A rede de inimigos do Papa é poderosa e continua a estender-se. Ultraconservadora, é liderada pelo cardeal norte-americano Raymond Burke, que Francisco afastou de prefeito da Ordem de Malta e da presidência do Supremo Tribunal Canónico, por causa das suas posições contra os homossexuais. E a influentes prelados que estão com Burke juntaram-se-lhe Steve Bannon, o ex-estratego de Donald Trump, e Matteo Salvini, ministro do Interior italiano e líder da Liga, partido de extrema-direita.
Dir-se-ia que é uma equipa suficientemente talentosa para colocar o Papa em apuros, no momento em que Francisco surge mais fragilizado pelas denúncias sucessivas de escândalos de pedofilia na Igreja, dos EUA à Austrália, da Irlanda ao Chile, que caíram sobre o seu mandato com o estrondo de um megameteorito. O primeiro tiro de canhão seria disparado contra Francisco na data certa – 26 de agosto passado, último dia de uma difícil visita do Papa à Irlanda, onde reiteradamente se penitenciou pelos abusos sexuais de menores por clérigos desse país, ao mesmo tempo que enfrentava críticas e protestos. Naquele dia, o arcebispo italiano Carlo Maria Viganò, conhecido ponta de lança da ala ultraconservadora do Vaticano e ex-núncio apostólico nos EUA, divulgou uma carta que escreveu, com 11 páginas, em que pede a renúncia de Francisco, que acusa de encobrir os abusos sexuais perpetrados pelo cardeal norte-americano Theodore McCarrick, o qual “corrompeu gerações de seminaristas e padres”.
No avião de regresso a Roma, o Papa mostrou que também é exímio em jogos de poder. Disse aos jornalistas que tinha lido a carta de Viganò (publicada em diversos órgãos de comunicação católicos conservadores), que nem sequer lhe respondia, e convidou os repórteres a investigarem a veracidade das alegações do arcebispo. Resultado: as acusações de Viganò têm sido desmontadas na imprensa internacional, uma atrás da outra. Mas algo mais há de seguir-se. Burke, que quer obrigar o Papa a resignar, e Francisco, que não tenciona dar essa satisfação ao cardeal ultraconservador, sabem que têm uma data-limite para o desfecho da guerra em que estão envolvidos – novembro próximo, mês em que bispos de todo o mundo se reúnem em Roma. A de setembro, na homilia da habitual missa que celebra todas as manhãs na capela de Santa Marta, no Vaticano, Francisco elevou a parada, ao evocar Satanás, figura que parecia arredada do seu papado: quando há discussões entre membros da família, “vemos que o Diabo está lá a querer destruir-nos”, disse.
Bispos portugueses apoiam Francisco
Nas manobras que em surdina tem desenvolvido no centro do poder, a Santa Sé, o Papa mostra-se à altura das propostas “arrojadas” (embora também haja quem lhes chame “tímidas”) que avança para alterar posições tradicionais da Igreja, da sexualidade (que pode incluir o celibato facultativo para padres) ao acolhimento eucarístico de divorciados, recasados e homossexuais. Mas houve um assunto que Francisco decidiu resolver desde já, de viva-voz: libertou a doutrina católica de qualquer justificação moral para a pena de morte. Outro escândalo para os furibundos ultraconservadores, sobretudo os norte-americanos.
“Com o último consistório, Francisco deu um passo muito grande para moldar o colégio de cardeais eleitores à sua medida”, diz Paulo Mendes Pinto, coordenador da área de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona. Acrescenta que “esta tensão em torno da pedofilia surge, talvez, como a última oportunidade para os setores contrários a Francisco tentarem fazer algo antes de o colégio de cardeais estar totalmente perdido e maioritariamente ao gosto do Papa”.
Paulo Mendes Pinto verifica que “esta pressão sobre o Papa levou muitos bispos e cardeais, alguns até conservadores, a clarificarem a sua posição e a assumirem estar ao lado de Francisco”. Porventura, observa, “esta foi a oportunidade de que Francisco necessitava para dar arranque a uma reforma de fundo”.
Os cardeais e bispos portugueses são um bom exemplo. Em abril de 2015, noticiou-se uma agitada reunião plenária da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), que debateu o acesso de divorciados recasados, que querem continuar integrados na Igreja, à comunhão eucarística. Apenas sobre esta questão, o Papa convocou dois sínodos. Ao que na altura se apurou, o parecer enviado pela CEP para Roma, após votação, chumbava a proposta de Francisco. Só por dois votos, como na ocasião se soube, a ala conservadora, supostamente liderada pelo cardeal-patriarca de Lisboa, Manuel Clemente, com o argumento de que “não se pode pôr em causa a doutrina”, venceu o grupo liberal, favorável à posição do Papa e alegadamente encabeçado pelo então bispo (hoje cardeal) de Leiria-Fátima, António Marto.
Muito diferente foi a carta que, também a 3 de setembro, a hierarquia máxima da Igreja portuguesa enviou ao Papa. “Os bispos de Portugal reunidos em Fátima, no Simpósio Nacional do Clero, (…) aproveitam esta ocasião para, antes de mais, agradecer a Sua Santidade a oportuna e corajosa Carta ao Povo de Deus, sobre o drama do abuso de menores por parte de membros responsáveis da Igreja”, lê-se no documento. Depois, os bispos portugueses criticam as “tentativas de pôr em causa a credibilidade” do Papa e manifestam “fraternal proximidade e o total apoio” a Francisco neste momento difícil, enfatizando que estão em “plena comunhão” com o líder da Igreja.
A este propósito, Paulo Fontes, diretor do Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica, diz que o Papa revela saber que “as reformas que pretende empreender não podem partir só do centro”. Se assim fosse, “colapsavam”. Por isso, remete questões de tão grande importância social, como os escândalos de pedofilia, “para toda a Igreja, para o ‘povo de Deus’”. Não “por culpa”, mas “por responsabilização, porque sabe que o único mecanismo em que se pode apoiar tem de ser dinâmico, envolvendo paróquias e episcopados locais, que deem sustentação a esta vontade de mudar regras e de refletir sobre problemas, permitindo à Igreja no seu todo avançar, até para um novo posicionamento na sociedade”.
António Marujo, jornalista do blogue Religionline, reforça que “um Papa sozinho não muda a Igreja – nem o mundo”. Por isso, diz, “seria crucial a hierarquia católica lançar iniciativas, propostas e debates concretos sobre os temas para os quais o Papa não se cansa de chamar a atenção e de tomar a dianteira: a centralidade de Deus e de Jesus (e não da instituição); a participação dos leigos (e das mulheres) nos processos de decisão; a atenção aos pobres, refugiados e desfavorecidos; a centralidade da pessoa nas decisões da economia e da política; a preocupação com a ‘casa comum’…” Quando isto surgir no quotidiano, “teremos os católicos portugueses a ‘apoiar’ o Papa”, diz António Marujo, a propósito da carta dos nossos bispos a Francisco. “Até lá, são palavras. Importantes, mas apenas isso.”