Foram cerca de 1,8 milhões de desalojados sem acesso às necessidades mais básicas e centenas de mortos, os resultados da passagem do Idai e do Kenneth pelo centro e norte de Moçambique, respetivamente. O primeiro ciclone atingiu ainda o Maláui e o Zimbabué, ainda que em menor escala.
A poucos dias de se assinalar o oitavo mês desde que o Idai, já apelidado de uma das piores tempestades a atingir África, tocou a costa da Beira, a 14 de março, todos os relatórios apontam no mesmo sentido: ainda está quase tudo por fazer, as necessidades básicas não estão asseguradas, a comida deverá escassear ainda mais antes de aumentar, e pouco foi feito para garantir que outra tragédia não atinge o país.
Um documento do Disasters Emergency Committee – uma organização inglesa que reúne várias organizações não-governamentais e atua em casos de emergência provocada por catástrofes em redor do mundo – salienta que apesar de a primeira resposta ter sido fundamental, e ter garantido que os sobreviventes eram resgatados e mantidos com vida e que os primeiros socorros eram prestados a toda a população afetada, a verdade é que vários constrangimentos foram dificultando os trabalhos ao longo do tempo. O relatório do DEC refere ainda que todos os esforços que foram implementados pelas ONG que lhe pertencem e que chegaram à Beira foram financiados apenas em 46%, o que significa que há um défice claro de dinheiro para se conseguir, com sucesso, implementar a fase dois – que começou em outubro – da operação.
O DEC nota ainda que o Instituto Nacional de Gestão de Catástrofes (INGC) de Moçambique, responsável pela prevenção e mitigação dos efeitos dos desastres nacionais não permitiu o uso de dinheiro para atribuição de subsídios, autorizando apenas a utilização de vouchers, o que dificultou bastante a atuação das ONG que colaboram com o DEC.
Milhares de crianças em risco
Ainda assim, lê-se no mesmo relatório, que data do final do mês passado, várias ONG mostraram grande capacidade de se adequar ao contexto e às dificuldades que foram surgindo, e arranjaram alternativas aos planos iniciais para não deixar as populações sem apoio.
A falta de alimentos continua a ser uma das maiores fontes de preocupação das várias organizações que ainda se encontram no terreno, numa altura em que a época de ciclones e chuvas se aproxima. O Idai destruiu cerca de 75% das colheitas da região da Beira, e o estado dos solos não permitiu a replantação das culturas. Nos poucos lugares em que foi possível, várias pragas acabaram por atacar os primeiros alimentos que surgiram. A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) estima que 1,6 milhões de pessoas estejam inseguras no que toca a uma alimentação suficiente, e nota que 770 hectares de culturas foram destruídos tanto pelo Idai como pelo ciclone Kenneth (que atingiu a zona de Cabo Delgado em abril). Em termos globais, revela ainda a mesma agência, há mais de 1,4 milhões de pessoas que receberam ajuda desta entidade das Nações Unidas durante este ano, e ao abrigo do plano de resposta humanitária para Moçambique.
Quanto às crianças, a FAO estima que sejam cerca de 67 mil as que sofrem atualmente de subnutrição, e salienta que este número “poderá aumentar drasticamente sem um apoio sustentado e iniciativas resilientes. Espera-se que a situação se deteriore nos próximos meses e que dois milhões de pessoas enfrentem níveis de crise e emergência no que diz respeito a comida”. Só para conseguir fazer face às necessidades mais imediatas, esta organização precisa de 23 milhões de euros, avisa.
No mesmo relatório, datado de outubro deste ano, a FAO garante que continua a dar apoio às populações mais afetadas, ajudando a reabilitar infraestruturas e culturas e tentando restabelecer as culturas para que as famílias consigam ter acesso a alimentos durante todo o ano. Ainda assim, avisa, “é preciso que a comunidade aja em conjunto para assegurar que as populações das zonas rurais e semi-rurais estão protegidas de cair em níveis mais graves de insegurança alimentar e desnutrição num futuro próximo”.
Ajuda humanitária não tardou mas é insuficiente
Assim que foi possível aterrar na Beira, várias organizações humanitárias internacionais chegaram ao terreno para ajudar a retirar corpos dos escombros, sobreviventes das árvores e telhados, e os objetos que era possível salvar dos destroços que ficaram. Durante várias semanas foram chegando toneladas de comida, de alimentos, de medicamentos e de equipas técnicas que deram a resposta mais rápida possível aos milhares de afetados pela pior catástrofe natural do século na antiga colónia portuguesa. Em Portugal multiplicaram-se as ações de solidariedade, entre concertos, revistas solidárias, angariações de fundos e doações particulares, de autarquias e de empresas privadas.
O Fundo Monetário Internacional, que praticamente cortou relações com Moçambique após o escândalo das dívidas ocultas, há três anos, canalizou um empréstimo de emergência no valor de 118 milhões de dólares.
No entanto, os valores que chegaram ao país têm-se revelado insuficientes e estão longe de atingir os 3,2 mil milhões de dólares necessários, esclareceu recentemente a representante do governo moçambicano numa cimeira em que se discutia a reconstrução dos países afetados pelo Idai. “Pensávamos que íamos conseguir angariar mais dinheiro quando lançámos o nosso apelo”, referiu Nádia Adrião no Zimbabué, citada pela Deutche Welle.
A Cruz Vermelha Portuguesa, os Médicos do Mundo e a AMI são algumas das instituições portuguesas que ainda se encontram no terreno a desenvolver missões de apoio aos sobreviventes dos ciclones, mas deverão terminar em breve os seus trabalhos e regressar a Portugal.