O patriarca do clã Espírito Santo foi ao Parlamento prestar depoimentos sobre a sua responsabilidade no desmoronar do império que dirigiu ao longo de 22 anos. Questionado, durante dez horas, pelos deputados da Comissão Parlamentar de Inquérito ao BES, Ricardo Salgado atacou para se defender daquilo que afirmou ter sido meio ano de julgamento sumário: “A minha família e eu próprio fomos julgados na praça pública, acusados de ter desviado centenas de milhões de euros, casas em Miami e castelos na Escócia. Tudo inverdades.”
E porque ali também se tratou da defesa da honra, atirou com um provérbio chinês para a assistência: “Quando morre, o leopardo deixa a sua pele. Um homem quando morre deixa a reputação.”
O homem que vimos esta terça-feira, 9, no Parlamento é um homem agastado. Esforçou-se por manter uma postura ereta na cadeira, mas encarou os interlocutores de frente, com os óculos a meio do nariz. Só baixou os olhos para consultar um ou outro documento que os seus advogados, Francisco Proença de Carvalho e Adriano Squilaccie lhe colocavam à frente.
Tem de haver também um provérbio a falar de homens acossados a defenderem-se como feras encurraladas. Se não o houver, é preciso inventá-lo para Ricardo Salgado. É que, contando a sua versão, este homem atacou para todos os lados, procurando desresponsabilizar-se, sobretudo quando surgiram as perguntas sobre as áreas não financeiras do grupo, como a Espírito Santo Internacional (ESI) ou a polémica ESCOM. “Tinha uma vida 100% dedicada à área financeira. Não tinha responsabilidades na ESI”, afirmou. Uma argumentação idêntica à que terá usado junto das autoridades judiciais que o constituíram arguido no âmbito do processo Monte Branco.
As culpas
Numa intervenção inicial de 58 páginas, admitiu poder ter cometido erros, mas respaldou-se também na crise, iniciada em 2007, primeiro financeira, depois da dívida pública; queixou-se do “massacre das agências de rating” e do seu impacto na banca; e numa troika insensível aos alertas dos bancos sobre os impactos da austeridade.
Mas também atirou culpas contra alvos concretos e havia de repeti-las ao longo da manhã e depois do almoço tardio, que lhe seria levado até à sala 4 do corredor das comissões, cuja entrada era guardada por um robusto membro da sua segurança pessoal. O contabilista Francisco Machado da Cruz seria um desses alvos. Mas o governador do Banco de Portugal, Carlos Costa foi um dos que mais danos sofreram. “Ouvi com surpresa o senhor governador do Banco de Portugal dizer [na comissão de inquérito] que tomou várias iniciativas para que eu deixasse a governação do BES. Nunca me disse que me tirava a idoneidade. Bastaria ter feito um sinal para eu sair e eu sairia na hora…”
Se houve um braço de ferro com o regulador, Salgado não deu por ele. Mas, pelo sim pelo não, muniu-se, como lhe lembrou o deputado comunista Miguel Tiago, dos pareceres de juristas que teve o cuidado de remeter ao Banco de Portugal.
Ao final da tarde de terça-feira, Carlos Costa enviou uma carta com dois anexos à comissão, contrariando Salgado. Segundo Costa, em outubro de 2013, o banco central terá iniciado uma investigação a alguns administradores do Grupo Espírito Santo, incluindo Ricardo Salgado. Na troca de correspondência o desejo de o Banco de Portugal afastar o homem-forte do BES nunca é explícita, mas subentende-se. A idoneidade do ex-banqueiro é posta em causa, por exemplo, quando lhe fazem perguntas sobre aquilo que ele próprio designou de uma “liberalidade” oferecida por um amigo: os 14 milhões recebidos do construtor civil da Amadora José Guilherme, de quem será amigo desde os anos 70.
Contas truncadas
Os problemas no BES começaram a vir a público no outono de 2013, curiosamente, numa altura em que no seio do grupo se desenrola uma luta pelo poder entre Salgado e o seu primo José Maria Ricciardi.
As contas da Espírito Santo International (ESI), a holding instrumental do Grupo Espírito Santo, através da qual o universo Espírito Santo controlava as empresas das várias áreas de negócios, apresentavam indícios de ocultação de dívida. Os primeiros sinais de alarme já tinham soado através das auditorias independentes relativas a 2011 e 2012. Mas, no final de 2013, uma investigação do Banco de Portugal encontrou na contabilidade da ESI, detentora de todo o capital da Rioforte, “irregularidades materialmente relevantes”, entre as quais dívida não contabilizada: 7 300 milhões de euros, desses cerca de 6 040 milhões, foram financiados, através de papel comercial colocado em clientes de retalho e institucionais dos bancos detidos do grupo, incluindo o BES.
Mas a culpa do desastre da ESI não terá sido dele, reiterou, uma vez que se dedicava apenas à área financeira.
A 13 de dezembro, de 2013, o banco de Portugal exigiu a Ricardo Salgado o reembolso integral do papel comercial da ESI aos clientes de retalho do banco. Segundo ele, o regulador deu-lhe 18 dias úteis para resolver a questão, um período “inexequível” na ótica do ex-banqueiro.
A falta de tempo foi uma constante nas suas intervenções. “O problema do BES tinha sido resolvido se nos tivessem dado mais tempo”, afirmou.
E contou que pediu 2 500 milhões de euros emprestados ao Estado. Não seria uma entrada de capital público no grupo, mas um “apoio intercalar para a área não financeira” – uma espécie de balão de oxigénio a médio prazo, com o fito de dar tempo ao grupo para vender ativos. Seriam cinco anos, segundo afirmou.
A 31 de março deste ano, enviou uma carta a Carlos Costa apontando para o risco sistémico que derivaria de uma rutura desordenada do banco, em vez de uma transição controlada, que salvaguardasse a confiança do mercado.
E terá mostrado ao Presidente da República, à ministra das Finanças e ao primeiro–ministro, que a devolveu, e ainda a Durão Barroso, presidente da Comissão Europeia (e antigo consultor do BES), e ao então secretário de Estado Carlos Moedas.
Nesses encontros, ocorridos em maio e que culminaram com a entrega em mão de um memo a esses responsáveis, Salgado terá chamado à atenção para os riscos sistémicos da situação que se vivia no BES. “Não tinha nenhuma finalidade em obter vantagens estranhas com o Governo. Fui comunicar a probabilidade de um risco sistémico no BES.”
‘Vítima disto tudo’
As explicações de Salgado suscitaram um comentário irónico à deputada bloquista Mariana Mortágua: “É incrível que o ‘dono disto tudo’ apareça hoje como a ‘vítima disto tudo’. Quer fazer-nos acreditar que o seu império ruiu sem que soubesse o que se passava?”
“Embora fosse o primeiro responsável, foi sempre o último a saber”, ironizou, por seu lado, o acutilante Carlos Abreu Amorim. A uma pergunta deste social-democrata, que o acusava de estar a tentar descartar-se de responsabilidades, Salgado respondeu que “não era responsável pelo GES como um todo”. A delegação de poderes”, disse, “era a única forma de funcionar. É que num mundo como o BES é impossível saber-se tudo. Todos os ramos da família tinham responsabilidades paritárias e ninguém tinha a supremacia de voto nas reuniões do Conselho Superior.
“Eu era responsável pela área financeira, era o primeiro a chegar e o último a sair” e “trabalhava em casa muitos fins de semana”.
Quem não quer saber de responsabilidades partilhadas é José Maria Ricciardi, também ele ouvido esta terça-feira, na comissão parlamentar, ocupando a mesma cadeira em que Salgado se sentara momentos antes. Menos extensa, a audição em que Ricciardi foi duríssimo para com o primo, prolongou–se pelo serão adentro.
“Faço parte da família Espírito Santo e não aceito que se proceda a um julgamento coletivo de natureza sanguínea, incapaz de estabelecer a diferença entre a seriedade e a culpa.”
Recusando responsabilidades coletivas, o presidente do Banco Espírito Santo Investimento (BESI) declarou que “a cada um caberá a responsabilidade do que fez”. De manhã, o Diário de Notícias tornara pública uma carta enviada por Ricciardi ao Banco de Portugal em maio, responsabilizando o primo pela queda do império familiar com 145 anos de existência.
Durante a inquirição, Ricciardi, falando na liderança completamente centralizadora de Ricardo Salgado, regressou ao teor da carta, em que explicou que as contas e os movimentos financeiros da ESI foram tratados por um “núcleo restrito” e afirmou nunca ter sido chamado a intervir. Voltou a falar na sua iniciativa de pedir um inquérito (em novembro de 2013) para apurar responsabilidades.
Aos deputados falou da sua oposição à gestão de Ricardo Salgado e disse ter apresentado alternativas para mudar o modelo de governança e administração do grupo. Mas referiu ter sido traído pela maioria dos membros do Conselho Superior do banco, que apoiou Ricardo Salgado.
É sabido, há muito tempo, que Ricciardi chegou a ser apontado como sucessor de Salgado, que era seu rival. Ele nunca o escondeu nem ocultou que procurava afastar o primo do lugar cimeiro do grupo. E ele reiterou-o na comissão parlamentar: “Não pretendia que saísse a mal. Queria uma solução civilizada.”
Logo no início da sua audição, assumiu ter denunciado as situações duvidosas assim que teve conhecimento delas.
Mas, antes de se despedir dos deputados, Salgado minara-lhe o terreno, ao comentar essas diligências: “O dr. Ricciardi teve um comportamento, no mínimo, muito curioso. Certamente, se fez alguma denúncia ao regulador deve ter tido alguma contrapartida por isso.”
O presidente do BESI irritou-se e disse tratar-se de uma “verdadeira infâmia”. ?”O Banco de Portugal não negoceia com gestores bancários”, disse.
Não foi sua a última palavra nesta longa maratona. Mas Salgado conseguiu condicionar pelo menos o início da intervenção do primo. A fera ferida atacou em profundidade, mas, gostando de provérbios com felinos, devia lembra-se que no Gana se diz que a chuva molha a pele do leopardo mas não lava as manchas.