“Já muito foi feito, mas há ainda muito a fazer”, resume à VISÃO Pedro Monjardino, o coordenador dos Médicos do Mundo (MdM) Portugal em Moçambique. O responsável explicava a mudança de mãos que ocorreu no centro temporário que serve de casa a mais de 2000 desalojados, vítimas do ciclone Idai, que em março devastou a região da Beira, em Moçambique.
A delegação portuguesa da MdM substitui, desde 1 de agosto, a congénere espanhola na missão de assegurar a prestação de cuidados de saúde àquelas pessoas. A missão tem uma duração inicial prevista de 10 meses, mas Monjardino acredita que é possível, para além de desejável, continuar no terreno depois disso.
“Temos três objetivos principais: a prestação de cuidados de saúde às populações, a elaboração de ações de sensibilização e a capacitação de profissionais locais”, que são maioritariamente a primeira linha de intervenção. “As pessoas estavam até agora divididas por três campos temporários. Agora estão todas juntas no centro Ndjena, a 30km da vila de Nhamatanda. Estamos a falar de cerca de 2 500 famílias”, nota. “Um médico em África é um pilar da garantia de sobrevivência de uma comunidade”. Daí que a formação seja um ponto fundamental, e não possa ser interrompida, sob risco de impactar significativamente a vida das populações.
A delegação espanhola saiu de Nhamatanda para regressar aos projetos que tem em desenvolvimento na província de Cabo Delgado, no norte de Moçambique, segundo explicou o mesmo responsável à VISÃO. Monjardino salientou que a missão da MdM Espanha na região sempre foi algo temporário.
Num comunicado enviado às redações, a Médicos do Mundo esclarece que a primeira equipa da delegação portuguesa que chegou ao terreno é composta por um médico cardiologista, uma médica de Saúde Pública (que é também quem assume a coordenação do projeto) e uma enfermeira. Até ao fim da missão, e numa base mensal, estas equipas vão sendo substituídas no terreno, havendo também alternância dos médicos especialistas: até janeiro deverão passar por aquele campo especialistas em pediatria, medicina interna, infeciologia e medicina geral e familiar, refere o mesmo comunicado.
Mas para Monjardino, estes 10 meses são apenas o início. “Estamos a concorrer a vários projetos, nomeadamente com a Organização Mundial de Saúde (OMS) e a Unicef, que permitam reforçar e estender a nossa presença no terreno”. É que para já o orçamento é de apenas 50 mil euros “e é com esse dinheiro que estamos a fazer as contas para sobreviver até ao final da missão”. É dinheiro proveniente do fundo de emergência da MdM Portugal, mas é insuficiente para tudo o que é necessário fazer. É que num país onde milhares de pessoas perderam tudo, os projetos prioritários exigem músculo financeiro. “Tem que haver casas para as pessoas, escolas para as crianças e tem que se dotar a população de utensílios para produzirem os seus alimentos”, diz em jeito de resumo. Porque, cinco meses depois, a urgência continua a ser alimentar a população.
Recorde-se que o ciclone Idai atingiu a costa moçambicana a 14 de março de 2019, tendo depois as suas consequências sido agravadas por chuvas fortes em toda a região da Beira. Estima-se que o número de mortos tenha ultrapassado o milhar. A expressão mais ouvida por quem esteve no terreno após a passagem do ciclone, considerado o pior da história do hemisfério sul, foi “perdi tudo”. E, por tudo, entenda-se tudo: vilas, aldeias inteiras foram dizimadas pela força das águas e dos ventos. Perderam-se casas, colheitas, utensílios, pertences, pais, filhos, avós, famílias. Na ocasião, as autoridades davam conta de que cerca de 90% da região da Beira tinha sido “arrasada”.
Isto significa que quem não perdeu todas as colheitas vendeu o pouco que lhe sobrou, e quem perdeu não tem dinheiro sequer para voltar a semear. E, como num circulo vicioso, a saúde das populações ressente-se dessa escassez que não há forma de mitigar – é que com uma redução estimada de 30% na produção agrícola, os preços dos alimentos dispararam e tornaram a vida difícil até para quem não foi diretamente afetado pelo Idai.
Com mais de 20 anos de experiência naquele país africano, Monjardino esteve, aquando do Idai, a ajudar a equipa da Cruz Vermelha Portuguesa na sua intervenção no terreno. Pouco depois seria desafiado pela MdM Portugal para continuar a ajudar as equipas nacionais, nos tempos pós-ciclone. Hoje, portanto. “Assim que o Idai terminou houve várias ONG a apoiar as populações, imediatamente, mas agora são muito poucas as que estão disponíveis para a fase de reconstrução do país”. Por essa razão, Monjardino quer não só garantir que consegue melhorar as condições do campo de Nhamatanda, agora ao cuidado da equipa portuguesa – e dotá-lo de um Centro de Saúde e de uma escola [“se o ministério da Educação assim o entender”] que possa dar resposta às crianças “que estão numa situação de muita fragilidade” – como, quem sabe, ajudar e até ficar com a responsabilidade de outros campos do país. “Estaremos sempre em contacto com os governantes moçambicanos” para dar continuidade ao projeto e vão iniciar brevemente duas campanhas de angariação de fundos. Uma externa, dirigida às comunidades portuguesas que possam ter condições para ajudar a Médicos do Mundo – como é o caso da África do Sul, onde vivem mais de 400 mil portugueses – e outra interna, dirigida às empresas nacionais e estrangeiras que operam em Moçambique e que são parceiros fundamentais para conseguir reerguer um país que deverá demorar anos até voltar, simplesmente, ao estado em que estava antes daquele dia 14 de março.
“Não quero que as minhas palavras sejam mal interpretadas, mas não tenho medo de Moçambique. Precisamos de ter as condições para executar o projeto. Portanto, precisamos de ter orçamento”, diz em jeito de resumo. À VISÃO, o responsável congratula-se ainda por este regresso da MdM Portugal a Moçambique depois de praticamente cinco anos sem ter missões naquele país, com quem partilha tanta história.
Questionado sobre como vê Moçambique cinco meses depois do Idai, Monjardino prefere contar uma história. “Entrei num restaurante na zona da Beira, pouco depois do ciclone e estava a chegar uma das funcionárias, com uma expressão muito carregada. A dona perguntou-lhe o que se passava. E a Rosa – era esse o seu nome – disse apenas: desapareceu tudo. Tinha perdido casa, colheita, filhos. Acho que isto responde à sua pergunta”.
Dez dias depois de o ciclone Idai ter chegado a Moçambique, e numa parceria inédita firmada com a Cruz Vermelha Portuguesa, que se deslocou também à Beira, a MdM nacional enviou para aquele país uma equipa de 6 médicos, 7 enfermeiros, 2 coordenadores, 2 psicólogos, 2 logísticos e 1 farmacêutica. Na mesma ocasião seguiam também 30 toneladas de ajuda humanitária, incluindo medicamentos, material médico e medicamentos.