É uma das revelações do livro The Secret History of the Five Eyes, de Richard Kerbaj, publicado na última semana: a jovem britânica Shamima Begum, que saiu do Reino Unido em fevereiro de 2015 para a Síria, juntamente com duas amigas, para se unir ao Estado Islâmico (EI), foi traficada por um espião canadiano, que ajudou várias outras pessoas a viajarem para a Síria. Contudo, a ligação deste homem ao caso de Begum terá sido encoberta nos últimos anos pelas autoridades e pelos serviços secretos britânicos, acusa Kerbaj.
Documentos e outros materiais a que a BBC teve acesso e que demonstram como este espião trabalhava provam que o homem terá partilhado informações pessoais e documentos da jovem com os CSIS, os serviços secretos do Canadá. Contudo, as informações de Shamima Begum foram partilhadas com os CSIS apenas quatro dias depois de a jovem ter saído do Reino Unido, quando já se encontrava na Síria.
Já era conhecido que Begum, na altura com 15 anos, fugiu da escola Bethnal Green com Amira Abase, também de 15, e Kadiza Sultana, com 16 anos, e que as três seguiram depois para a Síria, mas agora foi revelado que as jovens foram recebidas na principal estação de autocarros em Istambul, na Turquia, por Mohammed al-Rashed, o responsável por ajudá-las a seguir caminho (numa entrevista ao The Times, Shamima contou que Sultana acabou por morrer em maio de 2016, aos 17 anos, devido a um ataque aéreo). O mesmo aconteceu com outras pessoas pelo menos 8 meses antes de serem as três meninas a partir.
A BBC escreve que, numa conversa entre Rasheed e Raphael Hostey, um recrutador britânico do EI que morreu em 2016, Hostey referiu “precisar” que Rasheed trabalhasse para ele. “Quero que nos ajude a trazer pessoas”, disse. Segundo descreve o livro e como foi confirmado pela BBC a partir de documentos a que teve acesso, Rasheed, que foi preso em Sanliurfa, Turquia, dias depois da viagem de Begum para a Síria, estaria, de facto, a fornecer informações aos serviços secretos canadianos, enquanto traficava pessoas para o EI.
A jovem foi levada para a Síria através de uma rede de tráfico que era controlada a partir de Raqqa, na Síria, e Rasheed esteve à frente das operações do lado turco, mantendo consigo informações pessoais acerca das mulheres, homens e crianças que ajudou a seguir para a Síria: fotografou os seus documentos de identidade e, muitas vezes, filmou-os secretamente. “Ele organizou toda a viagem da Turquia para a Síria. Acho que ninguém teria conseguido chegar à Síria sem a ajuda de traficantes”, disse, durante uma entrevista, num episódio do podcast da BBC I’m Not A Monster, Shamima Begum. Além disso, Rasheed também terá reunido informações sobre o Estado Islâmico, como a localização das casas dos combatentes ocidentais do EI na Síria.
Numa declaração prestada às autoridades, o homem afirmou que teria reunido informações sobre as pessoas que ajudou a levar para a Síria, tal como Begum e as duas amigas, porque estava a partilhar essas mesmas informações com a embaixada canadiana na Jordânia. De acordo com as suas alegações, Rasheed dirigiu-se, em 2013, a essa embaixada na tentativa de pedir asilo. “Disseram-me que me concederiam a nacionalidade canadiana se eu reunisse informações sobre as atividades do Estado Islâmico”, afirmou. A BBC confirmou que, de facto, Rasheed fez várias viagens até à Jordânia a partir de 2013, até ao momento em que foi detido, em 2015.
Advogado quer definir culpados
Begum está, neste momento, presa num campo de detenção no nordeste da Síria, depois de, em 2019, lhe ter sido retirada a cidadania britânica. No mesmo ano, em fevereiro, a jovem tinha pedido que a deixassem voltar ao Reino Unido, “para casa”, após ter dado à luz o seu terceiro filho. (Já tinha perdido uma filha, Sarayah, com um 1 e 9 meses, e um filho, Jerah, com 9 meses; o terceiro acabou por também não sobreviver).
“Sinto que as pessoas possam ter simpatia por mim, por tudo aquilo por que passei. Eu não tinha noção de onde me estava a meter quando saí”, disse, na altura, em declarações à Sky News. Além disso, garantiu não representar perigo qualquer para o país. “Desde que vim para a Síria fui apenas uma dona de casa, nos últimos quatro anos fiquei em casa a cuidar do meu marido e dos filhos. Nunca fiz nada. Nunca fiz propaganda, nunca encorajei ninguém a vir para a Síria”, afirmou. Begum casou-se com um jovem dos Países Baixos convertido ao Estado Islâmico, Yago Riedijk, apenas dez dias depois de chegar a Raqqa, em 2015.
Existiram contudo, acusações de que Begum terá cosido os coletes de explosivos para os bombistas, além de ter tentado ajudar a atrair outras jovens para a Síria. Além disso, algumas fontes britânicas disseram ao The Guardian que não há indícios de que a jovem tenha viajado involuntariamente para a Síria, mesmo sendo tão nova.
O advogado da família de Begum, Tasnime Akunjee, comunicou que haverá, em novembro, uma audiência para contestar a retirada da cidadania britânica a Begum, e que um dos argumentos utilizados será que, na altura da decisão da retirada da cidadania, Sajid Javid, então ministro do Interior do Reino Unido, não considerou que a jovem podia estar a ser vítima de tráfico. “O Reino Unido tem obrigações internacionais sobre como vemos uma pessoa traficada e que culpa lhe vamos imputar pelas suas ações”, afirmou.
De lembrar que, em 2019, Sajid Javid referiu que a sua posição “era clara” no sentido de não permitir o regresso de Begum ao Reino Unido. “Não vou hesitar em bloquear o regresso de alguém que apoiou uma organização terrorista”, aifrmou, acrescentando que, caso a jovem regressasse, teria de ser “questionada, investigada e provavelmente acusada”. O Reino Unido defendeu ainda que Begum não ficaria apátrida, já que podia adquirir a nacionalidade dos pais, que eram do Bangladesh. Contudo, o país rejeitou, desresponsabilizando-se de qualquer dever de aceitar Shamima.
Akunjee disse ainda que era “chocante” que os serviços secretos canadianos suportassem operações de tráfico. “Alguém que devia ser um aliado e proteger o nosso povo, em vez de traficar crianças britânicas para uma zona de guerra”. Já em declarações aos jornalistas, o primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, afirmou que os serviços secretos canadianos devem ser “flexíveis” e “criativos nas suas abordagens” de combate ao terrorismo.
Em declarações ao The Guardian, Maya Foa, representante da organização não governamental Reprieve, afirmou que o livro agora publicado levanta “questões sobre o que o governo do Reino Unido sabia sobre o tráfico de Shamima” e acusou-o ainda de tentar “demonizar” as crianças “britânicas vulneráveis” que foram “alicidas e traficadas” em vez de as tentar proteger.