Muitas vezes comparado com o Incrível Hulk e com Winston Churchill, Boris Johnson demonstrou, nos últimos 12 meses, que é uma pequena amostra de ambos. Em julho, após inenarráveis manobras de bastidores, conquistou a liderança do Partido Conservador e do Reino Unido, na sequência da demissão de Theresa May. Para trás ficava a sua velha citação de que a probabilidade de ser primeiro-ministro era equivalente a “cruzar-se com Elvis Presley em Marte ou a reencarnar como uma azeitona”. Durante o resto do verão e outono adentro, perdeu a maioria na Câmara dos Comuns, dissolveu o parlamento, envolveu a rainha Isabel II na polémica, aguentou críticas implacáveis e processos na justiça por pôr em causa as instituições e os equilíbrios constitucionais, incompatibilizou-se com 25 deputados e dirigentes tories, mobilizou o seu Governo numa campanha de propaganda para resolver o impasse do Brexit, anunciou o fim da austeridade e um programa de investimentos megalómanos para conquistar o eleitorado e, finalmente, a 12 de dezembro, os resultados ficaram à vista de todos: Boris alcançou uma vitória histórica, com uma maioria de 80 lugares, algo nunca visto desde os tempos de Margaret Thatcher (em 1983), impondo uma derrota humilhante ao Partido Trabalhista – e ao respetivo líder, Jeremy Corbyn –, que teve o pior desempenho desde 1935.
Pela primeira vez na sua carreira política – iniciada em 2001 –, Boris Johnson tem motivos de sobra para se sentir orgulhoso e dizer que foi capaz de contrariar as apostas dos que o consideravam um mero palhaço, condenado a ser o mais breve primeiro-ministro na História do Reino Unido. A sua esmagadora vitória permite-lhe agora consumar o divórcio com a União Europeia, levar a cabo o seu programa de governo e, se não houver sobressaltos nem contrariedades imponderáveis, ocupar o número 10 de Downing Street até 2024 – ou mesmo 2029, caso vença um segundo mandato.
Assim, Boris já começa a ter alguns motivos para se comparar com o seu ídolo e antecessor no cargo, a quem dedicou uma biografia em 2014, intitulada O Fator Churchill – Como um Homem Fez História. E face à sua idade, 55 anos, e aos seus desafios políticos imediatos, ainda terá oportunidade de mostrar que os seus talentos literários lhe permitem fazer algo melhor do que 72 Virgens, romance que escreveu em 2004 e que recolheu muito mais críticas do que elogios, cujo enredo inclui um terrorista muçulmano que tenta assassinar o Presidente dos EUA. Para já, não é verosímil que Boris receba o Prémio Nobel da Literatura, como aconteceu com Winston Churchill, em 1953, mas já ninguém pode retirar-lhe o título de ser o terceiro primeiro-ministro da Velha Albion com currículo de romancista e de partilhar um pódio que inclui também Benjamin Disraeli, que governou entre 1974 e 1880 e publicou uma vintena de obras de ficção.
As suspeitas russas
“Há apenas algumas semanas, o Reino Unido era visto como o [país] doente da Europa, como uma caricatura de si mesmo. O símbolo das democracias tornara-se, devido ao espetáculo das suas divisões e paralisias, a ilustração mais espetacular da crise das democracias representativas. Hoje, graças à magia do voto, Boris Johnson passou a ser o dirigente político europeu mais forte e também o mais legítimo”, escreveu no diário Les Échos Dominique Moïsi, um dos mais prestigiados e argutos analistas franceses. Para este académico e especialista em questões internacionais, Boris consolida o seu poder em Londres, ao mesmo tempo que a maioria dos líderes do Velho Continente se debate com enormes desafios domésticos e vê a sua popularidade atingir níveis mínimos. Que o digam Angela Merkel, a chanceler da Alemanha, em rota acelerada para a reforma política, Emmanuel Macron, Presidente francês, incapaz de cumprir as suas promessas eleitorais e a contribuir para que o Hexágono continue a ser o país das greves ou Giuseppe Conte, primeiro-ministro de Itália, o tecnocrata que anda sempre a contar os dias para ceder o cargo ao populista Matteo Salvini, a quem as sondagens dão 33% de intenções de voto para liderar o executivo de Roma, caso se confirme o cenário de novas legislativas antecipadas já no primeiro trimestre de 2020.
“Hoje, graças à magia do voto, Boris Johnson passou a ser o dirigente político europeu mais forte e também o mais legítimo”
A forma como Boris Johnson derrotou os seus adversários promete ser um caso de estudo e não é de estranhar que muitos dos seus críticos digam agora que a vitória dos tories a 12 de dezembro só foi possível devido a Jeremy Corbyn, o líder dos trabalhistas, que já anunciou a sua saída de cena mas que se manterá em funções até lhe ser encontrado um sucessor – num processo que poderá arrastar-se até à primavera. Mas não só. Os adeptos das teorias da conspiração acreditam que Boris beneficiou de poderes ocultos e de uma campanha de golpes baixos. Por isso, gostam de invocar o estudo da ONG First Draft, que se dedica a combater a desinformação e as fake news, segundo o qual 88% dos anúncios do Partido Conservador nas redes sociais continham mentiras e erros descarados. Suspeitas que passam inevitavelmente pelo principal conselheiro do primeiro-ministro, Dominic Cummings, autor dos grandes slogans associados ao Brexit e habitualmente descrito como uma personagem genial e demoníaca. A tudo isto há ainda que somar o relatório parlamentar sobre as interferências russas na política britânica, cuja divulgação pública o Governo de Boris Johnson impede há mais de dois meses, e as alegadas ligações perigosas entre o primeiro-ministro e alguns oligarcas russos, nomeadamente Evgeny Lebedev, dono dos jornais The Independent e Evening Standard. A questão de fundo vai sempre dar ao mesmo: o Partido Conservador terá recebido, nos últimos nove anos, mais de 3,5 milhões de libras (4,1 milhões de euros) de doadores russos sem que se saiba exatamente com que propósito e com que contrapartidas. Pelo meio, falta igualmente explicar qual o papel de Lubov Chernukhin, mulher de um antigo aliado e colaborador de Vladimir Putin, que em 2014 pagou 160 mil libras para disputar uma partida de ténis com Boris Johnson e David Cameron (o primeiro era então presidente da câmara de Londres e o segundo, primeiro-ministro). No entanto, ao contrário do que sucedeu nos EUA com a eleição de Donad Trump, em 2016, ninguém se atreve a dizer que o poder de Boris Johnson é o resultado de uma qualquer manobra do Kremlin ou de um grupo de ciberpiratas a soldo de Moscovo. A velha democracia britânica continua a dar sinais de boa saúde e, no final de 2019, não deixa de ser surpreendente que o novo executivo de Londres tenha uma esmagadora maioria parlamentar e sem paralelo no resto da Europa.
No Velho Continente, o maior paradoxo reside no facto de Boris e de demais líderes classificados como populistas serem também aqueles que contam com executivos mais estáveis. Viktor Orbán, o primeiro-ministro húngaro, averbou em outubro a sua primeira derrota nas urnas em quase uma década, mas o mau resultado nas autárquicas, em que o seu partido perdeu o controlo de Budapeste e de 17 outras cidades magiares, não o impede de continuar a governar de forma “iliberal”. A União Europeia acusa-o de minar o Estado de Direito mas Orbán, à moda de Donald Trump, fala de uma caça às bruxas, insulta adversários, identifica inimigos reais ou imaginários – em particular, o multimilionário George Soros – e continua a esmagar a oposição e a restringir liberdades e garantias.
O vírus da revolta popular fez cair três presidentes e dois primeiros-ministros em 2019. Apesar do seu processo de destituição, Trump está a salvo
Receita idêntica tem sido aplicada na Polónia, onde a deriva autoritária também já levou Bruxelas a invocar o Artigo 7 do Tratado de Lisboa que, no limite, pode privar Varsóvia de fundos comunitários e do direito de voto nas instituições comunitárias. Só que o Lei e Justiça (PiS), partido que monopoliza a política polaca desde o início do século, não se desgasta com o exercício do poder absoluto. A 13 de outubro, reeditou a maioria parlamentar e só o avanço de uma renovada formação de extrema-direita, a Confederação, veio interferir na sua agenda nacionalista e ultraconservadora.
Tanto a Polónia como a Hungria contam com mediáticas e influentes personalidades que tentam rumar contra o statu quo, sem grandes resultados. Já este mês, o polaco Donald Tusk, ex-presidente do Conselho Europeu nos últimos cinco anos, aproveitou o lançamento da sua autobiografia para apelar aos seus compatriotas para que se rebelem contra o “Executivo putrefacto” que os esmaga e tudo faz contra a democracia e o planeta – incluindo bloquear os planos da UE para suprimir as emissões de CO2 até 2050, numa manobra já vista como prenúncio do Polexit, o eventual abandono da organização para a qual entrou há 15 anos e que Varsóvia agora apresenta como a “nova União Soviética”, uma entidade controlada por feministas e ideólogos defensores do aborto e dos interesses LGBT. Só esta postura permitiu que, em abril, a cidade de Gdansk tenha assistido a um auto de fé em que dezenas de livros e objetos tenham sido queimados por ofenderem a cultura e a religião católicas. Entre as peças diabólicas estavam obras como Harry Potter e máscaras africanas. Manifestações de intolerância que têm aprofundado as divisões entre os habitantes de toda a Europa Central e de Leste, à semelhança do que acontece em vários outros pontos do globo.
Radicalismos históricos
Na Índia, as políticas do primeiro-ministro Narendra Modi conhecem agora uma vaga de contestação sem precedentes desde a sua chegada ao poder, em 2014, e tudo aponta que está para durar. O governante, um nacionalista hindu que não esconde os seus preconceitos religiosos, decidiu suspender em agosto a autonomia de Caxemira, impondo um bloqueio total à região disputada com o vizinho Paquistão que lhe mereceu o repúdio de organizações como a Amnistia Internacional. E, na última semana, aprovou uma alteração à lei da nacionalidade que permite a legalização dos hindus oriundos dos países limítrofes e que prejudica claramente os 200 milhões de muçulmanos indianos, em particular os habitantes de Assam, estado onde quase dois milhões de pessoas podem tornar-se apátridas.
No Brasil, o primeiro ano de governo do Presidente Jair Bolsonaro em nada contribuiu para reconciliar os brasileiros. Pelo contrário. O antigo capitão e a sua família parecem talhados para alimentar polémicas e escândalos, enquanto a situação do país se degrada. A economia continua a crescer de forma residual, a reforma do sistema de pensões ainda não produziu efeitos, o número de desempregados permanece nos 13 milhões e a destruição da Amazónia é uma realidade insofismável. Por sorte, o maior país da América Latina ainda não foi palco de cenas de guerrilha urbana como as que se têm registado na Nicarágua, no Chile, na Bolívia, no Sudão, na Argélia, no Iraque e no Irão. A única certeza, nos tempos que correm, é que o vírus do descontentamento contra a corrupção e contra as elites parece estar fora de controlo em vários pontos do globo, tendo provocado a queda de três presidentes e de dois primeiros-ministros desde o início do ano. Uma estatística que dificilmente vai crescer à custa de Donald Trump, apesar do processo de destituição de que está a ser alvo. A única preocupação do inquilino da Casa Branca é ser reeleito em 2020 e conquistar um lugar na História como grande estadista. O futuro de certeza que vai dizer-nos se ele e se Boris Johnson merecem ser recordados como super-heróis ou como vilões.