Quarta-feira, 2 de maio, durante uma reunião de acionistas. “Se até sexta-feira, às 19 horas, os atletas que rescindiram não voltarem, desistimos do campeonato. É irreversível.” O ultimato de João Bartolomeu, 66 anos, presidente da União de Leiria, SAD, parecia sério. E teria consequências graves na 1.ª Liga: anulando a participação, o Braga ficaria apenas a um ponto do Benfica e de uma qualificação direta para a Liga dos Campeões; o Sporting perderia, de vez, as possibilidades de chegar ao 3.° lugar.
Sete da tarde de sexta-feira, 4 de maio. Nem sinal dos atletas. No dia seguinte, no entanto, embora com alguns júniores, lá estava a equipa do Lis a defrontar o Benfica, como se nada se passasse. Afinal, a União de Leiria não renunciara. Aliás, o presidente não podia assinar a desistência. Demissionário há quase um mês, só está autorizado a tomar decisões de gestão corrente. Seria bluff para convencer a Liga de Clubes a ajudar a pagar os vencimentos, suspeitaram alguns sócios. Mas a promessa falhada surpreendeu pouca gente do mundo do futebol, onde a palavra vale tanto como o que muitos jogadores do clube receberam de ordenado este ano. Zero.
João Bartolomeu é a estrela de mais um episódio de humor negro do principal campeonato português. Em meados de abril, fartos de viverem da caridade de amigos, vários jogadores da União de Leiria fizeram greve aos treinos e, depois, rescindiram os contratos – há meses que ouviam, do presidente, juras de pagamento dos salários em atraso, sem que o dinheiro lhes aparecesse nas contas. Ao protesto, o presidente respondeu ao ataque. “Só pensam em dinheiro e não em trabalhar”, disse, numa entrevista ao jornal A Bola. No mesmo dia da greve, apresentou a sua demissão. Mas a história ainda ia no início.
NEGÓCIOS, FUTEBOL, MAIS NEGÓCIOS
João Alberto Amado Bartolomeu nasceu a 21 de janeiro de 1946 na aldeia de Alqueidão da Serra, 15 quilómetros a sul de Leiria. As suas origens modestas não lhe permitiriam grandes voos sem esforço, mas o rapaz era ambicioso. Foi estudar para a Escola Comercial de Leiria, tornou-se mediador de seguros e, em dez anos de carreira, juntou dinheiro suficiente para investir em terrenos e fundar a Materlis, em 1977, uma empresa de madeiras que se transformaria numa das gigantes do setor, em Portugal (até abrir falência, em março deste ano, com dívidas de 20 milhões de euros). O sucesso empresarial do alqueidoense levou a que alguns conterrâneos, certamente por inveja, trocassem rumores sobre eventuais desfalques na companhia de seguros. Imune aos boatos, João Bartolomeu continuou a subir a pulso até entrar no grupo dos maiores empresários de Leiria. Hoje, está ligado, como membro do conselho de administração ou sócio (na maior parte dos casos, com a mulher, Deolinda, e as duas filhas), a firmas de construção civil, têxteis, mediação imobiliária, importações, cabeleireiros, gestão, consultoria e holdings de investimentos e participações.
Entretanto, aventurou-se no futebol. Em 1987, a sua popularidade na cidade empurrou-o para a presidência da União de Leiria. Doze anos mais tarde, com a criação das Sociedades Anónimas Desportivas, passou para a liderança da União de Leiria, SAD. Um percurso comum, no futebol português: muitos empresários chegam às administrações dos clubes locais, numa atitude de propalada abnegação. “É o velho chavão de que estão lá para servir o futebol. Vou propor que alguns sejam canonizados”, ironiza Joaquim Evangelista, presidente do Sindicato dos Jogadores Profissionais de Futebol, que tem apoiado os atletas da União. “Toda a gente percebe que eles ganham, nos clubes, visibilidade que lhes permite alavancar os seus negócios, com promiscuidades pelo meio.” Um exemplo: escutas de 2004 no âmbito do processo Apito Dourado (e mais tarde consideradas ilegais pelos tribunais) mostram pedidos de trocas de favores comerciais entre João Loureiro, então presidente do Boavista, e João Bartolomeu. O primeiro pedia ao segundo um adiantamento de 750 mil euros para a construção de um novo estádio, recordando ter acelerado o processo de abertura de umas lojas do leiriense. “Já é tempo de se avaliar o que ganham os dirigentes através do futebol”, sugere Joaquim Evangelista.
É AGORA OU NÃO
Para o sindicalista, João Bartolomeu – que a VISÃO tentou, sem sucesso, contactar – personifica o que de pior os portugueses associam aos presidentes de clubes de futebol. “A suspeição, o sentimento de impunidade, a prepotência, a infâmia, as ameaças…” Joaquim Evangelista ilustra com o contencioso que o opõe aos jogadores – o presidente da SAD garantiu que ia processar “os desertores” (palavras de Bartolomeu) e que os bens dos atletas seriam penhorados, para compensar os prejuízos por terem faltado ao jogo com o Feirense. E ainda acusou publicamente o jogador Keita de fugir com uma pasta com 6 mil euros, antes dessa partida. Um comunicado da SAD, horas depois, admitia ter havido, apenas, uma “confusão”. Mas o dirigente não pediu desculpas.
Estes últimos dias de João Bartolomeu à frente da União de Leiria são um final adequado a um reinado turbulento. O futebol português vai agora ficar sem o homem que, entre outras, disparou frases como “se não conseguirmos [pagar aos jogadores], paciência”. Ou talvez não. Corre no meio que João Bartolomeu já desistiu de desistir.