Os primeiros raios solares ainda nem tinham começado a refletir-se nas águas do Lago de Zurique e já um empregado se esforçava para pôr o pavimento de mármore do lóbi do hotel a brilhar. Naquela madrugada de 27 de maio, a rotina do Baur au Lac, só se manteve até às 5 horas e 20 minutos, quando uns dez homens de rosto jovial e ar modernaço entraram apressados pela porta giratória.
O luxuoso estabelecimento por onde passaram Richard Wagner e Alfred Nobel – e o quarto mais barato custa 550 euros por noite – saiu definitivamente do ramerrame quotidiano. Não é todos os dias que entra por ali gente de calça de ganga e sapatilhas, dirigindo-se ao balcão e identificando-se ao concierge como sendo da polícia criminal. Ainda por cima, apresentando mandados de captura para sete hóspedes. O concierge foi solícito. Mal os agentes souberam em que quartos dormiam os suspeitos, espalharam-se sem alaridos pelo hotel.
Menos de uma hora depois, era vê-los a sair discretamente. Por uma porta traseira, acompanhados de sete altos dirigentes da FIFA, o organismo que regula o futebol mundial, suspeitos dos crimes de conspiração, corrupção ativa e passiva, extorsão, fraude eletrónica, evasão fiscal e branqueamento de capitais.
Feitas na Suíça, a pedido das autoridades norte-americanas, as detenções destes sete indivíduos caiu como uma bomba no seio da comunidade futebolística. E logo na véspera do Congresso da organização, que, na sexta-feira, reelegeu naquela cidade, Joseph (Sepp) Blatter para um quinto mandato na presidência da FIFA.
Apesar de ver a sua direção decapitada, Blatter tentava parecer otimista e comentou: “Não foi um tornado, apenas uma pequena tempestade.”
Resistiu a pressões para se afastar da corrida presidencial; para se retirar. Mas ele foi à luta e venceu o rival, príncipe jordano Ali bin Hussein, que desistiu da segunda volta.
A corrupção na FIFA não é um assunto novo. Tem muitos anos. Tantos como o laxismo com que a organização lidou com ela. À custa de graves danos reputacionais, os vários casos detetados na “família do futebol” sempre foram tratados com complacência – e impunidade. Tudo era resolvido internamente e os dirigentes apanhados em falso viam apenas as suas funções suspensas. A FIFA chegou a contratar especialistas em corrupção, mas, quando chegava a hora da verdade, metia os relatórios na gaveta. E os peritos acabavam por virar as costas à organização. Tudo ficava novamente em família.
Mas com a operação policial de 27 de maio, os mandados de captura e as buscas na sede da organização, nada podia ficar na mesma. Algumas federações europeias – caso do Reino Unido – ameaçaram logo com um boicote ao Mundial da Rússia (em 2018). E a UEFA falou até numa rutura com a FIFA, e alguns dos seus responsáveis terão discutido até a realização de uma nova competição europeia independente da estrutura máxima do desporto-rei.
Por seu lado, os patrocinadores ficaram incomodados. Adidas, Coca-Cola, Hyunday-Kia, McDonald’s e VISA manifestaram publicamente o seu desagrado por se verem associadas a uma organização na qual os investigadores do FBI encontraram indícios de “corrupção desaforada, sistémica e profundamente enraizada”.
Mal o escândalo rebentou, Richard Weber, chefe da unidade de investigação criminal do fisco norte-americano e um dos responsáveis pelo processo, declarou estar confiante de que haverá “uma nova ronda de acusações”. Muita gente pensou logo em Blatter, que perdera a aura de intocável.
Já nesta segunda-feira, 1, o cerco a “Don Blatterone” – como lhe chamou alguma imprensa de língua alemã – apertou-se. Viera a público que o “alto dirigente” mencionado (mas não identificado) na acusação como sendo o responsável pela transferência de 10 milhões de dólares para o antigo vice-presidente da FIFA Jack Warner, seria o francês Jérôme Valcke, secretário-geral da organização e braço-direito de Blatter. Esses 10 milhões saíram do bolo a que a África do Sul teve direito aquando da realização do Mundial. A polícia suspeita que se tratou de um pagamento ilícito a Warner.
Para já, o secretário-geral não está acusado de nenhum ilícito. Mas não se livrará de ser ouvido pela polícia. O mesmo pode vir a suceder com Blatter – o New York Times avançou esta terça-feira, 2, que estaria já a ser investigado pelo FBI. Um facto que pode ter sido decisivo para o líder da FIFA ter dado uma conferência de imprensa nesse mesmo dia para anunciar a sua retirada e a convocação de um congresso extraordinário, que deverá ter lugar entre dezembro e março.
150 milhões em luvas
No total, a procuradora-geral norte-americana (ministra da Justiça), Loretta Lynch, acusa 18 indivíduos. Sete eram, à data das suas detenções, dirigentes de topo da FIFA, mais dois antigos dirigentes, outro foi colaborador de alto nível e os restantes são homens de negócios ligados à estrutura diretiva do futebol mundial.
Os despachos de acusação, num total de 281 páginas, revelam as manigâncias de homens com muito poder e muito dinheiro, ávidos de mais dinheiro e mais poder. E descrevem ao pormenor um elenco de alegados corruptos e corruptores. Falam-nos dos protagonistas, dos atores secundários, dos figurantes e dos intermediários – os facilitadores que unem toda esta teia e branqueiam montantes multimilionários. Falam de esquemas criminosos, de conspiração, de luvas, de ocultação de fundos em contas bancárias secretas, em paraísos fiscais. E ainda de subornos que, ao longo de duas décadas, atingiram um montante na ordem dos 150 milhões de dólares.
Oficialmente, a FIFA é uma entidade de interesse público sem fins lucrativos, gozando à luz da lei helvética de generosas isenções fiscais. Contudo, movimenta quantidades astronómicas de dinheiro. Desde 2009 que não obtém receitas anuais inferiores a mil milhões de dólares. As grandes competições mundiais são máquinas de fazer dinheiro. Só o Mundial do Brasil, por exemplo, gerou 4 826 milhões de dólares em receitas, com as despesas a ascenderem a 2 224 (ver infografias).
O modo de atuação deste suposto grupo de malfeitores, com uma idade média de 62 anos, passou por esquemas à volta de direitos comerciais sobre as competições mundiais e regionais (como a Copa América). Executivos de empresas de marketing pagavam avultados subornos a altos funcionários da FIFA para obterem chorudos contratos exclusivos. Estes incluíam direitos de transmissão dos jogos, o patrocínio dos torneios e a utilização das marcas FIFA para promover ou vender produtos. Segundo a acusação, este modus operandi permitiu que um número reduzido de empresas monopolizassem contratos durante décadas.
A documentação conta-nos também a história de Austin (Jack) Warner, um ex-ministro de Trinidad e Tobago, ex-vice-presidente da FIFA, ex-presidente da CONCACAF (a confederação de futebol da América do Norte, Central e Caraíbas). E coloca bem no centro da teia o brasileiro José Hawilla, fundador da multinacional de marketing desportivo Traffic, detentora do clube português Estoril Praia.
Hawilla terá sido uma das peças-chave em torno dos direitos. A sua Traffic deteve, entre 1987 e 2011, em regime de exclusividade, todo o marketing e as transmissões da Copa América, disputada de quatro em quatro anos entre as seleções da Confederação Sul-Americana de Futebol, CONMEBOL. Tê-lo-á conseguido durante tantos anos graças ao pagamento regular de subornos a altos funcionários da FIFA. Segundo a Justiça dos EUA, pagou, durante duas décadas, a Nicolás Leoz, um paraguaio que pertenceu ao Comité Executivo da FIFA e presidiu à CONMEBOL, até 2013, quando teve de deixar os dois cargos acusado de corrupção.
A Traffic ganhou bom dinheiro, revendendo depois direitos individualmente a outras empresas. Para garantir os contratos, era por vezes necessário subornar alguns atores secundários, como aconteceu, quando a copa se realizou na Venezuela (2007). Nessa ocasião, a Traffic terá pago luvas de 1 milhão de dólares a Rafael Esquivel, membro da FIFA, do Comité Executivo da CONMEBOL e presidente da Federação de Futebol da Venezuela. A Traffic obteve um lucro de 30 milhões de dólares com essa competição e Esquivel foi recompensado com mais 700 mil dólares.
Hawilla aplicou a mesma receita na América do Norte, com a CONCACAF. Mas nesse caso, as luvas foram entregues a Jack Warner e ao então secretário-geral dessa entidade em Nova Iorque, Charles (Chuck) Blazer.
Os pagamentos processavam-se através de transferências eletrónicas e o intermediário era quase sempre o mesmo: empresário brasileiro José Margulies, também conhecido como José Lázaro. Este fazia a ligação entre a cúpula da FIFA e as empresas de marketing. O seu papel era o de facilitador. Limpava e ocultava o dinheiro sujo, recorrendo a outros intermediários e a contas bancárias secretas em paraísos fiscais. Trabalhava com base em avenças anuais fixas de 150 mil dólares, além de uma comissão de 2% sobre cada pagamento.
Votos viciados
Jack Warner e Chuck Blazer jogavam ainda num outro tabuleiro: o da escolha do anfitrião do Mundial. Ambos fizeram parte do Comité Executivo da FIFA, composto por 23 membros. Segundo a Justiça dos EUA, Warner usou a sua influência para que a escolha do anfitrião de 2010 recaísse sobre a África do Sul, que competia com Marrocos e o Egito. Em troca, terá recebido 10 milhões de euros. Os sul-africanos admitem que houve um pagamento à FIFA, mas dizem não se ter tratado de suborno. A transferência, terá sido feita a título de “apoio à diáspora africana” para uma conta da federação caribenha. Mas quem controlava a conta era o seu presidente, Jack Warner.
A acusação dedica ainda seis páginas à maneira como Warner e os seus filhos Daryan e Daryl, também indiciados, cultivaram uma relação de amizade com o governo de Pretória, que incluía pastas com maços de notas, que trocaram de mãos num hotel de Paris. E diz que os 10 milhões passaram por uma cadeia de supermercados de Trinidad e Tobago, usada por Warner como “lavandaria”.
Dessa verba, 1 milhão foi parar às mãos de Blazer, o excêntrico obeso e com ar de Pai Natal que seria a primeira peça a cair no dominó da FIFA. O norte-americano começou a ser investigado por evasão fiscal nos EUA. Foi rapidamente apanhado e prontificou-se a colaborar com a justiça.
O que a documentação revela é só a ponta do icebergue. A investigação dos Estados Unidos tem apenas incidido nas confederações de futebol das Américas e Caraíbas, e em torno de ilícitos praticados no seu território ou envolvendo os seus bancos.
O inquérito centra-se em competições já realizadas. Mas os investigadores olham já para o futuro. Em particular para a forma como se atribuíram os mundiais à Rússia (2018) e ao Qatar (2022).
Os suíços já o perceberam e estão a investigar, por iniciativa própria, desde março. Há inúmeras suspeitas de irregularidades na escolha dos países organizadores que vão desde a corrupção ao enriquecimento ilícito, passando por branqueamento de capitais e gestão danosa. Aguardam-se as cenas do próximo capítulo desta novela ainda sem fim à vista.