Se as questões que chegaram no mês passado à Deco forem representativas, então as dúvidas dos portugueses sobre as coberturas dos seguros serão na proporção do desconhecido que ainda envolve a pandemia Covid-19. Em média, a associação teve mais de dez contactos por dia, desde pessoas a perguntarem se é preciso pagar a apólice, mesmo tendo o carro parado à porta, ou até aonde vai o seu seguro de saúde. Questões com tantas respostas quanto as coberturas contratadas, como mostram as consultas feitas pela VISÃO junto da Associação Portuguesa de Seguradores (APS), da Deco e de duas seguradoras. Apesar de não haver uma exclusão global de coberturas em caso de pandemia, como refere a APS, “há que fazer uma análise caso a caso”.
Na sua generalidade, os seguros de vida garantem a cobertura de fatores relacionados com estas doenças de disseminação global. Já no caso dos seguros de saúde, essa possibilidade está ausente dos contratos – as companhias comparticipam despesas até ao diagnóstico da doença, mas depois de um positivo o assunto passa para as mãos do sistema público de saúde (ver caixa Cada Apólice, Sua Sentença). Há ainda seguros de viagem, de assistência em viagem ou mais relacionados com o trabalho, que é possível acionar em situações específicas. Mais difícil será compensar as empresas pelas perdas de exploração ocorridas neste período, já que é preciso provar um dano material que possa ser indemnizado pelo seguro multirriscos.
Cada apólice, sua sentença
A cobertura de pandemias ou de epidemias, como a Covid-19, tem muitas vezes de ser vista caso a caso pelas seguradoras
VIDA
A generalidade destes seguros cobre a morte ou a invalidez decorrentes de epidemias ou de pandemias, como a Covid-19. Mas há seguradoras que excluem a cobertura, se a doença for contraída num território com epidemia ou pandemia declarada pelas autoridades de saúde.
SAÚDE
Geralmente excluem cobertura de doenças infetocontagiosas e de doenças epidémicas de declaração obrigatória, como a resultante do novo coronavírus. Alguns têm comparticipado os testes de diagnóstico, sob prescrição médica.
VIAGEM
As apólices são muito diferentes, e o grau de cobertura depende dos seguros contratados no pacote da viagem. Alguns preveem o cancelamento de viagem e o reembolso de despesas em caso de doença do titular ou de familiares (com confirmação médica), de quarentena imposta ao titular ou caso a Organização Mundial da Saúde desaconselhar a viagem para o país de destino, refere a Deco.
ACIDENTES DE TRABALHO
Acidentes ocorridos em teletrabalho, por indicação das autoridades ou do empregador, estão cobertos. A Associação Portuguesa de Seguradores diz que é importante documentar a prestação de trabalho remoto.
Ameaça à espera de acontecer
Um trabalho produzido em 2015 para a resseguradora Swiss RE chamava já a atenção para a cada vez maior frequência de pandemias, potenciadas pelo crescimento da população, alterações demográficas, globalização e aumento da mobilidade, interações crescentes entre humanos, vetores de doença e animais hospedeiros e pelas alterações climáticas. Menos de cinco anos depois, o risco materializou-se na maior crise de saúde pública de há muitas gerações, a qual, ao pôr a vida das pessoas e a economia num limbo, expõe também os seguradores.
Quase um mês após a declaração de pandemia, o setor ainda não arrisca fazer contas aos impactos que podem chegar quer dos encargos financeiros com os sinistros associados à Covid-19 quer da volatilidade das bolsas e das taxas de juro negativas nos investimentos geridos pelas seguradoras. Por outro lado, com menos carros nas estradas por causa do recolhimento, diminui potencialmente o risco de acidentes e as indemnizações a pagar. E, nos EUA, há insurtechs a registar, por estas semanas, um aumento de subscritores de seguros de vida.
Os seguros não excluem de forma global as coberturas em caso de pandemia. Mas a associação de seguradores diz que a análise tem de ser feita “caso a caso”
A Associação Internacional de Supervisores de Seguros (IAIS) considera que as empresas do setor estão, na sua generalidade, bem capitalizadas e que as alterações da última década lhes deram solidez para enfrentar os reflexos do vírus. Por cá o regulador português, a Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões (ASF), recomendou restringir ações que descapitalizem o setor, como a distribuição de dividendos e o financiamento dentro dos grupos.
Para o presidente da APS, ainda é cedo para contas. José Galamba de Oliveira acredita que o setor não ficará imune, mas as seguradoras vão voltar a fazer prova de resiliência e de capacidade de reação “em situações de riscos extremos.” No final de 2018, números daquela associação, o setor segurador português tinha €52,8 mil milhões em ativos sob gestão, a maior parte (mais de dois terços) respeitante a obrigações e o restante em unidades de participação, depósitos e ações. Entre os prémios totais de seguros pagos pelos tomadores, os do ramo vida representavam praticamente metade, mais de €6 000 milhões.
No grupo Ageas Portugal, é nesta atividade, a par do negócio saúde, que estão a ser sentidos os principais impactos, também ainda por contabilizar. Para José Gomes, CEO da Ageas Seguros, não será simples para o setor encontrar no futuro “uma resposta ajustada” às pandemias. É preciso dimensionar riscos que não se conhecem e quantificar o valor do prémio que será sempre muito elevado. Depois, diz, é também necessário que os resseguradores (entidades que seguram as seguradoras) estejam disponíveis para assumir essa cobertura.
Para já, o setor adapta-se. A Tranquilidade e a Ageas, por exemplo, estenderam a cobertura de acidentes pessoais ou de trabalho às casas de cada funcionário, de onde centenas de milhares de cidadãos passaram a picar o ponto, e ainda a incluir a entrega ao domicílio dos restaurantes no seguro de acidentes de trabalho. O grupo Ageas Portugal, com marcas como a Médis, Ocidental ou Seguro Directo, ajustou ainda seguros de proteção dos profissionais de saúde nos casos de infeção no âmbito laboral.
“É natural que as pandemias também sejam vistas como uma oportunidade de negócio e que sejam criados seguros específicos para este risco. Agora as pessoas sabem que há mercado, porque passaram por isto. Não é uma utopia”, explica à VISÃO Mónica Dias, técnica de seguros da Deco. Foi o que fizeram no final de março a Tranquilidade e a Generali, com um seguro de saúde específico para a doença do novo coronavírus, que prevê um subsídio diário e indemnização aos trabalhadores que contraiam a doença nos próximos três meses. Nos primeiros quatro dias, as apólices vendidas a empresas com 20 ou mais colaboradores puseram quase quatro mil pessoas sob este chapéu de proteção temporária.
Fonte oficial daquela seguradora garante que vai continuar a “trabalhar no desenvolvimento de produtos e de coberturas específicos” para a pandemia, e Galamba de Oliveira também acredita nisso. “Essa tendência é inevitável e, quanto mais e melhor se conhecer o vírus, maior é a probabilidade de surgirem produtos de seguro a cobrir este risco”, afirma o presidente da APS. Mas Mónica Dias não estranharia se sucedesse o contrário, recordando como, logo depois dos atentados do 11 de Setembro nos Estados Unidos da América, as seguradoras excluíram o terrorismo das suas apólices. “Era uma imposição das resseguradoras, porque elas também têm de se segurar.”