Começou o Campeonato do Mundo da discórdia. Até ao próximo dia 18 de dezembro, 32 seleções vão disputar o mais ambicionado troféu futebolístico do mundo, num país que nunca deveria ter sido autorizado a organizar um Mundial. Pela forma corrupta como foi conseguida a escolha, pelas condições desumanas em que milhares de migrantes foram obrigados a viver (e muitos deles a morrer) para que o país conseguisse pôr de pé todas infraestruturas necessárias e pelo total desrespeito dos mais básicos direitos humanos, nomeadamente no que respeita às mulheres e à comunidade LGBT, o Qatar nunca deveria ter sido eleito para organizar um Campeonato do Mundo de Futebol. Ou melhor, aqueles que na FIFA representam os países que primam pelo estado de direito democrático e pela garantia dos direitos humanos, de cidadania e ao trabalho digno nunca poderiam ter dado (ou vendido, neste caso) o seu voto a favor desta aberração. Mas uma aberração que não é única na história do futebol. Basta recordar que a última edição do Mundial aconteceu, em 2018, na Rússia, que sendo formalmente uma democracia, está longe, como sabemos, de ser um regime respeitador das liberdades cívicas e dos direitos humanos. Para já não falar da edição de 1978, organizada pela Argentina, então governada por uma sangrenta ditadura militar.
O futebol tem esta dupla face: a de ser um desporto apaixonante, que arrasta a atenção de milhares de milhões pessoas em todo o mundo, empolgadas pelo que passa dentro das quatro linhas e, ao mesmo tempo (ou, muito provavelmente, por causa disso) ser terreno fértil para as atividades mais corruptas e imundas, onde prevalece que tem mais dinheiro e mais poder. E o mundo inteiro tem vindo a assistir (e a aceitar) que assim seja, fechando tantas vezes os olhos à entrada do dinheiro sujo de sangue e ganho à custa da exploração de mão de obra barata ou quase escravizada a troco de ver as suas equipas mais fortes, com mais recursos para poder ganhar mais vezes. Basta ver quem detém e quem patrocina a grande maioria dos clubes dos principais campeonatos europeus, e até mesmo de Portugal.
Chegados, agora, ao dia 1 do Mundial do Qatar, coloca-se a questão de saber como lidar com a realidade. Muitos defendem o boicote puro e duro. Não assistir a um jogo que seja daria um sinal aos políticos, aos dirigentes da FIFA, aos patrocinadores e aos detentores dos direitos de transmissão de que se pode pactuar com regimes como os Qatar. É uma posição completamente legítima. Outros, como o Presidente da República de Portugal, reconhecem a indignidade do regime catari, mas que apelam a que se “esqueça isso, agora”, porque estamos na altura de torcer pela nossa seleção. Depois, há aqueles, entre os quais me incluo, que acham que é possível acompanhar apaixonadamente o que vai acontecer dentro das quatros linhas dos estádios do Qatar, sem nunca esquecer e, sobretudo, sem nunca deixar de denunciar aqueles que permitiram que milhares tivessem morrido para os construir. Aqueles que acreditam que será possível ver algumas das melhores seleções do mundo e muitos dos grandes craques planetários a aproveitar os palcos mediáticos para defender os direitos das mulheres e dos homossexuais. E mostrar aos senhores todos poderosos da FIFA, nomeadamente ao seu inenarrável presidente, que a defesa do direito a uma cidadania plena não pode ser silenciada. Nem no Qatar, nem em qualquer outro lado do mundo. E já que os principais dignitários do nosso país fazem questão de ir assistir ao vivo aos jogos da Seleção Nacional durante o mundial, que aproveitem a ocasião para o dizer alto e bom som. Não se “esqueçam”!