Mãe de três filhos menores e viúva desde 22 de outubro, a senegalesa Fa Mbaye Ngom não sabe o que fazer da sua vida. Com pouco mais de 20 anos, desempregada e sem quaisquer perspetivas de futuro, confidenciou ao jornal catalão La Vanguardia que “só Alá saberá” o que lhe vai acontecer. Religiosa, a rapariga passa agora os dias a rezar e a cumprir o luto pelo marido, Assane, que se afogou no Atlântico quando tentava chegar às Canárias.
A tragédia desta família está longe de ser a única do género em Mbour, uma cidade piscatória e turística, localizada a 80 quilómetros a sul de Dakar, a capital do Senegal. Pelo menos uma dúzia de jovens locais morreu a tentar fazer o mesmo, após ter pago entre 500 e 600 euros, às máfias, para garantir lugar nas tradicionais e coloridas embarcações de madeira. São precisamente estes cayucos, onde chega a amontoar-se centena e meia de pessoas, que fazem as 800 milhas náuticas (perto de 1 500 km), numa traiçoeira viagem que pode durar oito a dez dias, até uma das ilhas Canárias. Para a maioria dos passageiros, mulheres e crianças incluídas, trata-se de uma epopeia pela sobrevivência, porque a maior parte não sabe nadar e depende de uma miserável ração de água e bolachas. Mesmo assim, desde o início do ano, mais de 20 mil pessoas – saídas de Mbour e de dezenas de praias do Senegal, da Gâmbia, da Mauritânia, do Sara Ocidental e de Marrocos – conseguiram chegar ao destino pretendido. Um número sem precedentes desde 2006, quando as Canárias assistiram à chamada “crise dos cayucos”, devido à complicada situação económica e política em vários países africanos, e perto de 32 mil indivíduos zarparam para o arquipélago, com a intenção de se instalarem depois na Península Ibérica e no El Dorado europeu – nessa altura, em fase de grande prosperidade e a precisarem de mão de obra externa.
Desde janeiro, cerca de 20 mil migrantes chegaram às Canárias. Mais de cinco centenas morreram na travessia
Agora, a história é ligeiramente diferente. A militarização e o aumento das patrulhas no Mediterrâneo e no estreito de Gibraltar, os conflitos civis e os ataques terroristas no Sahel e no Golfo da Guiné, a par do recente anúncio de que a Frente Polisário e Marrocos podem acabar com o cessar decretado em 1991, por causa do Sara Ocidental, vieram somar-se aos efeitos devastadores da pandemia. Os marroquinos, por exemplo, representam já metade do contingente de harragas (nome dado, no Magrebe, aos migrantes clandestinos), que se faz ao Atlântico por ter perdido o emprego na restauração, na hotelaria, nos mercados e nos biscates que dependiam diretamente da indústria do turismo. A Organização Internacional para as Migrações, entidade liderada pelo português António Vitorino, considera que “a maioria foge de perseguições e da violência”, mas adverte que a explicação para o êxodo em curso está igualmente na “pobreza extrema”, na “insegurança alimentar” e nas “mudanças climáticas”.
Vírus da xenofobia
Na última segunda-feira, 30, o Governo espanhol anunciou que a situação nas Canárias tende a melhorar, invocando o contexto no cais de Arguineguín, principal ponto de chegada dos migrantes na Grande Canária e que, nos últimos três meses, se tornou o “porto da vergonha”, como lhe chamam várias ONG, devido ao caos e à incapacidade das autoridades de lidar com o problema. As tendas provisórias instaladas no molhe pela autarquia de Mogán e pela Cruz Vermelha chegaram a acolher, em simultâneo, 2 500 pessoas, mas não é pelo facto de estarem agora quase sem gente que a questão está resolvida. Em Madrid, o próprio executivo de coligação entre socialistas e Unidas Podemos está dividido. O primeiro-ministro, Pedro Sánchez, e o titular do Interior, Fernando Grande-Marlaska, defendem a necessidade de manter, no arquipélago canário, a quase totalidade dos migrantes chegados de Tan-Tan, Tarfaya, Dakhla, Nouadhibou, Saint-Louis ou Mbour – e posterior repatriamento. Em contrapartida, o vice-chefe do Governo, Pablo Iglesias, e o responsável pela pasta da Inclusão, Segurança Social e Migrações, José Luis Escrivá, alegam que é urgente aliviar as infraestruturas canárias e que isso não tem necessariamente de provocar um efeito chamada e de atrair novos fluxos migratórios ao arquipélago. A questão é delicada. A 22 de novembro, o Governo nacional deu ordem para serem criados ou ampliados sete centros de acolhimento para estrangeiros nas Canárias – cada um com capacidade para mil indivíduos – até ao fim do presente ano. No entanto, essa iniciativa parece ser insuficiente para as autoridades canárias, que acusam Sánchez e Marlaska de laxismo e má vontade. A líder da autarquia de Mogán, Onalia Bueno, uma antiga dirigente do Partido Popular, considera inaceitável que o erário público esteja a financiar a estada de quase seis mil migrantes em hotéis – num valor de 300 mil euros diários – e fez um ultimato para que tal situação acabe até 31 de dezembro. A autarca invoca a Covid-19, para não ser permitida a livre circulação de migrantes entre a população local e os (poucos) turistas das ilhas. Posição bem mais radical foi apresentada pelos neofranquistas dos Vox. O seu líder, Santiago Abascal, exigiu que a marinha de guerra faça um “bloqueio naval” às Canárias, intercete todas as embarcações clandestinas e as obrigue a regressar ao ponto de origem. O almirante Teodoro Calderón, chefe do Estado-Maior da Armada espanhola, encarregou-se de responder à letra e explicou a Abascal que a obrigação “moral e legal” dos seus homens é “salvar pessoas que se encontrem em perigo no mar”. Se assim fosse, Fa Mbaye Ngom nunca teria enviuvado.