Já passaram quase quatro meses após o trágico naufrágio de um barco de borracha entre Bodrum, na Turquia, e a ilha grega de Kos, que lhe matou os dois filhos, Aylan e Galip, de 3 e 5 anos, e a mulher Rehanna. Agora, Abdullah Kurdi tenta refazer a vida. É apenas um entre o milhão de refugiados que este ano já chegou à Europa. Mas não é um refugiado qualquer. A fotografia do seu filho mais novo, Aylan, encontrado morto à beira-mar na praia de Ali Hoca, tornou-se o símbolo da tragédia dos que fogem da guerra na Síria (e foi escolhida pela VISÃO como imagem do ano, numa seleção que pode ver aqui). “Queria fazer a comunidade internacional abrir os seus corações para a situação dos refugiados. Mas ninguém estava a ouvir. O mundo só queria usar aquela fotografia e o que me aconteceu para os seus próprios fins”, disse ao jornal britânico The Guardian. E, nessa altura, o mundo foi benévolo e respondeu em consonância: as doações para instituições de caridade aumentaram nos dias seguintes à morte do menino curdo; o Reino Unido prometeu receber 20 mil sírios, a França, 24 mil e a Alemanha abriu as suas fronteiras temporariamente. O tempo passou e os migrantes continuam a entrar na Europa.
Depois de já ter falado com uma dúzia de líderes mundiais, Abdullah Kurdi, 39 anos, aceitou o convite do primeiro-ministro do Curdistão iraquiano, Nechirvan Barzani, que lhe ofereceu casa e residência permanente. À conversa com Barzani, surgiu a ideia de fundar uma instituição de caridade. Neste momento, Abdullah Kurdi já não é um pai desesperado à procura de uma vida nova para a família. Desde que chegou, Abdullah começou a trabalhar na causa humanitária e já foi nomeado membro honorário da Peshmerga, milícia curda do Iraque. Trabalha como motorista nos campos de refugiados onde distribui material escolar para crianças em nome da Fundação Barzani. Para trás, ficou a vida de uma família como as outras: um barbeiro e uma costureira com dois filhos, que moravam num bairro de classe operária nas encostas do Monte Qasioun, com vista para Damasco.
Determinado nas palavras, o corpo denuncia alguma insegurança, como descreve o The Guardian, a propósito de uma entrevista recente, realizada no Saray Cafe no luxuoso Divan Hotel em Erbil, capital da região do Curdistão. “Quero abrir uma instituição de caridade para as crianças de Kobani. Ando a visitar campos de refugiados em memória do meu filho Aylan. Tenho visto o sofrimento deles. Não vou dececioná-los”. Apesar das especulações que o acusam de ser contrabandista e de ter organizado a fatídica viagem, e de ter lucrado com a venda da roupa do filho a um museu de Paris, Abdullah Kurdi é perentório: “Eu devia ter morrido com eles.”