Karl Feldmeyer nem queria acreditar quando recebeu aquele telefonema em novembro de 1999: acabavam de lhe propor um parricídio político. Do outro lado da linha estava a jovem Angela Merkel, que tinha ascendido no partido graças a Helmut Kohl. Ligara ao jornalista do Frankfurter Allgemeine com uma oferta surpreendente – ela queria fazer declarações públicas para pedir o afastamento do histórico chairman da CDU, que ninguém ousava sequer criticar ou desafiar. O texto de opinião de Merkel saiu com estrondo, deixando boquiabertos todos aqueles que leram no dia seguinte impressas em papel as suas palavras, frias e implacáveis, embrulhadas de moralismo protestante: “O partido vai ter de travar guerras futuras com os seus oponentes sem o seu velho cavalo de batalha.”
Angela, que por duas vezes tinha sido ministra de Kohl e chegou a secretária-geral do partido pela sua mão, acabava de trair o seu pai político sem olhar para trás, depois de uma polémica em torno de financiamentos de campanha em que este se viu envolvido. Para Helmut Kohl, o texto de opinião da sua discípula foi o fim da sua carreira. Para a maioria dos alemães, foi a primeira vez que decoraram o nome da figura que viria a ser a chanceler da Alemanha e a mulher mais poderosa do mundo. Ficava assim bem claro desde o início ao que Merkel vinha, e como gostava de jogar: com paciência, esperando pela oportunidade certa e avançando sem dó nem piedade.
Kohl diria anos mais tarde que trazer Merkel para o partido tinha sido o maior erro da sua vida. “Contratei o meu assassino. Meti a cobra venenosa no meu braço”, resumiu ressentido. Ele que a formou e que durante uma década a tinha tratado (condescendentemente) como “Mädchen”, a sua “rapariga”. Kohl gostava de a ostentar como uma raridade – mulher, de leste, cientista e algo desajeitada, Angela fazia o pleno para dar uma aura de novidade e representatividade na conservadora e cristã CDU. Quando perguntaram ao velho chanceler o que a move, ele não hesita: “Só o poder.”
Num laboratório como num governo
O percurso até ao topo de Angela Merkel podia dar uma ópera de Wagner moderna: uma heroína improvável, com uma trama complexa pontuada de persistência, traição e volte-faces da História. “Angela Merkel deve a sua ascensão a muitas circunstâncias fortuitas – e ela sabe-o. Isso explica porque é uma política tão cautelosa que presta tanta atenção à opinião pública”, diz à VISÃO Konstantin Richter, colunista no Guardian e no Politico e autor do livro A Chanceler.
A primeira reviravolta da sua vida, que a definiria para sempre, apanhou Merkel ainda bebé de colo. Angela Dorothea Kasner nasceu em Hamburgo em 1954, mas poucos meses depois, enquanto a maior parte da população alemã fugia em direção ao Ocidente antecipando a crescente tensão Leste-Oeste, o pai, um pastor e teólogo luterano, rumou com a família para Templin, perto de Berlim.
Ela tinha apenas sete anos quando viu começar a ser erguido o Muro nesta cidade, que a deixou enclausurada até aos 35 anos. Crescer como “Ossi”, a designação dos alemães da República Democrática Alemã (RDA), moldou definitivamente a sua personalidade: Angela medrou em frugalidade, rigor e contenção, aprendendo desde cedo a ponderar cada palavra e a manter o jogo junto ao peito. A polícia secreta STASI não dava tréguas a quem se aventurasse em passos em falso. Cautela, paciência e perseverança são traços de personalidade – virtudes? – que se viu forçada a aprender praticamente desde o berço.
Se dissessem, porém, à Frau Benn, a sua professora primária, que aquela menina que se colocava sempre na última fila para a fotografia da turma, viria no futuro a liderar a Alemanha, ela não acreditaria. Angela era uma aluna brilhante, uma trabalhadora árdua, sim, mas extremamente discreta e contida. Era quase invisível. Até hoje, depois de quase 30 anos de vida pública, Merkel conserva esta quase contradição nos termos: a mulher mais poderosa do mundo detesta os holofotes e mise-en-scènes mediáticos (praticamente não fala com jornalistas, que lhe guardam uma respeitosa distância) e detesta falar em público (os seus discursos são intrincados por uma retórica por vezes quase incompreensível). Discrição essa bem patente nas pequenas coisas: na campainha da porta de sua casa, em Berlim, o nome que consta na caixa do correio é o do seu marido, Joachim Sauer, e não o seu.
O seu percurso académico pela Ciência deu-lhe instrumentos preciosos que acabaria por usar até hoje. Angela licenciou-se em Física na Universidade de Leipzig e doutorou-se em Química Quântica em Berlim. Passou os últimos anos da moribunda RDA como investigadora na Academia de Ciências. Era a única mulher, ultracuriosa, e uma observadora perspicaz tanto do mundo à sua volta como dos mistérios das ínfimas partículas. Muitos acreditam que foi esta mente treinada para o método científico, habituada à desconstrução racional e à análise detalhada dos problemas, a chave do seu sucesso político. Fazer comparações e extrapolações, desenhar cenários e delinear planos de abordagem, calcular probabilidades e ajustar expectativas é para ela a única forma de trabalhar. Num laboratório como num governo ou parlamento.
Merkel não se mete em lutas que não pode ganhar. Destruiu Kohl tal como enterrou politicamente o “gabarolas” Gerhard Schröder. Ambos pagaram o preço de a subestimar. Schröder, chanceler entre 1998 e 2005, perdeu essas eleições para a mulher a quem tinha chamado publicamente de “lamentável” como ministra do Ambiente vários anos antes. Entrou para a corrida inchado, saiu de fininho com o rabo entre as pernas destronado por uma “Ossi”. A vingança de Merkel come-se fria. E tudo indica que vai engolir ao pequeno-almoço Martin Schultz, o seu adversário da SPD nas eleições de domingo, depois deste ter surgido eufórico disparando críticas e entretanto desinsuflado com falta de ideias próprias.

GettyImages
“Mutti” Merkel
Rapidamente depois de 2005, os alemães começaram a afeiçoar-se a Merkel, esta figura sui generis. Passaram a chamar-lhe, primeiro de forma crítica mas depois carinhosa, de Mutti ou mamã. Rapidamente passaram a vê-la como uma protetora maternal da nação, que faz o que tem de ser feito em nome do bem comum.
Ao vencer as eleições de dia 24 e se conseguir formar uma coligação para governar, Angela Merkel terá o seu quarto mandato para governar a Alemanha e entrará para o clube dos chanceleres mais duradouros do pós-guerra, junto a Konrad Adenauer e Helmut Kohl. E consegue-o, sobrevivendo a todos os outros líderes das grandes nações, porque faz o “match” perfeito com a psiche germânica. Ainda mal refeitos do seu traumático passado histórico com Hitler e o nazismo, os alemães fogem dos líderes demasiado carismáticos e egocêntricos como o diabo da cruz. Angela, com o seu perfil contido e sua abordagem científica, afasta o fantasma ainda latente de um chanceler imprevisível e perigoso. Toldada pelo passado recente, a psicologia da nação alemã prefere a monotonia segura ao risco de ter surpresas desagradáveis.
Merkel é a rainha das cautelas e dos consensos e, quando lhe é oportuno, também da protelação (o verbo “merkeln” passou a ser usado pelos jovens como sinónimo de adiar uma decisão). Em todos os seus governos – 2005, 2009 e 2013 –, tem liderado sem maioria absoluta mas conquistando, porém, cada vez mais votos (na última eleição ficou muito perto dos 50%), trabalhando sempre em coligações que obrigam a cedências e ajustes, e sempre tendo em extrema consideração o sentimento da opinião pública. Age como uma mãe firme mas doce, não como uma mãe castigadora e autoritária.
Discreta e reservada, quase misteriosa, deixou desde cedo bem claro que odeia o espetáculo e espalhafato político tanto quanto detesta emoções que toldam a razão. Para ela, a decisão política tem de obedecer à pura lógica, não a dogmas. Entre a ideologia e o pragmatismo, entre a paixão e a razão, Merkel alinha claramente pela segunda forma de estar na vida pública. Quer ser convencida por factos e argumentos e não por ideais, por mais meritórios que sejam. Por isso, dizem os analistas, sempre se pautou por fazer aquilo que lhe parece melhor para a Alemanha, metendo todas as circunstâncias e variáveis debaixo de uma luz fria, analítica e desapaixonada.
Foi exatamente a essa luz que Merkel navegou pelos tumultos da crise que assolou a Europa a partir de 2010 e culminou com o quase colapso financeiro da Grécia e de Portugal, levando a pedidos de ajuda externa e a uma intervenção do FMI ao mesmo tempo que pôs em causa a sustentabilidade da União Europeia e o próprio Euro. Para a opinião pública alemã, a culpa do estado a que chegaram as contas públicas nos países do Sul devia-se apenas à má gestão e aos erros acumulados. Como os maiores credores da Zona Euro, os alemães recusavam-se a continuar a pagar pelo que consideravam ser erros alheios. “Há membros da CDU e da FDP na Alemanha que teriam sido muito mais implacáveis no assunto da dívida europeia do que a Merkel. A sua posição refletiu a ambivalência do eleitor alemão. Não queriam que a Zona Euro se desintegrasse mas também não queriam pagar pelas dívidas dos gregos”, explica Konstantin Richter.
Como líder de facto da União, foi ela o rosto da intransigência e da austeridade, o que lhe valeu caricaturas de dominatrix e de stormtropper. Se essa é a sua imagem externa, é justo que se diga que internamente foi ela quem segurou os ânimos e conteve o ainda mais intransigente e austero ministro das Finanças do Eurogrupo, Wolfgang Schäuble, que na Alemanha goza de ainda maior popularidade do que Merkel. A via da solidariedade, com um perdão fiscal ou uma injeção direta de dinheiro germânico no problema, provavelmente custar-lhe-ia a chancelaria. Merkel foi assim espremida entre a parede da intransigência interna e a espada de um possível colapso do projeto europeu, com tudo o que isso traria de danos para a Alemanha. Merkel, a implacável, pouco cedeu e a crise acabou por melhorar, ceifando pelo caminho da austeridade as economias e os empregos dos países do Sul da Europa. A União Europeia abanou mas sobreviveu, beliscada pela imagem de falta de solidariedade, abrindo caminho a descontentes e populistas.
De Megera a líder moral do Ocidente
Os últimos dois mandatos de Merkel espelham bem como pode ser conflituante a imagem interna e externa de um governante. Se na crise europeia a chanceler viu a sua popularidade internacional pela lama para agradar à opinião pública alemã, o tema dos refugiados elevou-a aos píncaros da benevolência planetária ao mesmo tempo que desceu a níveis de popularidade dentro de portas historicamente baixos. Foi a Time que em 2015 a elegeu Personalidade do Ano, chamando-lhe a “Chanceler do mundo livre”, a CNN apelidou-a da “líder moral do Ocidente” e muitos outros fora da Alemanha desfizeram-se em elogios depois de Merkel ter, para pasmo geral, decidido abrir as fronteiras a cerca de um milhão de refugiados sírios. Já os alemães não o viram com bons olhos. Teria a dama de ferro germânica amolecido e se deixado levar pela emoção? Os “merkologistas” desdobraram-se em explicações variadas: uns defenderam que se tratou de uma rara decisão emotiva, fundada na sua religiosidade e numa vida enclausurada entre muros, outros garantiram que não passava, mais uma vez, de uma tática para trazer mão de obra jovem, qualificada e barata para um país cada vez mais envelhecido. “Merkel foi levada a agir graças à consternação pública global pela causa dos refugiados, mas motivada também por preocupações económicas. Muitos dizem que ela é um mistério, eu não alinho com essa tese. Acho-a uma política muito previsível e sobretudo pragmática, que defende as medidas que são consideradas boas para a Alemanha. Se essas medidas também forem populares entre os eleitores, então ela segue em frente”, explica Matt Qvortrup, autor do livro Angela Merkel: Europe’s Most Influential Leader.
Quem se desfez em elogios foi Obama, o amigo improvável. Do outro lado do espetro político e um concorrente económico, o Presidente dos Estados Unidos da América acabou por conquistar o respeito de Merkel. Os dois são mais parecidos do que à primeira vista se pode pensar: ambos são racionais, reservados e humanistas, ambos detestam agir por impulso. Alguma imprensa americana gosta de defender a tese de que uma longa conversa entre os dois foi determinante para Merkel se lançar para a candidatura a um quarto mandato, de forma a fazer frente a Trump numa ordem internacional fragilizada por um Presidente americano impulsivo e deveras perigoso. A relação com Trump tem sido, como se esperava, difícil, e para ele Merkel tem reservado palavras duras e diretas.
Nestes jogos de poder, há um líder que é uma espécie de arquirrival: Putin. Ficou para os anais da falta de diplomacia política a história de uma visita de Merkel a Sochi em 2007, quando o Presidente russo manda chamar o seu cão para a sala durante a reunião, mantendo um sorriso. Foi visível para todos (e registado em fotografias e vídeos) o pânico da chanceler, que tinha sido atacada por um cão anos antes, mas que, ainda assim, não perdeu a compostura, atirando em russo (língua que domina desde a infância) uma piada sobre o facto de pelo menos não comer jornalistas. A crise na Ucrânia e a anexação da Crimeia em 2014 foram o ponto alto nesta relação tensa entre as duas potências.
Dizem os seus ex-assessores que Putin é o líder internacional com quem Merkel mais fala pelo telefone. Liga-lhe do seu gabinete em Berlim, onde consta uma fotografia perfeita para por as coisas – e a medida da sua ambição e responsabilidade – em perspetiva: a imagem de Catarina, a Grande, a alemã que chegou a imperatriz russa e que foi, no século XVIII, a mulher mais poderosa do planeta.

GettyImages
Da química quântica para a política
RAÍZES – Nasceu em 1954 em Hamburgo, filha de um pastor luterano e de uma professora de Inglês. Foi para a Alemanha de Leste ainda bebé. Cresceu em austeridade e sob o medo da polícia secreta STASI
NOME – O seu nome de baptismo é Angela Dorothea Kasner. O apelido Merkel é do primeiro marido, de quem se divorciou cinco anos depois. Voltou a casar com Joachim Sauer
CIÊNCIA – Era uma aluna prodigiosa. Licenciou-se em Física e doutorou-se em Química Quântica. Trabalhou como investigadora na Academia de Ciências de Berlim até 1989. Levou para a política esta abordagem racional e analítica
POLÍTICA – Após a queda do Muro integrou a CDU. Foi ministra de Helmut Kohl, até ser eleita líder do partido em 2000. Cinco anos depois chegava a chanceler, concorrendo contra Gerhard Schröder
Vícios ou virtudes?
Rotina – Quando caiu o Muro em 1989, foi à sauna e bebeu uma cerveja com os amigos, como de costume. Deitou-se cedo porque tinha compromissos no dia seguinte
Método – Analisa os problemas com rigor científico. Estuda a fundo os dossiês e adversários antes de avançar
Frieza – Atacou Helmut Kohl, de quem era discípula, por causa de uma polémica de financiamentos, afastando-o
Pragmatismo – Não é uma mulher de ideais mas sim de análise empírica e racional
Resistência – É a mulher há mais tempo à frente de um governo na Europa. Especialista em consensos, governou sempre em coligações
(Artigo publicado na VISÃO 1281, de 21 de setembro de 2017)