Começamos por reparar no soldado que leva uma retrete em braços, suja e de tampo aberto, e no outro que vai atrás dele, de radiador a óleo a tiracolo. Logo a seguir, damos pelo homem no fundo da sala, virado para o que resta de uma das paredes onde um quadro com uma imagem da virgem e do menino parece prestes a cair. Tem as pernas ligeiramente afastadas e os braços numa posição que não deixa margem para dúvidas: está a fazer chichi.
Há ainda um quarto soldado a mexer num piano branco e um quinto sentado junto a um grande rádio preto. Este último, antes de se sentar, terá pousado no chão a sua arma, e agora ela mal se nota no meio de uma série de objetos.
No início do projeto, a que deu o título Brothers in Arms, o lituano Tomas Upskas pensou pôr um dos homens a levar um aparelho de ar-condicionado. O grande paralelepípedo acabou por ficar no chão, em primeiro plano, mas só o vemos no final, entre tijolos e outros destroços da casa, botijas de gás, quadros bem emoldurados, instrumentos musicais, malas de viagem, televisores e latas de tinta.
No meio de todo aquele caos, uma pequena mesa coberta de garrafas de bebidas alcoólicas faz todo o sentido. Os soldados provavelmente passaram algum tempo naquela sala de estar onde antes morava uma família ou um casal. Numa estreita prateleira de madeira, por cima do piano e junto a um relógio parado nas dez e dez, sobrevive, incólume, uma fotografia felizmente pouco nítida.
“Cada ação tem uma mensagem”, já disse o autor deste diorama de 20cm por 20cm, ao 15min, um dos maiores sites de informação lituano. “Por exemplo, o homem que urina na parede à frente de uma imagem religiosa – é porque não há nada sagrado para ele”, explicou. “Ou o outro que transporta um radiador, embora haja coisas muito mais valiosas à sua volta – ele não percebe nada do assunto. Os soldados transportam coisas que só têm significado para eles. Podiam levar um quadro, vendê-lo e comprar uma centena de retretes, mas não sabem.”
Os cinco soldados são russos – o “zê” no seu uniforme deixa isso bem claro. A sala será algures na Ucrânia, talvez mesmo em Bucha, onde houve um massacre de civis logo no início da guerra e onde seriam tiradas fotografias semelhantes. Quase ao mesmo tempo, surgiram imagens de soldados em postos de correios, a enviarem para a Rússia grandes encomendas, e de tanques russos carregados com frigoríficos e máquinas de lavar.
A morar no Reino Unido, onde trabalha na montagem de andaimes, Tomas Upskas antecipou que as pilhagens iam acontecer na Ucrânia. Ainda antes de elas serem notícia, já estava, por isso, a construir este diorama.
“Não é o meu primeiro diorama sobre soldados russos – tenho um sobre soldados soviéticos em Klaipėda [a Lituânia foi a primeira a desligar-se da URSS, em março de 1990; a soberania viria um ano e meio depois]. Até agora, não vejo a diferença entre os soviéticos e os russos: sei que é uma época diferente, mas tudo o resto é o mesmo, desculpe, estrume. Quando eles se aproximaram da Ucrânia, eu disse imediatamente que iriam pilhar. Foi assim, nada mudou”, lembrou ao 15min.
Quando começou a fazer o diorama, Tomas Upskas estava a pensar no futuro, porque as pilhagens só começaram uns dias mais tarde. “Tive de mudar a tampa da retrete que tinha comprado, porque não esperava que roubassem uma retrete no século XXI”, conta. “A primeira ideia era pôr o soldado a transportar um ar-condicionado. O roubo da casa de banho foi, ao mesmo tempo, engraçado e triste.”
Os kits foram comprados a uma marca de miniaturas ucraniana, a MiniArt Models, mas os objetos, muito realistas, acabaram por ser quase todos alterados. E a parte mais desafiante do projeto foi fazer o piano. “Todos os seus ornamentos são desenhados à mão”, sublinha. “Muitas pessoas não acreditaram, disseram que era um disparate, que eram autocolantes. Quando olho para trás, lembro-me de que estava mesmo nervoso a desenhá-los, porque a mais pequena pincelada podia sair mal. “É um trabalho meticuloso, tem de se ter paciência, mas desgasta.”
Comprar logo uma figura com um uniforme russo poupa tempo, assim como com a posição desejada. Mas, muitas vezes, é preciso cortar os braços ou as pernas e moldá-los, explica o artista. “Demoro, por isso, cerca de uma semana a fazer um único soldado e a pintá-lo.”
A qualidade está nos pormenores, acredita. “Se o diorama estivesse vazio e, digamos, não houvesse lixo no chão, sentiria falta dele”, diz.
No dia em que deu os últimos toques à sua peça e a considerou terminada, Tomas Upskas escreveu na sua página do Facebook: “‘Brothers in Arms’ [irmãos de armas] estão feitos! Estou bastante satisfeito com esta peça. Irá a leilão com o lance inicial de 2 000 euros. Cada cêntimo será doado para apoiar a Ucrânia.”
Sabia que o interesse era grande – uns dias antes, tinha publicado uma fotografia do soldado com a retrete e percebeu logo que a atenção ia disparar. E ainda bem, diz. “Quanto mais popular for o diorama, mais alto será o preço e mais dinheiro irá para os ucranianos.”
O leilão vai ser organizado e acompanhado por meios de comunicação ucranianos. Quando a peça for leiloada, o lituano receberá os dados do comprador e envia-lha. “Não quero que digam que estou a fazer negócio com ela – não estou.”
Um diorama “é um modo de apresentação artística tridimensional, de maneira muito realista, de cenas da vida real para exposição com finalidades de instrução ou entretenimento”, lemos na wikipedia. O termo diorama foi inventado por Louis Daguerre, em 1822. A palavra significa “através daquilo, o que é visto”, do grego di (“através”) + orama (“o que é visto, uma cena”).
Entre mãos, Tomas Upskas tem já outros projetos, sempre com miniaturas à escala 1:35.
Depois do Brothers in Arms, o artista fez um diorama mais pequeno e mais simples, só com um conhecido combatente ucraniano da fábrica de Azovstal, onde, segundo Zelenski, a Rússia mantém 2 500 prisioneiros: o fuzileiro naval Michail Alexandrovich Dianov, de 42 anos. “Soube que adora tocar piano, fiz este para ele!”, escreveu no Facebook.
Agora, prepara um novo diorama, desta vez tendo como protagonista o realizador lituano Mantas Kvedaravičius, autor do documentário Mariupolis (2016), morto no início de abril enquanto recolhia imagens em Mariupol. Segundo as primeiras notícias, o realizador estava a tentar sair daquela cidade ucraniana quando o carro em que seguia foi atingido por um míssil. Mais recentemente, surgiram informações de que terá sido raptado e executado, sendo posteriormente o seu cadáver atirado à rua.
A sua namorada, Hanna Bilobrova, editou as imagens e o documentário Mariupolis 2 foi exibido em maio, no Festival de Cannes. Tomas Upskas ainda está indeciso se o retrata com uma câmara de filmar ou com uma arma (como vemos na fotografia aqui em cima) – porque o considera um combatente, lemos no seu Facebook. Afinal, faz estas miniaturas também para passar mensagens.