São centenas as crianças que, já antes do ciclone Idai, não tinham acesso a educação na região da Beira – ou por falta de salas, ou de professores, ou de meios para chegar até à escola mais próxima. Depois de a tempestade ter assolado a região, os números não melhoraram. No entanto, há várias organizações não-governamentais que se juntam às centenas de missões religiosas no terreno e que trabalham em prol da educação destas crianças há anos. É o caso das portuguesas HELPO, cujos responsáveis falaram recentemente com a VISÃO, e The Big Hand, que se prepara para cumprir 10 anos de vida.
“Nós estamos na zona centro de Moçambique há 10 anos, a trabalhar nas áreas da educação e também um pouco na área da saúde – atualmente apoiamos cerca de 600 crianças órfãs vulneráveis e milhares de outras a quem facilitamos o acesso à educação”, explicou David Fernandes, fundador da The Big Hand, num telefonema entre Portugal e Moçambique. Foi nesse contexto que a multinacional Grenke decidiu apoiar a ONG e se comprometeu a garantir a presença de um professor para dar formação a outros líderes naquele país, durante um ano. “É um investimento direto de cerca de €10 mil que nunca teríamos possibilidade de fazer”, revela David. Esse montante servirá para assegurar o salário, seguros e deslocações do profissionais durante um ano.
Apoio estruturado
No seguimento dos emails trocados com a Grenke na altura do ciclone, em que foi preciso reforçar a presença no terreno, e com quem já existe uma boa relação há vários anos, o fundador da ONG acabou por “desabafar que o volume de trabalho estava tão alto e que acabou por agonizar ainda mais” a atividade da The Big Hand. “E referi que o ideal era termos um recurso humano que estivesse comprometida por um ano, e que pudesse vir ajudar-nos. Foi quando ele [os responsáveis da multinacional alemã], mais uma vez, de uma forma estruturada, sustentada e com expetativas de retorno, nos perguntaram do que é que precisávamos”, conta ainda o responsável.
“Eu disse que precisava de ‘pocket money’ e também que fizessem o recrutamento de uma pessoa capaz para nos vir ajudar. E a Patrícia, no caso, que é especialista de RH e que trabalha na empresa, dedicou tempo dela, voluntariamente, para selecionar e recrutar a pessoa certa”. Algo que a ONG, sozinha, dificilmente faria, “até porque é muito difícil justificar que se use orçamento para um processo destes”.
Construir, capacitar, deixar crescer
Com uma verba anual média de €170 mil, a The Big Hand vive sobretudo de padrinhos anónimos e de empresas que fazem parcerias com a organização para alguns projetos concretos. A ONG recupera escolas, faz furos de água, dá formação a professores e líderes das comunidades e depois disso sai das aldeias e recomeça num outro lugar. Ao abrigo de parcerias com o governo central e os postos administrativos, já foi possível chegar a milhares de crianças.
Só esta pessoa que a Grenke ajudou a recruar “vai ajudar em 4 aldeias, o que tem um impacto estimado em 8 000 crianças. Para além das crianças que vivem fora do sistema”, explica David. “Esta ajuda técnica permite alavancar imenso o nosso trabalho: 90% do que fazemos é na área da educação, e esta pessoa vai estar no terreno, naturalmente, mas queremos que numa lógica de sustentabilidade ela capacite e forme professores, ativistas e tutores em como planear aulas, trimestres; em direitos humanos; em alguns conceitos básicos dos professores e também no padrão geral de higiene e alimentação”, que em países em desenvolvimento tem uma importância significativa.
As palavras de David são secundadas por Sofia Antunes, diretora de Recursos Humanos da Grenke. “A Grenke Renting, S.A. e a BIG Hand têm uma história de amizade já antiga. Apoiamos a BIG Hand desde a data da sua constituição e temos estado presentes em diferentes momentos, apoiando de diversas formas. A iniciativa de apoiar a contratação de um professor de professores surgiu numa conversa com o fundador e presidente da ONG, David Fernandes”, explicou à VISÃO numa declaração por email. “O projeto consiste no desenvolvimento de uma Academia de formação de professores, educadores e tutores com o principal objetivo de capacitar os agentes de educação locais com técnicas e conhecimentos adaptados à realidade em que se inserem, de forma a aumentar a qualidade do ensino e respetiva capacidade de aprendizagem das crianças moçambicanas”.
Sofia salientou ainda que a empresa acredita “que mais do que ‘dar o peixe deve ensinar-se a pescar’”, pelo que abraçaram “este projeto com todo o empenho”.
As aldeias
Num país onde as necessidades são sempre superiores às ajudas possíveis, as aldeias onde a The Big Hand atua vão aparecendo muito organicamente. Ou porque as próprias comunidades pedem ajuda, ou porque os responsáveis têm conhecimento de aldeias onde não chegam as missões que já estão no terreno, há sempre uma escola para construir num próximo destino. Foi o que aconteceu em Montechimoio. “Logo após o Idai, o líder veio pedir-nos muita ajuda e depois de lá irmos ver a aldeia, começámos a trabalhar. Estava tudo destruído e, portanto, assim que passou a tempestade começámos imediatamente a agir. Mas é uma aldeia tão precária que não tem água, não tem salas e a degradação é tão grande que há muitas crianças que aos 10 ou 12 anos ainda não falam português. E encontramos muitas vezes crianças mais velhas a tentar ajudar as mais novas”.
Os números que não melhoram
Ciclos que é preciso quebrar, sobretudo para que as crianças de hoje possam ser adultos mais capacitados amanhã. Moçambique ocupa atualmente o 180.º lugar no índice de desenvolvimento humano, que contabiliza 189 nações. A pobreza atinge mais de 70% da população, cuja esperança média de vida à nascença é de 60,2 anos.
Números que fazem as ONG agir, sobretudo quando o país tenta reconstruir-se de dois ciclones que, no ano passado, agravaram consideravelmente os já difíceis indicadores económicos e sociais. Há mais de um milhão de pessoas em risco de carência alimentar, e milhares de crianças desnutridas em todo o país.
A época das chuvas ainda agora começou, mas o início de 2020 já provocou inundações e destruições Cabo Delgado, região que tem sido também assolada por uma onda de violência que já dura há pelo menos dois anos.
Se ainda há esperança de que a educação funcione como elevador social, em Moçambique essa é a força motriz de muitas das organizações humanitárias que continuam no terreno – os mais recentes relatórios da ONU davam conta de que serão mais de 100, atualmente.
Para David Fernandes, que fundou a The Big Hand em 2010 depois de dois anos em missão em Moçambique, essa é também uma certeza: a de que pelas crianças tudo vale a pena.