Oito de setembro. Um sábado. Anthony “Tony” Fernandes assina o documento que finaliza a compra da AirAsia. É a sua aquisição mais barata de sempre (paga o equivalente a 20 cêntimos de euro) e, simultaneamente, a mais cara e arriscada aventura financeira: a empresa tem apenas dois aviões, um passivo de 9 milhões de euros e uma reputação arruinada. Tony, forasteiro da aviação, que fizera carreira na indústria musical, prepara-se para uma longa batalha. Erguer uma companhia moribunda é sempre difícil, mas fazê-lo num setor tão competitivo como este, e sem a sábia companhia da experiência, será uma luta de anos. Ou de rápido falhanço.
O ano é 2001. Daí a três dias, terroristas tomam quatro aviões americanos. Despenham dois contra as Torres Gémeas, em Nova Iorque, e outro contra o Pentágono; o quarto despenha-se na Pensilvânia. Nas semanas seguintes, companhias aéreas que já se encontravam imersas em poços de dívidas submergem de vez. No meio da tragédia, a AirAsia é agraciada por uma inesperada bênção: as falências provocam uma queda no preço dos leasings de aviões e põem no mercado milhares de tripulantes, subitamente desempregados.
Tony Fernandes saberá aproveitar cada oportunidade. Adquire aparelhos a valores impensáveis antes do 11 de Setembro, contrata pilotos e assistentes de bordo experientes, assina parcerias e rodeia-se de quem percebe mais do assunto – empregando, por exemplo, um dos diretores da Ryanair. Em menos de um ano, a dívida estará paga. Daí em diante, a empresa moribunda transformar-se-ia numa das mais importantes e competitivas low cost do mundo, com uma frota de 169 aviões a transportar 43 milhões de passageiros por ano para 100 aeroportos em 22 países, e Tony via a sua fortuna chegar aos 544 milhões de euros.
Madrugada de 28 de dezembro de 2014. O voo QZ8501, da subsidiária AirAsia Indonésia, cai no Mar de Java, no percurso entre Surabaya, Indonésia, e Singapura, com 162 pessoas a bordo. A primeira reação pública de Tony Fernandes é através da sua conta no Twitter (onde o seguem 963 mil pessoas), poucas horas depois do acidente: “O meu coração sofre por todos os familiares da nossa tripulação e passageiros.” Ninguém põe em causa a sua sinceridade. Mas as ações do grupo não se compadecem com a dor do empresário, sofrendo quedas profundas. E, nos dias seguintes, surgem novas informações que levantam dúvidas sobre a segurança da companhia: fica a saber-se que a rota do voo QZ8501 não estaria autorizada para esse dia; recorda-se um incidente recente numa pista com outro avião; uma semana mais tarde, um problema num motor obriga a abortar uma partida, quando o aparelho se preparava para levantar voo.
A maior tragédia da história da aviação ajudara a resgatar a AirAsia. Treze anos depois, pode outra tragédia destruí-la? Não se depender de Tony Fernandes.
Da música para a aviação
Tony, 50 anos, nasceu em Kuala Lumpur, capital da Malásia, filho de um médico indiano, da antiga colónia portuguesa de Goa (de onde vem o apelido Fernandes), e uma professora de música, com ascendência malaia e portuguesa, que se tornara a primeira distribuidora da Tupperware no país. Aos 12 anos, os pais decidem enviá-lo para um colégio católico em Inglaterra. Do Epsom College, uma prestigiada escola com 150 anos, Tony segue para a universidade – a não menos prestigiada London School of Economics. Formado em contabilidade, trabalha alguns meses para Richard Branson, como auditor interno da empresa da Virgin Atlantic. Da empresa de aviação passa para direção financeira da editora discográfica do milionário britânico, e daí para a Warner.
Ao fim de quase uma década, percebendo que o futuro da indústria da distribuição musical estava condenado pela pirataria, Tony decide fundar uma companhia aérea de baixo custo, inspirado pela easyJet. Amigos do setor, no entanto, acabam por convencê-lo a adquirir uma já existente. ?A escolha recai sobre a AirAsia, uma empresa estatal malaia recente (a operar desde 1996), em situação de pré-insolvência. ?O contrato é assinado pela quantia simbólica de um ringuite malaio. Tony Fernandes tem, nessa altura, 37 anos.
A transação força-o a fazer uma hipoteca sobre a sua casa e a pedir empréstimos pessoais. É uma aposta arriscadíssima. Mas Richard Branson, de quem se tornara grande amigo, incutira-lhe o gosto pelo risco. Nos anos seguintes, o malaio prova ser um gestor agressivo, cortando custos em todo o lado, desde o pessoal ao tipo de papel usado para imprimir os bilhetes, e cobrando por comodidades aos passageiros, como a escolha do lugar. Através de parcerias com outras companhias do sudeste asiático, consegue autorização para abrir novas rotas na região. Compra dezenas de aviões novos.
Em menos de um ano, a nova AirAsia já dava lucro.
O poder da transparência
O malaio de nome português tem vida para lá do negócio da aviação. Além da rede de hotéis low cost Tune Hotels, presente em vários países, fundou uma equipa de Fórmula 1, que competiu em 2010 e 2011 sob a chancela da Lotus. O início foi auspicioso: logo no primeiro ano, o também novato no desporto automóvel Sir Richard Branson, com a recém-criada Virgin Racing a estrear-se na Fórmula 1, desafia-o: quem ficar atrás tem de se vestir e trabalhar como assistente de bordo (feminina), por um dia, na companhia aérea do outro. “Quanto mais sexy, melhor”, aceita Tony. “Os nossos passageiros vão gostar de ser servidos por um cavaleiro do reino.” Serão mesmo. A Lotus termina à frente da Virgin e Branson honra a aposta em 2013, devidamente fardado e maquilhado, a bordo de um aparelho da AirAsia. A educação britânica despertara-lhe também o amor pelo futebol. Adepto do West Ham, tenta comprar o clube de futebol londrino em 2011. As negociações falham. Pragmático, vira-se para o Queens Park Rangers, um clube mais pequeno, acabado de subir à Premier League. Três meses depois de gorada a aquisição do West Ham, Tony já detém a maioria das ações do Rangers, que entretanto desce de divisão, volta a subir e agora se encontra no 16.º lugar, em 20.
A foto de um fã do Queens Park Rangers com o filho bebé fora um dos últimos tweets de Tony antes da queda do avião da sua companhia. Depois disso, todas as suas comunicações são sobre o acidente, e sempre com uma transparência cândida, atitude que tem sido largamente elogiada. Várias vezes ao dia, o malaio de ascendência portuguesa publica mensagens de apoio dirigidas aos familiares dos passageiros, incentiva os funcionários da sua empresa e divulga todas as informações disponíveis sobre as buscas de corpos e destroços. Precisamente o contrário do que fizeram os responsáveis da Malaysia Airlines nos acidentes dos voos MH 370 e MH17, no ano passado. É verdade que uma honestidade desassombrada é muitas vezes a melhor arma de relações públicas. Mas nem os seus detratores duvidam da sinceridade – e da dor – de Tony Fernandes.