Os relatos feitos pela imprensa americana desde que o processo de vacinação contra a Covid-19 começou na América revelam bem como os mais ricos se têm aproveitado dessa condição para passarem à frente na fila, subornando médicos e não só, de norte a sul do país.
“Há dezenas e dezenas destas histórias que mostram como o processo tem sido um desastre completo em termos de distribuição justa”, considera Arthur Caplan, o responsável da cadeira de ética médica da NYU School of Medicine, citado pela NBC News, salientando que havia consenso sobre quem devia estar entre os primeiros. Mas, como acrescenta, não se deu “atenção à logística”, o que acabou por permitir que muitos furassem as regras.
E há exemplos para todos os gostos. Um dos primeiros casos conhecidos, e avançado logo pela CNN, foi o de Rodney Baker, de 55 anos, um milionário da indústria do jogo, e da sua mulher, Ekaterina Baker, de 32, atriz, que resolveram fretar um avião para uma cidade remota no Canadá, onde se fizeram passar por empregados de um motel para serem incluídos nos lotes destinados à comunidade local. “Como muitos, estou chocado e zangado, mas não surpreendido”, comentou pouco depois Kluane Adamek, o responsável regional de Yukon, território no noroeste daquele país, maioritariamente povoado por indígenas, considerando o ato “uma flagrante demonstração de desrespeito”.
“Os jogos da fome das vacinas”
Em Polk County, um dos 67 condados do estado da Florida, o esquema foi mais longe, acabando com a detenção daquele que foi considerado “O paramédico do ano 2020”. Como contou o The New York Times, no final de janeiro, Joshua Colon, de 31 anos, acabou por confessar ter roubado intencionalmente três doses da vacina da Moderna, falsificando depois uma série de documentos, na tentativa de encobrir as suas ações. A seu favor, Coron argumentou que tinha roubado as vacinas a pedido do seu supervisor, Tony Damiano, que foi igualmente detido.
Poucos dias depois, ainda em janeiro, rebentava o escândalo em Filadélfia, onde um estudante universitário de 22 anos ficou encarregue do maior centro de vacinação da cidade. Resultado? Andrei Doroshin, finalista da Universidade de Drexel e responsável da organização Philly Fighting COVID, acabou por levar quatro doses da vacina para casa e inocular os seus amigos.
Nem a elite de Hollywood se conteve nesta corrida desenfreada, como contou à Variety Robert Huizenga, o conhecido médico dos famosos com consultório em Beverly Hills, que teve à porta uma série de membros da indústria do entretenimento a quererem ser vacinados. “É ‘Os Jogos da Fome’ lá fora”, comentou à revista, em off, um dos principais executivos da área do entretenimento. Em toda a Califórnia, sabe-se, relata ainda o USA Today, já não há quase oferta para tanta procura, gente que não tem qualquer pudor em se servir até das redes sociais para procurar – ou dar… – dicas sobre como contornar o sistema.
No Upper East Side, considerado um bairro nobre de Manhattan, o conceituado médico Ed Goldberg, que cobra qualquer coisa como 20 mil euros anuais aos seus doentes, relatou cenário idêntico ao USA Today, como quem diz, uma avalanche de pedidos de consulta caso lhes fosse garantida uma vacina.
Influentes, doadores e angariadores de fundos…
Não demorou a que se multiplicassem também as denúncias sobre uma modalidade de férias que se tornara muito concorrida entre os multimilionários do planeta – pacotes de fim de semana e afins com vacina incluída – instalado em regiões como a Florida. O caso tomou tais proporções que o governador do estado, Ron DeSantis, acabou a instruir o inspetor-geral para analisar criteriosamente os relatórios do MorseLife Health System, um dispendioso centro de cuidados médicos, suspeito de ter facilitado a toma de vacinas a financiadores e restantes membros do conceituado Palm Beach Country Club. Entre eles está, soube, entretanto, o The Washington Post, Robert Fromer, antigo sócio gerente de uma empresa de advogados de Nova Iorque, cuja fundação familiar doou perto de 40 mil euros ao MorseLife Health.
Em Everett, a 40 quilómetros de Seattle, no estado de Washington, rebentava, pela mesma altura, novo escândalo. Desta feita, contava o The Seattle Times, três sistemas médicos tinham igualmente favorecido o acesso à vacina da Covid-19 às pessoas de influência na região. Segundo aquela publicação, o convite a doadores, membros da direção e voluntários da campanha de angariação de fundos do Providence Regional Medical Center seguiu via email. Ao mesmo tempo, o hospital manifestava publicamente dificuldades em fornecer vacinas ao resto da população.
…E políticos também
Com o argumento de promover a segurança e a eficácia das vacinas, sucedem-se ainda os casos de políticos e líderes religiosos a reivindicar a sua vacina antes dos grupos prioritários – mas nem por isso deixaram de ser alvo da crítica pública. Foi o caso de Alexandria Ocasio-Cortez, a famosa congressista democrata na câmara dos representantes, e também do senador republicano Marco Rubio, que, depois de terem recebido as suas vacinas, resolveram partilhar o facto nas redes sociais.
Enquanto isso, milhares esperam horas à porta das clínicas de vacinação em massa, como já se viu em Los Angeles e San Diego, a contar ter sorte no momento em que as equipas de saúde vêm cá fora distribuir vacinas já descongeladas e sem destinatário no dia – segundo dicas entretanto divulgadas nas redes sociais, conta ainda o canal de televisão ABC. Afinal, as diretrizes da Califórnia, tal como de outros estados, preveem que prestadores de cuidados de saúde pssam oferecer tomas a pessoas com menor prioridade, quando sobejam doses prestes a expirar e que, de outra forma, seriam desperdiçadas.