A cada três segundos há um ser humano a fugir de casa para escapar à morte. É uma vítima da guerra, de perseguição política, étnica ou religiosa. No mundo, existem hoje 65 milhões de pessoas nestas condições, em fuga forçada. É um número recorde desde a fundação das Nações Unidas, em 1945. Nestes 65 milhões não se incluem os migrantes que buscam melhores condições de vida noutros pontos mais afortunados do planeta: 40 milhões são deslocados internos e 25 milhões são refugiados, ou seja, indivíduos que cruzaram fronteiras por serem perseguidos em virtude da sua raça, religião, etnia ou pertença a certo grupo social ou político. Metade destes refugiados são crianças, muitas delas sozinhas. Obter asilo noutro país é um processo longo e complexo, regido por convenções internacionais que definem quem pode ser um refugiado e delimita os direitos básicos que os Estados devem garantir-lhes. Um dos princípios fundamentais é que não devem ser expulsos ou deportados para locais em que sua vida e liberdade estejam em perigo.
A definição de refugiado só obteve consenso internacional após a Segunda Guerra Mundial, com o mundo ainda em choque com os horrores do Holocausto. Setenta anos depois, não deixa de ser irónico que o país nascido para ser o chão seguro dos judeus seja há vários anos alvo de críticas internacionais pela forma como trata aqueles que lhe pedem refúgio e um dos países que menos asilos concede no mundo.
Indiferente às críticas e aos protestos de organizações de direitos humanos, Israel tem sistematicamente recusado conferir o estatuto de refugiado aos africanos que procuraram ajuda na “terra santa”. Fugindo dos violentos conflitos no Darfur, do Sudão do Sul e da Eritreia, cerca de 40 mil pessoas conseguiram atravessar o deserto do Sinai, entre 2008 e 2012, cruzando a única fronteira “porosa” entre o Egipto e Israel. À dureza do percurso a pé, debaixo de temperaturas impiedosas, juntava-se a ameaça dos grupos mafiosos que viram no rapto destes africanos uma fonte de rendimento. Nas terras de origem, as suas famílias eram forçadas a pagar resgates avultados pela libertação dos campos de prisioneiros erguidos no deserto. O dinheiro comprava apenas a sua vida – não a viagem até à fronteira. Ainda mais debilitados e traumatizados, poucos conseguiam sobreviver ao resto do percurso.
Os “afortunados” que conseguiam chegar a Israel iam sendo apanhados pela polícia e “internados” em campos de detenção, também erguidos no deserto, onde o governo entende que pode manter os candidatos a asilo por periodos de 12 meses, de forma legal, acusando-os de terem entrado ilegalmente no país. Apesar de todas as provações, o fluxo destes migrantes desesperados só parou em 2012 porque Israel construiu um muro de segurança ao longo de todo o deserto. O mesmo deserto que, segundo os textos sagrados, Moisés levou 40 anos para atravessar, conduzindo os judeus que fugiam da escravidão no Egipto.
Entre as entradas e saídas dos centros de detenção, os sudaneses e eritreus foram-se fixando nos subúrbios pobres do sul de Telavive, onde estão instalados os serviços de emigração. Recusando atribuir-lhes o estatuto de refugiados – com medo de abrir a porta aos palestinianos que reclamam o mesmo estatuto, após a expulsão das suas terras pelo exército israelita – Israel criou a figura jurídica da “proteção temporária”, que legaliza a permanência destas pessoas enquanto decorre o processo de pedido de asilo, mas obrigando a apresentações semanais nos serviços. Assim nunca podem dispersar-se muito pelo país, o que torna mais fácil o controlo das suas atividades. As casas no sul de Telavive passaram a albergar três e quatro famílias, multiplicaram-se os pequenos negócios africanos, os bairros passaram a ter outras cores, outros cheiros, e mais habitantes negros que brancos – e os residentes judeus não gostaram.
OS ‘INFILTRADOS’ NA TERRA PROMETIDA
Ganhar tempo com burocracias foi a estratégia de Israel enquanto percebia as possibilidades legais para expulsar este grande grupo de “inflitrados” (é assim que os israelitas designam os migrantes não-judeus), um problema que ainda não se tinha colocado ao Estado judaico, desde a sua fundação, em 1948. À luz das convenções internacionais, os refugiados não podem ser expulsos ou deportados para locais em que sua vida e liberdade estejam em perigo. Fazer estas pessoas regressarem ao Sudão ou à Eritreia seria condená-las a uma morte quase certa.
Por discriminar os refugiados em função da sua religião – a maioria dos 40 mil africanos em Televive são cristãos em fuga das perseguições de extremistas islâmicos -, Israel tem vindo a violar todas as convenções internacionais que ratificou. Oficialmente, o país não nega o estatuto de refugiado por este motivo, embora essa seja a regra verificada no final dos processos, que se arrastam por vários anos. Na última década, foi apenas concedido asilo a oito cidadãos da Eritreia e a dois do Sudão. É a taxa mais baixa do mundo de respostas positivas em processos deste tipo, abaixo de 1% (por comparação, a média europeia na aprovação de eritreus como refugiados situa-se nos 86 por cento).
Em 2012, o ministro da Administração Interna, Eli Yishai, não podia ter falado de forma mais clara: “Até conseguir ter a possibilidade de os deportar, vou prendê-los e tornar as suas vidas miseráveis.” A esperança era que muitos decidissem ir embora de livre vontade, para outros países, mas isso apenas aconteceu em casos pontuais. Contudo, outros ficaram “no ponto” para aceitar a saída proposta no plano de deportações iniciado em 2015: pegar em 3500 dólares e entrar num avião. Foi assim que 4 mil destes africanos viajaram para “terceiros países”, como o Ruanda e o Uganda, com Israel a descartar, a partir daí, quaisquer responsabilidades pelo seu bem-estar. Em abril, anunciara o primeiro-ministro no início de 2018, outros 40 mil africanos residentes no sul de Telavive teriam o mesmo destino.
As manifestações nas ruas da capital israelita sucederam-se nas últimas semanas, chegando a juntar 25 mil pessoas na noite de 24 de março, e as pressões internacionais sobre o governo de Benjamin Netanyahu intensificaram-se, tal como junto dos líderes do Ruanda e do Uganda, que acabaram por comunicar a Netanyahu que não poderiam aceitar pessoas que saíssem de Israel de forma forçada.
Na manhã de segunda-feira, 2 de abril, o primeiro-ministro israelita anunciava, em conferência de imprensa, que tinha cancelado o programa de deportações tal como ele existia, em nome da segurança dos refugiados e do respeito pelos direitos humanos, e que um acordo firmado com as Nações Unidas iria permitir recolocar 16 mil sudaneses e eritreus no Canadá e na Europa. Israel iria, pela primeira vez na sua história, assumir a integração de não-judeus: “Por cada refugiado que seja transferido para outro país, nós integraremos outro”, explicou Netanyahu.
Contudo, menos de 24 horas depois deste anúncio, o primeiro-ministro israelita cedeu às pressões políticas internas e suspendeu o acordo internacional que acabara de assinar. Acusado de ser “mole”, “fraco” e “ingénuo” por todos os líderes de direita que viam um microfone de um jornalista, foi encostado à parede pelos partidos parceiros do Likud na coligação que o mantém no poder: ou voltava atrás ou o governo caía.
Benjamin Netanyahu havia firmado este acordo de forma absolutamente secreta, escondendo-o inclusive de ministros do seu gabinete. Sabia que iria ter forte oposição interna e terá procurado surpreender aliados e rivais com o facto consumado. Os jornais israelitas descrevem os queixos caídos e os ânimos exaltados de quase todos os membros do governo ouvindo a conferência de imprensa internacional que o primeiro-ministro fez em direto. Jogou os poucos trunfos que tinha na mão – e perdeu catastroficamente.
PORTUGAL PODERIA RECEBER REFUGIADOS DE ISRAEL
“Africanos, voltem para a vossa terra”, lê-se em várias faixas penduradas nos espaços públicos dos subúrbios a sul de Telavive, longe das avenidas ricas que debruam as lindíssimas praias do Mediterrâneo. Por ali, já ninguém flitra os seus ímpetos racistas e foi entre estes moradores que Benjamin Netanyahu anunciou a suspensão do acordo com as Nações Unidas, na terça-feira, 3, prometendo que iria protegê-los dos “inflitrados”. A “proteção” a que se refere o primeiro-ministro não é contra ondas de violência ou de criminalidade, mas sim contra o risco de “absorção”. “Hoje são 60 mil, amanhã já tiveram filhos e netos e são 600 mil”, concedeu Netanyahu, regressando à retórica de sempre. Ou seja, que Israel é a terra prometida aos judeus e que os “outros”, os “estrangeiros”, ameaçam a garantia de um Estado maioritariamente judeu, no futuro.
Perante este volte-face, países como a Alemanha e a Itália negaram publicamente ter acordado receber parte dos 16 mil dos refugiados indesejados em Israel. Portugal, ao que a VISÃO apurou, também estaria entre os países listados pela Agência das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) para integrar alguns destes africanos. Contudo, nada havia ainda sido formalmente estabelecido. Oficialmente, o Ministério da Administração Interna comprometeu-se apenas com a ACNUR a receber mais 1010 refugiados este ano, vindos da Turquia e do Egipto.
O Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados, Filippo Grandi, gostaria de ver a comunidade internacional mais empenhada na resolução deste problema com “determinação e coragem”, em vez de paralisada pelo preconceito e pelo medo. Mais de 80% dos refugiados estão a ser apoiados por países do terceiro mundo, que abrem as suas fronteiras em tempos de crise e repartem o pouco que têm. Tem sido assim no Bangladesh, para onde fugiram mais de 650 mil Rohingya, para escapar a uma operação de limpeza étnica na Birmânia; ou no Uganda, onde mais de 2 milhões de sudaneses encontraram refúgio e onde continuam a chegar, de vários pontos de África, mais de 500 refugiados por dia.
A postura de Israel poderá não ser ilegal, mas será sempre imoral perante os factos da História. Tal como será, em certa medida, a construção de muros por toda a Europa e a “transferência” de milhares de refugiados para ilhas-prisão na Grécia ou centros de detenção na Turquia.
Se leu este texto sem interrupções, terá levado cerca de quatro minutos a chegar aqui. Entretanto, mais 80 pessoas estão em fuga, tentando sobreviver.