Quando, em Outubro, Jaime Antunes entrou no gabinete de João Rendeiro, na sede do Banco Privado Português (BPP), na Rua Mouzinho da Silveira, em Lisboa, era um homem determinado: “Sabia que o banco não estava bem e fui lá para levantar todas as minhas aplicações.” À saída, o estado de espírito era o oposto. A preocupação deu lugar à calma, a dúvida foi substituída pela certeza… e o dinheiro manteve-se onde se encontrava. “João Rendeiro garantiu-me que o banco estava muito bem, ao contrário do que se dizia.
Estava com uma saúde tal que até andava a emprestar dinheiro à Caixa Geral de Depósitos, no mercado interbancário, na ordem dos 200 milhões de euros, assegurou-me”, recorda o empresário, cliente do BPP e actual líder da associação Privado Clientes, representante de mais de 300 pessoas que aplicaram dinheiro nos produtos de retorno garantido.
Rendeiro está, agora, afastado do banco que fundou em 1996. Quando, em Novembro, pediu uma ajuda de 750 milhões de euros ao Governo, e pôs a nu as debilidades financeiras do banco mais elitista de Portugal, estava, também, a hipotecar parte da sua vida. Perdeu o seu capital de credibilidade e muitos amigos também. A VISÃO sabe que algumas das pessoas que, antes, lhe eram próximas, estão, hoje, “a afastar-se de forma violenta”, revela uma fonte próxima do ex-banqueiro. Desde que rebentou o escândalo BPP, Rendeiro não dá entrevistas nem fala com a comunicação social a VISÃO contactou-o mas ele preferiu o silêncio. Tornou-se bastante mais reservado e aventurase menos para lá dos muros da sua casa, uma moradia, recheada de obras de arte, que se estendem até ao (vasto) jardim, na exclusiva Quinta Patiño, no Estoril. O paredão de Cascais, onde costuma passear, é dos poucos locais públicos onde ainda é visto com alguma frequência. É precisamente esta moradia, a sua vasta colecção de arte (ver caixa E as obras da Ellipse Foundation?) e outros bens pessoais que alguns clientes do BPP querem ver arrestados para cobrir as suas perdas.
Longe está a vida de gabinete, dos negócios, das relações com clientes, investidores e accionistas. Num dos derradeiros encontros com estes últimos, no Verão, Rendeiro ter-lhes-á garantido lucros entre 30 e 40 milhões de euros, em 2008.
Segundo o porta-voz da Privado Clientes, para o fundador do banco, e para a sua equipa de gestão Rendeiro tinha deixado a presidência executiva para se tornar chairman do BPP, desde 2005, era já bem claro que a instituição estava com dificuldades de liquidez, pelo menos desde o início de 2008.
A dado momento, continua, “o fluxo de dinheiro que entrava não chegava para pagar os contratos mais antigos. É então que começa a estratégia de alargamento da base de clientes”. De acordo com Jaime Antunes, “houve ali um bocadinho de Dona Branca”.
Foi há cerca de um ano e meio que a estratégia comercial do banco se alterou, radicalmente.
“Começaram a ser contratados gestores de conta a outros bancos, que arrastavam consigo a sua carteira de clientes”, comenta outra fonte próxima do BPP.
BANCO DOS RICOS… E DOS OUTROS A partir do Verão de 2007, a média do dinheiro investido pelos clientes começou a cair.
Em 2003, João Rendeiro garantiu à VISÃO que o cliente-tipo do BPP tinha um saldo médio de um milhão de euros. “Geralmente, abrem conta com 250 mil euros. Entretanto, o banco já fez uma apreciação do potencial de cliente e percebeu que poderá chegar ao saldo médio típico do banco”, disse-nos.
A carteira de clientes que deixou no banco, no final de 2008, era bem diferente desta.
Actualmente, metade dos 3 mil clientes com aplicações de retorno garantido têm aplicações abaixo dos 200 mil euros. É o caso de um aforrador, com 70 anos, que julgava ter o plano perfeito para a vida de reformado. Para complementar a pensão de reforma a que tem direito e que considerou insuficiente para manter o nível de vida que tinha quando trabalhava, delineou uma estratégia: aplicou os 200 mil euros que poupou ao longo da vida num produto de retorno garantido do BPP. Os juros periódicos e uma pequena desmobilização mensal de capital, permitir-lhe-iam viver como antes, sem qualquer perda de poder de compra, até aos 85 anos. No final do ano passado, o futuro ficou, de repente, mais incerto.
José Oliveira, 62 anos, engenheiro químico na reforma, é cliente do BPP há mais de uma década. Confiou ao banco “o dinheiro de uma vida”, todo aplicado nos produtos de retorno garantido. O filho, Nuno, de 24 anos, engenheiro informático, seguiu os passos do pai. Tinha acabado de receber umas heranças e, enquanto preparava um projecto de gestão de activos, em que se iria lançar por conta própria, optou por fazer o dinheiro render… no BPP. Azar, mesmo em cima do prazo do resgate, o caso estoirou e já não conseguiu pôr mão no seu dinheiro.
José Oliveira faz questão de sublinhar que o BPP não era só um banco para os mais abonados.
“É preciso desmistificar que os clientes do BPP são todos ricos. E se fossem, isso não é crime.” Ele, e o filho, estão revoltados porque “os únicos clientes com dinheiro bloqueado na instituição são precisamente os aforradores conservadores, que optaram por aplicações a prazo para se sentirem seguros irónico não?”. E dizem que estão, assim, a ser discriminados comparativamente com os depositantes do BPN.
Aperta-se, assim, o cerco ao Governo, que já afirmou que não irá intervir. Jaime Antunes também não vê diferenças entre os depositantes do BPN e os aforradores dos produtos de retorno garantido, do BPP. Mais. Se o Governo não intervier, o risco de falência do BPP aumenta e, se tal acontecer, será a primeira de um banco na União Europeia.
Quanto ao retorno prometido, ao que parece, podia mesmo não estar garantido. É o que afirma José Oliveira. Quando viu o contrato, onde se dizia que o banco podia aplicar o dinheiro em acções e produtos à sua inteira discricionariedade, ainda pensou: “Mas eu assino isto por alma de quem? O que é que tenho a ver com isso?” A gestora de conta respondeu-lhe, contudo, prontamente: “Não ligue a isso. É apenas um formalismo a que obriga o Banco de Portugal.” Assim, “no clima de confiança, assinei”.
Estes são apenas três dos inúmeros casos de aforradores menos abastados que apostaram tudo no banco dos ricos e saíram claramente mais pobres. A perder, em média, metade do que investiram.
INVESTIGAÇÃO REFORÇADA
Como é que o dinheiro encolhe para metade? Tudo aconteceu graças a um esquema que passa por offshores e, alegadamente, práticas bancárias menos escrutinadas, que encaixam no perfil do chamado shadow banking sistemas financeiros complexos que conseguem escapar à supervisão e à regulação da banca convencional (ver caixa Como o dinheiro encolheu). Muitos destes instrumentos produtos estruturados, hedge funds, entre outros desenvolveram-se nos últimos oito anos e estiveram, também, na origem da actual crise financeira.
E são estas alegadas práticas que chamaram a atenção das autoridades, em Portugal.
O caso BPP foi o primeiro processo que obrigou o Ministério Público (MP), a Polícia Judiciária (PJ), o Banco de Portugal (BdP) e a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) a trabalhar estreitamente em conjunto. Em Novembro último, o BdP e a CMVM fizeram chegar à Procuradoria um extenso dossiê “de práticas financeiras muito graves” atesta fonte ligada ao processo e, de lá para cá, têm sido várias as reuniões entre os dois magistrados da 9.ª secção do DIAP de Lisboa (destacados em exclusivo para este caso) e os dois organismos reguladores.
Uma task-force tão completa mostra bem o grau de complexidade da operação em curso.
O processo tem o estatuto de “prioritário “, e está sob a alçada da secção do DIAP especializada no crime económico mais complexo tem também entre mãos o caso BCP. Mas a estratégia dos investigadores passará por investirem o tempo que for preciso na recolha de material documental e sua posterior análise. Só então, e se os dados recolhidos forem consistentes, poderá haver uma mudança no estatuto processual de Rendeiro e outros dirigentes do banco.
Apesar de já existir um lote de suspeitos, não existem ainda condições, nem elementos, para avançar para a constituição de arguidos.
“O âmbito do processo ainda não se encontra definido e os indícios ainda estão muito em bruto”, admite fonte judicial.
Até agora, apenas Mário Sampaio, pequeno accionista da Privado Holding (a “dona” do BPP) e figura próxima de Rendeiro, foi constituído arguido. Sampaio era um dos principais visados nos relatórios entregues em Novembro ao DIAP, que desencadearam a investigação judicial por suspeita de irregularidades financeiras, e foi considerado, logo à cabeça, uma das peças da alegada engrenagem fraudulenta ligada ao banco. Viu a sua casa ser alvo de buscas, em Janeiro, tal como sucedeu nas instalações do próprio banco. Seria interrogado nesse mesmo dia e constituído arguido por suspeita de branqueamento de capitais. Três funcionários da instituição foram também ouvidos, mas apenas na qualidade de testemunhas.
É em torno dos papéis e dos conteúdos dos computadores apreendidos nas buscas que os procuradores se têm debruçado, para determinar o circuito financeiro do dinheiro usado e, sobretudo, associar pessoas concretas a essas práticas.
Tal não se afigura fácil. “Trata-se de esquemas muito complexos, que desafiam mesmo a competência de entidades de supervisão internacionais habituadas a estes casos”, explica à VISÃO fonte judicial. “Têm uma forte aparência de legalidade, sendo que as partes ilícitas desses esquemas ocorrem em domínios geográficos fora de escrutínio.” A confirmar-se a prática de crime, este será um daqueles que roça a perfeição.
Esquema
>> Como o dinheiro encolheu
As aplicações em produtos de retorno garantido valem, hoje, cerca de metade, de acordo com as nossas fontes. Mas como é que uma aplicação supostamente segura gera menos-valias? Jaime Antunes, que representa 300 clientes do BPP, e outras fontes da área financeira, explicaram-nos o circuito de uma quantia estimada em 1 200 milhões de euros
- O PRODUTO O BPP captava dinheiro junto de clientes e prometia retorno garantido (de capital e juros), ao fim de um período de tempo.
- O CONTRATO As cláusulas gerais dos contratos falavam sempre em retorno garantido e ausência de risco. Mas as cláusulas particulares contradiziam as cláusulas gerais.
- O INCENTIVO A maioria dos clientes acreditava que estava a fazer um simples depósito a prazo, que rendia, em média, mais 0,25% a 0,5% do que a média do mercado.
- O LADO OBSCURO Esse dinheiro era canalizado para a sucursal BPP das Ilhas Caimão. Posteriormente, eram constituídas sociedades offshore nas Ilhas Virgens. O banco dava aos clientes notas de crédito sobre essas aplicações.
- A ESTRATÉGIA A valorização destes activos permitia pagar os juros aos clientes e gerar lucros para o banco. Quando a bolsa cai, a corrente parte-se.
- O RISCO Dois terços dos produtos que estão nas sociedades offshore são obrigações subordinadas de bancos. Em caso de falência destas instituições, estas obrigações só são pagas depois de ressarcidos todos os outros credores. O outro terço era constituído por vários produtos, alguns de alto risco.
- O DESCALABRO Como os clientes nunca sabiam onde o seu dinheiro era aplicado, aperceberam-se, pela via mais dura, de que, afinal, o seu investimento não estava isento de risco. Na hora de resgatar a poupança, esta já valia, dependendo dos casos, menos 30%, 50% e até 60 por cento.
- O BECO SEM SAÍDA As offshore, instrumentalizadas a partir do BPP Cayman, não entravam no balanço do banco. Se tal acontecesse, o BPP teria de provisionar estes valores e entraria em insolvência.
>> Quem é dono do BPP…
Com excepção de Rendeiro, todos estes accionistas estão, agora, reunidos, à procura de uma solução para o banco
- JOÃO RENDEIRO 12,50%
- PARTNERS EQUITY TRUST 6,34%
- FRANCISCO PINTO BALSEMÃO 6,02%
- STEFANO SAVIOTTI 5,83%
- FAMÍLIA VAZ GUEDES 5,81%
Outros accionistas
- ALFA EUROPAECO 5,00%
- SF SOCIEDADE DE CONTROLO 4,17% (família Serrenho, da CIN)
- HELENE INVEST. HOLDING 2,50%
- COOPER INVEST. 2,26%
- FUND. LUSO-AMERICANA PARA O DESENVOLVIMENTO 2,19%
- JOAQUIM DOS SANTOS 2,08%
- JOAQUIM COIMBRA 2,00%
… e quem manda no banco
Depois da intervenção do Banco de Portugal, o poder mudou no BPP. A injecção de 450 milhões de euros, por seis instituições financeiras, alterou a equipa de gestão
- ADÃO DA FONSECA É o novo presidente executivo. Vem do BCP, que injectou no BPP 120 milhões de euros
- JOÃO GAMITO FARIA Administrador, que vem da Caixa Geral de Depósitos, que meteu no BPP 120 milhões de euros
- SÉRGIA FERNANDES FARRAJOTA Esta administradora vem do BPI, que aplicou 50 milhões de euros no BPP
- OUTRAS INJECÇÕES Mesmo sem nomear administradores, houve mais três bancos a apoiar o BPP BES 80 milhões de euros
- SANTANDER TOTTA 60 milhões de euros
- CCCAM 20 milhões de euros
Clientes ‘Recuperar o que for possível’ O novo fundo, que irá gerir os activos de alguns clientes, estará constituído até ao fim de Março. A associação de Jaime Antunes quer “recuperar o que for possível”.