Quando os pais de Nico Williams deixaram o Gana para procurar uma vida melhor em Espanha, numa viagem de risco, a mãe já estava grávida de Inãki, hoje com 30 anos. Nico nasceria oito mais tarde, em Pamplona, cidade para onde a família se mudou após os primeiros tempos em Bilbau. No Mundial do Qatar, disputado no final de 2022, o irmão mais velho acabaria por jogar pelo Gana e o mais novo estreou-se em fases finais pela Espanha, repetindo agora a presença no Euro2024, já com estatuto de titular. E que exibições tem realizado, primeiro no 3-0 frente à Croácia e, na noite desta quinta-feira, no triunfo por 1-0 perante a Itália que garantiu a passagem oitavos-de-final.
Com apenas 21 anos, Nico pôs a cabeça em água a Giovanni Di Lorenzo – o lateral direito italiano que tinha a missão de o travar -, liderando o festival de futebol ofensivo da seleção comandada por Luis de la Fuente. A probabilidade de aparecer na fotografia de capa dos jornais espanhóis de amanhã rondará os 99%.
Inseparáveis, Iñaki e Nico representam ambos o Atlético de Bilbau, mas dificilmente o mais novo irá manter-se por lá, depois da explosão a que estamos a assistir em terras alemãs. Na temporada interrompida a meio pelo Mundial do Qatar, o único até hoje disputado em dezembro, o extremo esquerdo conquistara a titularidade no clube, juntando-se no “onze” ao irmão, ponta-de-lança que bateu o recorde da Liga espanhola de jogos consecutivos. Mas na seleção era ainda um suplente visto como uma solução para agitar um jogo em caso de necessidade. Agora, estamos noutro patamar, e os espanhóis rejubilam com a perspetiva de contarem com dois extremos eletrizantes para a próxima década – uma vez que, do outro lado, Lamine Yamal, com os seus 16 anos, vai causando estragos semelhantes.
A história familiar dos Williams, muito antes do sucesso no desporto-rei, é um hino à capacidade de sobrevivência do ser humano. A mãe dos manos futebolistas, Maria, e o pai deles, Felix, deixaram o Gana natal em 1994. A viagem foi bastante atribulada até Melilla, o enclave espanhol no Norte de África que faz fronteira com Marrocos. Os cerca de 4000 quilómetros foram percorridos na parte de trás de uma carrinha pickup à pinha de gente e, depois, a caminhar pelo deserto do Saara, sob temperaturas de 40 e 50 graus. Felix ficou com dificuldades na marcha, devido a queimaduras na planta dos pés.
Uma vez chegados a Melilla, mais problemas: conseguiram saltar a enorme vedação, mas acabaram detidos temporariamente e impedidos de entrar em Espanha. A conselho de um elemento de uma associação humanitária, porém, ao formalizarem um pedido de asilo, alegaram que eram refugiados da guerra civil na Libéria e receberam luz verde para atravessar o Mediterrâneo rumo a Espanha.
Instalaram-se primeiro em Bilbau, onde um padre os ajudou com roupas e outros bens para Iñaki, que entretanto nasceu, e depois numa habitação social em Pamplona. Felix andava de emprego em emprego e, ao fim de pouco mais de uma década, partiu para Londres, em busca de sustento mais certo. Só voltaria 10 anos mais tarde e, nesse hiato, Iñaki passou a tomar conta do irmão mais novo, enquanto a mãe trabalhava. Alimentava-o, vestia-o, e mais tarde passou a levá-lo à escola e aos treinos de futebol. Quando ingressou no Atlético de Bilbau, aos 19 anos, o irmão Nico foi com ele, para as camadas jovens e, até hoje, mantêm-se fiéis ao clube do País Basco.
“Ouvir a história dos meus pais faz-nos querer lutar ainda mais para lhes devolver tudo o que eles sacrificaram por nós”, afirmou Iñaki Williams, numa entrevista ao The Guardian. “Nunca lhes vou conseguir pagar – eles arriscaram a vida -, mas a vida que lhes tento dar é aquela que eles sonharam para nós”, acrescentou.
Em setembro de 2022, já na antecâmara do Campeonato do Mundo do Qatar, Iñaki estreou-se pela seleção do Gana e Nico vestiu pela primeira vez a camisola da equipa principal de Espanha – ao segundo jogo, saltou do banco de suplentes para fazer a assistência para Morata marcar o golo da vitória frente a Portugal, que qualificaria os espanhóis para a final four da Liga das Nações, em vez de Ronaldo e companhia.
Iñaki já não era chamado aos trabalhos da seleção espanhola desde um encontro particular em 2016, no tempo de Vicente del Bosque como selecionador, e decidiu que era hora de dar o sim ao Gana e jogar no Mundial. A decisão foi tomada durante o verão, numa rara visita a familiares ganeses que permanecem no país. Numa conversa com o avô James, 90 anos, ele disse-lhe que já poderia morrer feliz se o visse jogar pelo Gana. Já Nico preferiu vestir as cores de Espanha e, por esta altura, é um herói nacional do outro lado da fronteira – como se verá pelas capas dos jornais de amanhã.