, enquanto a rainha visitava o Mosteiro dos Jerónimos e o Museu dos Coches, o Duque de Edimburgo preferiu conhecer por dentro a fragata D. Fernando II e Glória e o navio-escola Sagres, ancorados no rio. Ao serão, o casal serviu um banquete às principais figuras do Estado português a bordo do Britannia, fundeado perto da Gare Marítima de Alcântara. Dois espetáculos de fogo-de-artifício anunciaram o início e o fim do jantar.
Três dias depois de chegarem, e com uma passagem pela Nazaré pelo meio, Isabel II e Filipe de Edimburgo partiram. Mas não voltaram pelo mesmo caminho – apanharam o avião real no Aeroporto da Portela e ainda fizeram uma paragem de duas horas no Porto, antes de regressarem a Londres. Nunca mais o Tejo voltaria a engalanar-se daquela forma para receber uma rainha.
(Texto publicado originalmente no livro Histórias do Tejo, da Esfera dos Livros.)