A policia de Nova Iorque confirmou esta sexta-feira, 25 de maio, que o produtor e realizador americano andava a ser investigado desde novembro. Apesar de nessa altura estarem a ser feitas diligências para um mandado de detenção, à medida que os trabalhos foram avançando aumentou o clima de tensão entre a procuradoria e as autoridades policiais. Agora que Weinstein se entregou às autoridade, vai pagar uma fiança no valor de um milhão de dólares em dinheiro e usar um equipamento de monitorização, ficando condicionado nas suas deslocações, até porque ficará ainda sem o passaporte. Com base nos dados disponíveis, Harvey será acusado de crimes de fraude por angariação de fundos e pagamentos para manter pessoas em silêncio, e por crimes de violação e assédio. As queixas de duas das mulheres que o denunciaram, Ambra Battilana e Lucia Evans, não prescreveram por envolverem compulsão forçada, cujo limite de tempo foi levantado após 2001.
Para quem acreditava que a indústria cinematográfica cultivava um espírito aberto e que estas acusações eram rumores inventados por pessoas que não tinham conseguido a fama almejada, este foi um verdadeiro balde de água fria. Estávamos longe de imaginar que o cérebro a quem devemos filmes icónicos como Sexo, Mentiras e Vídeo, O Paciente Inglês, Pulp Fiction ou o programa televisivo Project Runway e que conquistou seis Oscars de melhor filme, tivesse um lado tão sombrio ao ponto de alavancar movimentos como o #MeToo. Ainda não há muito tempo ele era o Democrata humanitário que angariava fundos para a campanha presidencial de Hillary Clinton (2016); o homem com quem Jeff Bezos, da Amazon, se aconselhava, nos seus negócios; o empregador da filha mais velha do casal Obama, durante o seu ano de estágio. E o rosto que fazia passar, nas películas que assinava, uma certa ideia de feminilidade, romance e sexo (quem não se lembra de Catherine Zeta-Jones “Chicago”, apenas para citar um exemplo?).
Como foi possível?
É certo que Harvey, co-fundador da Miramax e, mais tarde, dono da empresa com o seu nome, era uma figura pública muito acarinhada e um exemplo do que é um homem de sucesso, na carreira e na vida familiar. Casado duas vezes (com a sua assistente Eve Chilton, a quem se seguiu a designer de moda e atriz inglesa Georgina Chapman) e com cinco filhos, era o homem que vivia na Grande Maçã e que cultivava o gosto por hotéis de luxo. Mas… e há sempre um mas, na ficção e na realidade, o seu lado sombrio era conhecido na indústria por algumas pessoas. A má reputação corre depressa e o homem forte de Hollywood parece ter forçado os seus colaboradores a assinarem contratos com cláusulas de confidencialidade em que se comprometiam ficar com as bocas fechadas ou calando-as a troco de dinheiro. Em três décadas, a sua faceta de joker foi ganhando terreno e tornando-se maior que ele, insaciável e próxima da insanidade. ter um segredo não ter sido assim tão bem guardado e ser do conhecimento de meio mundo. Eram ainda conhecidos os seus ataques de fúria e de raiva, a forma misógina como tratava as mulheres, segundo diversos empregados seus.
Não fosse a grande investigação do The New York Times, que fez mais de 200 entrevistas e consultou registos internos e material privado e talvez este caso tivesse caído no esquecimento, sem se levar a sério uma ou outra queixosa… A teia de Harvey envolvia subordinados, políticos e media. Entre elogios e ameaças, subornos e manipulações, o produtor tornou-se um especialista a abafar escândalos. Segundo a investigação da New Yorker, o realizador teria ligações a antigos espiões israelitas e, através deles, tentava impedir a publicação de notícias que o prejudicassem, chegando mesmo a comprar direitos sobre histórias que comprometessem a sua imagem de forma a nunca chegarem a ver a luz do dia.
Aos 66 anos, o homem aparentemente intocável, que usava a sua influência, fama e poder para intimidar as suas vítimas, é acusado de violação em primeiro e terceiro grau com pessoa não identificada e crime sexual em primeiro grau com base num encontro com Lucia Evans, que ele terá forçado a fazer sexo oral, num casting da Miramax, disseram as autoridades policiais de Manhattan. Entre as acusações, o assédio sexual e a perseguição de estrelas de cinema e empregados da sua companhia ao longo de décadas, pagando-lhes ou ameaçando-os para se manterem calados. Há quem diga que ela é a ponta do iceberg, o rosto de uma certa maneira de estar na vida, entre homens brancos, bem sucedidos no meio da vida e com carisma. Há quem diga que nada disto é novo. Em certa medida, talvez o seja para o homem de quem se fala há bons meses, agora investigado pelo FBI e a braços com a justiça e a condenação pública à escala global: a vida, ao que parece, deixou de ser bela para ele. Por agora.
Cronologia
1991: A ex produtora irlandesa Laura Madden, foi das primeiras a fazer saber que se sentiu manipulada com as demandas do produtor nos hotéis de Dublin e Londres. Renunciar satisfazer os seus pedidos, de massagens e não só, acabaria por revelar, fazia com que as pessoas visadas sentissem que o problema eram elas, caso viessem a ser postas de lado no mercado de trabalho.
1998: A assistente Zelda Perkins confrontou o “agressor” em Londres, advertindo-o de que se não colocasse um ponto final à sua conduta abusiva o faria ela mesma, tornando o fato público. Fonte da Miramax sugeriu que ambos terão feito um acordo e Zelda retomou a sua carreira enquanto produtora teatral. Meses depois, Weinstein brilhava na cerimónia dos Óscares com o filme “A Vida é Bela” e “Shakespeare in Love”, com arrebatanto10 prémios.
1997: O produtor convida Ashley Judd a ir ter com ele ao Hotel Peninsula Beverly Hills para um pequeno almoço de negócios. Confrontada com propostas indesejadas para entrar no quarto de um Weinstein em roupão a solicitar-lhe uma massagem e que o observasse no duche. Mais tarde, a atriz revelou que só queria sair daquele filme e ficou paralisada a pensar como poderia fazê-lo sem ficar riscada da lista do potencial empregador. Neste mesmo ano, este chega a acordo com a atriz Rose McGowan (protagonista de “Scream”), após uma cena semelhante à da colega de profissão, no quarto de hotel no Sundance Festival, em Tribeca.
2004: A estudante e aspirante a atriz Lucia Evans foi abordada pelo realizador num clube, em Nova Iorque. Ele convida-a a ir à Miramax. Ela acabaria por contar ao The New Yorker como ele a forçou a fazer sexo oral apesar dos repetidos protestos e tentativas de fuga dela.
2014: O mesmo cenário e uma oferta semelhante à colaboradora Emily Nestor. Aceitar os avanços sexuais dele seria o passaporte para uma ascensão na carreira. Um “ambiente tóxico” que a deixou “a chorar e desorientada”, relatou mais tarde a colega Lauren O´Connor. Num memorando aos executivos da empresa do seu superior, ela denunciou as condutas de assédio e outras, igualmente reprováveis. Mais tarde retirou a queixa e manteve o silêncio. Weinstein negou as acusações pela advogada, Lisa Bloom e apresentou desculpas ao The Times por eventuais condutas inapropriadas, acrescentando que estava a fazer terapia.
2015: A modelo italiana e aspirante a atriz Ambra Battilana acaba por chamar a polícia no escritório de Tribeca, onde era suposto estar a discutir detalhes da sua carreira com Weinstein. Este caso ficou célebre, tanto pelo facto de ele lhe ter agarrado os seios “para ver se eram verdadeiros”, como porque, também aqui, houve lugar a pagamento com acordo de confidencialidade.
2017: Oito mulheres com idades entre os 20 e os 30 anos e apostadas em trilhar o caminho da fama no showbizz deram entrevistas ao New York Times reforçando o padrão de conduta típico do Senhor Weinstein. Houve quem alegasse não ter apresentado queixa por manifesta falta de testemunhas, por embaraço ou simplesmente devido ao medo de retaliação. Assistentes do mestre da Sétima Arte justificaram a conivência com o patrão, recebendo dinheiro a troco de favores, levando pessoas ao hotel ou medicamentos para a disfunção erétil, como confirmou Sandeep Rehal
Outubro 2017: A publicação dos artigos de fundo do New York Times e The New Yorker com relatos de gente famosa e funcionários que abriram a boca levaram a direção da empresa de Weinstein despediu o produtor após ter conhecimento das queixas de assédio contra ele. Foi o mês horribilis para Weinstein. De um dia para o outro, passou a ser o homem que ninguém queria ter por perto, o vilão, o anjo caído em desgraça, como algumas das personagens que dirigiu.