A 24 de fevereiro, as tropas russas invadiram, às ordens de Vladimir Putin, o leste da Ucrânia. Assim começou um conflito que já provocou milhares de mortos e quase 4 milhões de refugiados, além da destruição, um pouco por todo o território ucraniano, de hospitais, escolas e áreas residenciais. No entanto, fora dos holofotes internacionais, há outras guerras a decorrer no mundo, que têm provocado um sofrimento extremo a milhões de pessoas.
“A guerra na Ucrânia não é mais importante porque está na Europa. Cada morte, cada vítima, cada pessoa deslocada durante a guerra é uma tragédia, não importa onde isso ocorra”, declarou a presidente do International Crisis Group à BBC News Brasil. Seguem-se, então, três exemplos de guerras que decorrem, neste momento:
Iémen
“A maior crise humanitária do mundo” – é assim que a ONU classifica a atual situação no Iémen. Segundo a análise deste mês da Integrated Food Security Phase Classification, quase 17,4 milhões de iemenitas sofrem elevados níveis de insegurança alimentar aguda. Prevê-se que, até ao final do ano, este valor seja superior aos 19 milhões, o que corresponde a mais de 60% da população do país. 2,2 milhões de crianças até aos 5 anos sofrem de mal-nutrição aguda.
Ora, os confrontos armados são a causa primária da fome no Iémen. Depois de a Revolução Iemenita de 2011 ter derrubado o governo autoritário do presidente Saleh, o poder foi transferido para Abd Rabbuh Mansur Al-Hadi, na altura vice-presidente.
Os Houthis – um movimento zaidista (uma subdivisão xiista do islamismo) do noroeste do Iémen – entraram em conflito com as forças da nova presidência e, em 2014, depois de assumirem o controlo de uma região do norte, começaram a avançar para sul. A capital Sanaa foi tomada em 2015 pelos Houthis, com a ajuda das forças pró-Saleh. Consequentemente, em março desse ano, o presidente Al-Hadi fugiu para a Arábia Saudita.
Entretanto, outros países começaram a intervir no conflito: por um lado, o Irão, a favor do Movimento Houthi. Por outro lado, a Arábia Saudita e outros oito estados árabes sunitas, juntamente com os Estados Unidos da América, o Reino Unido e a França, apoiam as forças pró-Hadi.
No sul, o governo iemenita é desafiado por um movimento separatista que, apesar de ser um aliado na guerra contra os Houthis, pretende restaurar a independência do Iémen do Sul. Os grupos jihadistas Estado Islâmico e Al-Qaeda também têm realizado ataques no país. Desde o início do ano, a guerra já fez cerca de 3 700 mortos, segundo o ACLED.
Etiópia
“Eu estava em casa com a minha mãe e a minha avó quando dois jovens armados entraram, por volta das 11h. Eles disseram: ‘as nossas famílias foram violadas e, agora, é a nossa vez de vos violar’. Um deles violou-me no pátio e o outro violou a minha mãe, dentro de casa. A minha mãe está muito doente agora, está muito deprimida e desesperada. Nós não falamos sobre o que aconteceu, é impossível”, contou Lucy, de 14 anos, à ONG Amnistia Internacional.
Desde julho do ano passado, as forças de Tigré (a região mais a norte na Etiópia) violam e espancam dezenas de mulheres e meninas, como Lucy, de uma aldeia etíope. Para além da violência sexual, o norte do país africano é palco de assassínios e saques de propriedades privadas e públicas, como escolas e hospitais. Os relatos de quem sobrevive às atrocidades são brutais.
A origem do conflito remonta a 2018, quando Abiy Ahmed Ali foi eleito primeiro-ministro. A Frente de Libertação do Povo Tigré viu, então, ameaçado o seu domínio do poder político etíope, que vinha já desde 1991. A tensão entre o governo federal e os rebeldes de Tigré foi-se adensando, até eclodir em novembro de 2020. A guerra civil dura há mais de 16 meses.
As forças federais – lideradas pelo chefe do governo, que ganhou o Prémio Nobel da Paz de 2019 – também já foram acusadas de massacre, violência sexual armada e “limpeza étnica” (consiste em expulsar de determinada área, ou assassinar em massa, um grupo étnico). De acordo com a Agência das Nações Unidas para os Refugiados, mais de dois milhões de etíopes deslocaram-se dentro do país, à procura de refúgio da guerra e quase 60 mil fugiram para o Sudão.
O Programa Alimentar Mundial contabiliza dois milhões de pessoas no Tigré em situação de “severa falta de alimentos”. As forças do governo cercam a região nortenha desde finais de junho do ano passado, bloqueando grande parte da ajuda humanitária. Nenhuma carrinha das Nações Unidas consegue chegar aos tigrés desde meados de dezembro.
Com o recuo dos rebeldes para o Tigré no último mês do ano passado, os confrontos diminuíram em larga escala. No entanto, ainda não houve quaisquer progressos significativos no sentido da resolução do conflito. Este ano, a guerra civil na Etiópia já fez cerca de 845 mortos, contabilizou o ACLED (Armed Conflict Location and Event Data Project), uma ONG americana especializada na recolha e análise de dados sobre conflitos internacionais.
Mianmar
Desde o início do ano, os conflitos em Mianmar (a antiga Birmânia) já provocaram quase 3 850 mortes, segundo o ACLED. “Há uma atmosfera de medo por toda a parte”, disse um trabalhador humanitário do território do sudeste asiático à agência noticiosa “The New Humanitarian”.
Tensões políticas e étnicas assombram a população birmanesa há pelo menos 60 anos. Em 2011, o regime militar opressivo que dominava o país foi dissolvido e foram dados alguns passos em direção à democracia. O partido Liga Nacional pela Democracia ganhou as eleições legislativas de 2015 e de 2020, com maioria absoluta. Contudo, as forças armadas não aceitaram o resultado desse último ano e, em fevereiro do ano passado, perpetraram um golpe de Estado militar.
Bloqueios de ajuda humanitária aos civis, ataques aéreos e bombardeamentos por artilharia contra as milícias locais são levados a cabo pelos militares do governo. Por todo o território, o cenário é agora de intensos confrontos. Por exemplo, os habitantes de duas vilas do noroeste birmanês acusam o Exército de ter incendiado 400 casas no final de janeiro, a propósito de uma operação de busca por membros de uma milícia armada opositora.
Segundo os mais recentes dados do Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários, há 6,2 milhões de pessoas no país a precisar de ajuda humanitária para sobreviverem. Mais de 440 mil birmaneses já se deslocaram internamente após o rebentar daquilo que, hoje, é considerado uma guerra civil.