Se Eça de Queiroz não tivesse sacudido certas superstições da juventude que o faziam então usar o bentinho, esse escapulário católico amarrado ao pescoço por negras fitas, talvez tivesse sucumbido perante as circunstâncias desfavoráveis em que veio ao mundo, entregando-se a fatalismos telúricos e à existência anónima de causídico frustrado. É que precisamente em frente à casa onde nasceu, a 25 de novembro de 1845, repousava a funesta roda dos enjeitados da Póvoa de Varzim, onde os bebés indesejados e nascidos à revelia dos ditames matrimoniais, eram depositados à mercê da caridade alheia. O recém-nascido escapou a esse destino castigador mas, do outro lado da rua, entre as paredes do número 1 ao 3 do Largo de São Sebastião, outro folhetim em torno do seu nascimento estava a ser esboçado: José Maria vinha ao mundo como filho de mãe solteira, cuidadosamente escondido na casa de um parente funcionário aduaneiro, para onde a avó materna, Ana Clementina de Abreu e Castro Pereira d’Eça, empurrara a jovem parturiente de 19 anos, abraçada apenas no fraco aconchego de um xaile sombrio. A jovem Carolina Augusta Pereira d’Eça deu à luz num dia chuvoso, assim resguardada dos mexericos e olheiros da Viana do Castelo natal que, de outra forma, poderiam zurzir no respeitável nome da família. E a criança nasceu igualmente sem a presença do pai, o ilustre Dr. José Maria Teixeira de Queiroz, 25 anos, delegado do procurador régio na vila vizinha de Ponte de Lima, de olhos postos numa ascensão na magistratura, como era a tradição dos varões do seu sangue e da sua época.

A história do casal tem contornos misteriosos, fama de birras, ecos de duas casas iguais em dignidade e com pais obstinados, à maneira de Shakespeare. Nada se sabe sobre a origem deste romance entre Carolina Augusta e José Maria Teixeira de Queiroz. Mas há quem tenha atribuído a ausência de alianças prévias ao nascimento de José Maria ao forte temperamento de Carolina Augusta, cujos olhos escuros e porte elegante esconderiam um “génio violentíssimo”, e a uma vergonha enraivecida perante o sucedido que a fizeram recusar o pretendente – até que a mãe, ao finar-se deste mundo, a obrigara a prometer que se casaria. Outros estudiosos fizeram contas ao calendário, suspeitando de oposição materna, crendo que Ana Clementina de Abreu e Castro Pereira d’Eça desdenhou o candidato à mão da sua filha: o facto é que, seis dias após a morte desta matriarca, e órfã de pai há 16 anos, Carolina Augusta casou-se finalmente com José Maria na Igreja de Santo António, em Viana do Castelo, a 3 de setembro de 1849. O filho de ambos tinha, então, 4 anos. “Era muito inteligente, muito irónica e todos lhe achavam muita graça. Depois de casados, muito felizes não foram; nunca, porque ela era muito especial. Muito interessante, muito elegante. Mas autoritária”, afiançou D. Maria d’Eça, sobrinha-neta, anos mais tarde, ao jornalista Severino Costa.
Mas anos antes, Carolina Augusta era uma jovem mãe que enfrentava os dilemas próprios das meninas de boas famílias caídas em tentação. Tementes aos rigorosos preceitos morais da sociedade portuguesa oitocentista, José e Carolina Augusta tomaram a decisão de rejeitar o recém-nascido, nenhum o levando consigo para o regaço doméstico: o pequeno José Maria ficou entregue aos cuidados da ama Ana Leal de Barros, brasileira nascida em Pernambuco, costureira de profissão, pessoa da confiança do avô paterno da criança. E, no dia do batismo, realizado a 1 de dezembro na mais afastada igreja matriz de Vila do Conde, sob a solitária vigilância do Senhor dos Aflitos (padroeiro profetizador das muitas desventuras monetárias e das maleitas gástricas que assombrarão o percurso futuro do autor de Os Maias), nenhum membro da família esteve presente. A certidão do rapazinho apresentava-o ao mundo, indefeso e sem títulos, como o fruto de um acidente romântico: “José Maria – filho natural de José Maria D’Almeida de Teixeira de Queiroz e de mãe incógnita.” Acrescentada ao funcional documento, estava uma cópia da carta que José Maria Teixeira de Queiroz enviara dias antes a Carolina Augusta, aí confessando ter recebido instruções do seu próprio progenitor para fornecer apelido burocrático e considerar os planos a longo prazo: “Isto é essencial para o destino futuro do meu filho, e para que, no caso de se verificar o meu casamento consigo – o que talvez haja de acontecer brevemente – não seja preciso em tempo algum justificação de filiação.”

Novela camiliana a deste nascimento, pese a ironia da eterna comparação literária entre Eça de Queiroz e Camilo Castelo Branco em que tantos insistiram. E se o Eça de Queiroz adulto vai cultivar o humor de perdição em vez da tragédia existencial, alguns críticos escavarão, aqui, ressonâncias freudianas que influenciarão vida e obra e originarão um suposto complexo de inferioridade que assombrará Eça. “Foi o grande traumatismo no génio literário do escritor: o ter sido renegado pela mãe (…) Ele há-de reflectir n’Os Maias este trauma, através de evocações de Carlos: “De sua mãe não ficara nem um daguerreótipo, nem sequer um contorno a lápis. O avô tinha-lhe dito que era loura. Não sabia mais nada. Não os conhecera (os pais); não lhes dormira nos braços; nunca recebera o calor da sua ternura.”, escreveu João Gaspar Simões no seu célebre tomo biográfico dedicado a Eça de Queiroz. Uma opinião atualmente refutada, vista como exagero e até efabulação. E a realidade desse fim de século, quer estivesse emoldurada pelos pesados reposteiros nas casas senhoriais, ou vivida através das janelas mais estreitas dos lares humildes, neste Portugal que convalescia a custo das guerras internas, mostrava seguramente que um filho rejeitado não era uma raridade. E se Eça sofreu com a sua condição, pode especular-se que filtrou dores da autobiografia no consolo da literatura: em romances como O Crime do Padre Amaro (1875), O Mistério da Estrada de Sintra (1870), ou A Tragédia da Rua das Flores (escrito em 1877-1878, publicado postumamente) abundam heróis queirozianos órfãos, crianças pequenas que apenas conhecem as sobras afetivas de mães substitutas ou avôs benevolentes.
Pergaminhos
Nenhum dos dois ramos da árvore genealógica deste bebé apreciaria a combustão da polémica acendida por um filho ilegítimo, concebido fora da exigida santidade matrimonial. Os orgulhosos Eça eram uma dinastia respeitável, com tradições e medalhas na vida militar de que gostavam de se gabar: acreditavam ser descendentes do infante D. João, filho do rei D. Pedro e de Inês de Casto; tinham pergaminhos fundadores em Viana do Castelo datados do século XVII, como prole herdeira do padre Martinho Pereira d’Eça; e o avô da criança, José António Pereira d’Eça, um liberal convicto com patente de coronel, destacara-se no folclore familiar com a história de um garboso cavalo branco que lhe fora oferecido por D. Pedro IV, um presente que lhe teria posto a vida em perigo: ao entrar no Porto, um miguelista confundira-o com o monarca liberal e disparara um tiro com intenção regicida. Não fosse a má pontaria do seguidor de Miguel I, o Usurpador (assim designado por ter deposto a sua sobrinha, D. Maria II), e haveria uma lápide precoce no talhão familiar.
Por sua vez, os Queiroz eram, há longas gerações, homens obedientes à letra da lei: a um bisavô escrivão, seguira-se um avô juiz que estivera cinco anos destacado no Brasil, antes de ser desembargador e presidente da Relação do Porto, deputado, fidalgo brasonado identificado como Joaquim José de Queiroz e Almeida, e ainda ministro da Justiça – um currículo retumbante. Mas devido às campanhas em que alinhou pelos liberais e, posteriormente, pelas forças de Costa Cabral, a sua vida foi pontuada por episódios de perseguição, fugas para o estrangeiro, demissões e regressos aos cargos de poder. Com a vitória dos liberais, em 1832, ficam para trás as más memórias de quando os miguelistas o tinham como “infame, perverso e façanhudo”, e Joaquim José de Queiroz e Almeida, com a cabeça a prémio, tivera de deixar mulher e seis filhos à míngua.

Este avô maçon teve história sentimental inusitada: na viagem transatlântica para a então colónia portuguesa, o eminente jurista levava consigo Teodora Joaquina, camponesa de Fornos de Algodres, com quem casará tardiamente já ela somava seis filhos seus. E foi também em território brasileiro que nasceu um destes descendentes: o pai de Eça de Queiroz. José Maria D’Almeida de Teixeira de Queiroz, bom estudante de Direito em Coimbra, chegou a exercitar a mão literária, influenciado por nomes sonantes como Walter Scott, António Feliciano de Castilho e Almeida Garrett. Publica vários livros de versos românticos na juventude, além de uma novela de façanhas históricas ambientada no tempo de D. Afonso Henriques intitulada O Mosteiro de Sta. Maria de Tamarães. Em 1852, já homem casado, foi diretor de um jornal sediado em Aveiro, o renomado O Campeão do Vouga, mas o mundo das notícias foi cedo trocado pelas barras dos tribunais: Teixeira de Queiroz foi colocado como juiz da 1ª vara no Porto, cidade a que regressou, em 1858, já como juiz do 1º Distrito Criminal, ganhando notoriedade ao participar em julgamentos que inflamaram a imaginação popular. A saber, o do Conde do Bolhão, acusado de traficar moeda falsa para o Brasil nos anos conturbados de 1860, e ainda o de Camilo Castelo Branco, acusado do crime de adultério devido ao envolvimento com Ana Plácido. Absolvido, o autor de Amor de Perdição e A Queda de um Anjo ficará sempre grato ao seu advogado, louvando amiúde o “boníssimo Queiroz”, o “ouro de 24 quilates sem jaça”, que o libertou do pesadelo das grades.
José Maria tinha apenas 5 anos, quando sofre uma segunda perda afetiva: morre-lhe a ama Ana Joaquina. Se a criança sonhava em ser resgatada pelos pais, vê rapidamente gorada a aspiração, pois os progenitores, apesar de já estarem casados há um ano, não o foram buscar – havia que manter as aparências, observar os protocolos sociais, desimpedir ambições profissionais. O pequeno foi enviado para Verdemilho, propriedade dos avós paternos: um solar rural perdido no meio de campos de milho com o mar no horizonte, dotado de uma impressionante biblioteca jurídica. Uma descoberta que trará pérolas importantes na educação de José Maria: foi aí que o solitário neto do poderoso desembargador, a quem era proibido brincar com os meninos pobres das redondezas, encontrou também os livros de aventuras e narrativas francesas, que lhe eram lidos não pela avó, uma quase analfabeta, mas por Mateus, um dos serviçais da casa. Estas recordações serão eternizadas à pluma, em 1897, por Eça no artigo O Francesismo: “A minha mais remota recordação é a de escutar, nos joelhos de um velho escudeiro preto, grande leitor de literatura de cordel, as histórias que ele me contava de Carlos Magno e dos Doze Pares.”
Dores de crescimento

Dieta livresca muito diferente foi a que recebeu, a partir dos 11 anos, no portuense Colégio da Lapa. A avó paterna morrera – o terceiro luto afetivo a fazê-lo tropeçar, mas a senhora deixa uma pequena fortuna dedicada à educação do neto. O antigo seminário de fachada severa encimada por uma cruz permitiu a José Maria conhecer herdeiros nortenhos, como os Resende, mas as virtudes pedagógicas eram resolutamente démodé: aplicava-se a doutrinação religiosa nos espíritos e uma pesada régua de madeira exótica nos corpos desobedientes. Pelos corredores, andava igualmente Ramalho Ortigão (1836- 1915), nove anos mais velho do que Eça e professor de Francês, ainda sem adivinhar que assinaria folhetins a quatro mãos com este rapazinho da Póvoa de Varzim, como os dessa espécie de primeiro policial da literatura portuguesa que dá pelo nome O Mistério da Estrada de Sintra (1870) e os da afiada caricatura social d’As Farpas (1871-1872). O tímido e reservado José Maria estudou aí durante cinco anos, num “abuso de rezas e da capela”, provavelmente aí fermentando a sua futura atitude anticlerical… Leitores atentos creem adivinhar nessa formação dolorosa contas do rosário narrativo que unem, por exemplo, João Resgate, um adolescente órfão e supersticioso retratado nas cinco páginas de um manuscrito esquecido, e Artur Corvelo do romance A Capital (1925): o poeta medíocre de Oliveira de Azeméis, “linfático e calmo”, com “a graça nervosa duma menina” e educado por breviário, que desbaratará sonhos literários e herança familiar, derrotado e incapaz de compreender o ideário revolucionário republicano encontrado em Coimbra.
O paraíso possível para um solitário Eça foi a prima Cristina, filha da tia materna Carlota Pereira d’Eça, Albuquerque pelo casamento. Foi na residência destes familiares que José Maria viveu, em plena Rua da Cedofeita, já que os pais repetiam a estranha rejeição de o manter fora do seu convívio – e do dos irmãos entretanto nascidos. Mas os afetos do adolescente foram contrariados com o argumento de serem “primos carnais”, postula o tio Albuquerque, figura que ecoará a talhe de ironia nesse sujeito com a “cabeça grave de tabelião de comédia: a calva polida e lustrosa como uma madrepérola”, de A Capital. Já estudante universitário, Eça manterá acesa a paixão por Cristina: ele declarou-se, fez juras insistentes, pediu uma decisão; ela recuou, empatou, mostrou-se temerosa da fúria paterna. O destino reservou-lhe nova tareia amassada em rejeição: o tio autorizou Cristina a casar-se, sim, mas com outro primo direito, viúvo, cinquentão, militar.

Eça abrigou-se em 1861 na casa do professor José Dória, numa Coimbra arrebatada pela agitação estudantil. O jovem encantou-se com a perspetiva de ser bacharel, homem de leis nas pisadas desse pai que se mantém elusivo como uma nuvem. O exame de admissão, gabava-se ele, exigiu-lhe tão só a perícia da língua francesa: “E foi tudo óptimo, recitei o meu Racine, tão nobremente como se Luís XIV fosse lente, apanhei o meu nemine e, à tarde, uma tarde quente de Agosto, comi com delícia a minha travessa de arroz-doce na estalagem do Paço do Conde.” Inscrito na Faculdade de Direito com o número 124, pôde sentar-se discretamente nos bancos ao fundo da sala – o lugar ideal para jogar às cartas, trocar umas ideias, pôr a leitura dos jornais em dia, evitar atenções indesejadas. Mas os arroubos românticos, as ideias positivistas e os “largos entusiasmos europeus” que contrastavam com a pantanosa realidade nacional, mergulharam-no numa bebedeira cultural: “Cada manhã trazia a sua revelação, como um sol que fosse novo. Era Michelet que surgia, e Hegel, e Vico e Proudhon; e Hugo, tornado poeta e justiceiro dos reis; e Balzac, com o seu mundo perverso e lânguido; e Goethe, vasto como o universo; e Poe, e Heine, e creio que já Darwin, e quantos outros!”
Coimbra tem mais encanto
Mas Eça não foi um líder nas trincheiras intelectuais nem usou a verve nascente ao serviço da causa – ainda que tenha, por exemplo, assinado o chamado Manifesto dos Estudantes da Universidade de Coimbra à opinião ilustrada do país (1862- 1863) em que eram exigidas reformas na universidade (e onde havia um reitor que exigira obrigatoriedade do uso de cabeção eclesiático sob a ameaça de penas severas contra os infratores…), panfleto escrito por Antero de Quental. Aliás, este poeta, com quem Queiroz participará nas futuras Conferências do Casino, impressiona-o logo nos primeiros tempos de Coimbra, quando o vê a improvisar nas escadarias da Sé, e quando se deparou com o autor de Odes Modernas, “entre uma Bíblia e as obras de Virgílio”, a rasgar os poemas que escrevera. Um ímpeto reconhecível na chamada Questão Coimbrã, na polémica do “Bom Gosto e do Bom Senso”, que opôs o tradicionalismo do poeta Castilho aos estudantes sedentos de inovação. Graças ele, José Maria torna-se leitor de Proudhon. Mas Eça não participou nas lutas académicas. “Faltava-lhe a rebeldia de Antero de Quental e o ressentimento de Teófilo Braga”, defende Maria Filomena Mónica na biografia Eça de Queirós (2001). E descreve uma cena de vida portuguesinha: “Enquanto os estudantes que seguiam Antero alarmavam Coimbra, Eça recolhia a casa, ao toque da cabra, para tomar as refeições junto da família Dória.” As leituras devoravam-lhe os dias, e, defende a investigadora, durante os primeiros anos vividos em Coimbra, Eça não fez um único amigo.
A primeira desilusão amorosa de José Maria ocorre quando os tios maternos recusam a proximidade do jovem com a prima Cristina, devido a serem “primos carnais”
Em 1863, José Maria de Eça de Queiroz mudou-se para uma república, onde tem lugar um divertido episódio, causador de um terramoto espiritual. A pesada manta religiosa que ainda tolhia Portugal era também desafiada em Coimbra com os estudantes a “interpelar Deus” debruçados na Ponte Velha a altas horas da madrugada: “Berrávamos por Ele, só pelo prazer transcendente de atirar um pouco do nosso ser para as alturas, quando não fosse senão em berros.” Mas Eça agarrava-se ainda ao amparo da fé, bentinho amarrado ao pescoço. No seu quarto da Rua do Salvador, uma parede exibia uma cruz gigante pintada a carvão, rodeada de versículos da Bíblia e outros textos sagrados. Certo dia, estando Eça constipado, o amigo Frederico Filémon da Silva Adelino irrompeu-lhe pela alcova dentro e arengou-lhe: o mal dele era “misticismo a mais e ar a menos”, o “misticismo, proibindo o sol, o calor, os banhos tépidos, as flanelas e todos os cuidados corporais” era pouco saudável… Foi tiro e queda: Eça deixou de acreditar em Deus, e, para escândalo dos tios, desistiu de os acompanhar às missas em Santo Ildefonso. A superstição, essa manteve-a ao longo da vida – fosse por convicção ou por pose. Um outro amigo novo, o poeta parnasiano João Penha (1838-1919), diretor do jornal literário A Folha, confidenciaria, no livro Por Montes e Vales (1899), esta insólita aventura: numa noite de luar, e na companhia de Guerra Junqueiro e Gonçalves Crespo, fizeram-se ao caminho até à Sé Velha, soprada por “barulhos sinistros” e pios de coruja que os fizeram sentir “o arrepio das coisas sobrenaturais”. Penha provocou-os, alegando tratar-se de Satanás a perseguir uma defunta jovem e, quando fugiam já dali para fora, Eça larga um grito dramático: “Voltemos! Tentemos salvar aquela pobre criança!”
E o monóculo que se lhe colou à figura? Eça imitou o de João Penha, com quem passou tempos felizes, recordados por este poeta em carta dirigida ao político António Cabral (1863-1956): “Eça, que era um visionário, passou a dormir comigo. De manhã, vinha-nos à cama, num tabuleiro, o nosso almoço [ovos batidos com parmesão ralado e pimenta, pão com manteiga inglesa…] que devorávamos com o apetite da mocidade, aberta a janela, e alongada a vista sobre o plácido Mondego até aos chorões da fonte de Inez de Castro”. José Maria reapareceria apenas à noite, apetite disponível para os petiscos na taberna da tia Maria, “perita na arte de fritar a sardinha, o sável e a eiró”, ou para as “ceias monstruosas” no Paço do Conde ou no Castella. Mas o prato de resistência era a “discussão descabelada sobre todas as matérias relativas à arte”, continuada nas “casas de raparigas de fácil peso” com quem, garante o parnasiano Penha, nada acontecia de carnal. “Eça, ao contrário do que quase toda a gente supõe, era um visionário, romântico e sentimental, tendo um horror profundo por tudo quanto é prosaico, isto é, pela vida comum e real. Nos seus livros, onde ele se revela observador, mas intuitivo, era um; fora dali, era outro, era um romântico”, descreve.
Tempos de mudança
Eça via-se distanciado de revoluções e apoquentações. Era aquele que adorava “Mozart em segredo” enquanto os amigos preferiam Beethoven. “Tínhamos, ao mesmo tempo, ocultamente, um idealismo doentio e dissolvente”, recordará, num artigo publicado na Gazeta de Portugal, em novembro de 1867. Aí, fez esta súmula sobre as batalhas intelectuais vividas na Faculdade de Direito de Coimbra: “Havia entre nós todas as teorias e todas as seitas; havia republicanos bárbaros e republicanos poéticos; havia místicos que praticavam as éclogas de Virgílio; havia materialistas sentimentais e melancólicos que proclamavam a matéria com uma meiga languidez nos olhos, e falavam da força vital, quase de joelhos, com as mãos amorosamente postas; havia pagãos que lamentavam as suas penas de amor, castamente, sob a névoa luminosa dos astros. Tudo havia, e também a serena amizade incorruptível, o fecundo amor do dever, e ingenuidade risonha de tudo o que desperta.” Perante este cortejo de personagens, Eça descobriu o teatro.

Professando o desdém pela “sujeição à sebenta”, que denunciou como vinda de França e comprada aos “livreiros da Calçada”, acusou a universidade de uma tirania que os fazia aprender a “irmanar com todos os escravos” do mundo – e resolveu então aproveitar os seus “anos moços” no Teatro Académico da Universidade. Como ator, pisou o palco com A Dama das Camélias e outros dramas reconhecidos, além de um punhado de peças menores, e viveu as noitadas boémias ao lado de novas amizades. Como a do médico Carlos Mayer (1846-1910), futuro Vencido da Vida, em cujos aposentos opulentos debatia-se Voltaire, recitava-se Hamlet. Eça, a quem se atribuirá um realismo ímpar nos romances da maturidade, declarava então desprezar a harmonia de Racine, de Horácio ou de Virgílio, e terem os clássicos “açaimado” a paixão”, concluindo que para quem tinha “uma alma doente, febril, ansiada, nostálgica” como ele, era ato funesto. O rapazinho rejeitado esfumava-se no ar, e, em seu lugar, emergia um Eça personagem, conversador brilhante, como que saído de páginas baudelairianas. Batalha Reis (1847-1935) traçou-o assim: “Uma noite, junto da mesa onde escrevia o Severo, vi uma figura muito magra, muito esguia, muito encurvada, de pescoço muito alto, cabeça pequena e aguda que se me mostrava inteiramente desenhada a preto intenso e amarelo desmaiado. Cobria-a uma sobrecasaca preta abotoada até à barba, uma gravata alta e preta, umas calças pretas. Tinha as faces lívidas e magríssimas, o cabelo corredio muito preto, do qual se destacava uma madeixa triangular, ondulante, na testa pálida que parecia estreita, sobre olhos cobertos de lunetas fumadas, de aros muito grossos e muito negros. Um bigode farto, e também muito preto, caía aos lados da boca grande e entreaberta, onde brilhavam dentes brancos.” Em casa desse companheiro de Coimbra, Eça exibiu manias e superstições várias: só entrava no quarto com o pé direito, passava os dias a fechar as janelas com medo das correntes de ar, forrava o candeeiro de petróleo com tiras de papel para filtrar a luz, não tolerava poeira nas mãos. E à hora de dormir? Tinha ritos especiais para arrumar a roupa: colocava os punhos de camisa na mesa pela ordem em que os tinha usado, dispunha as botas à porta para que o criado as limpasse de manhã e as devolvesse sempre emparelhadas ordenadamente.
Nasce um escritor
Eça divertia-se a compor a pose, a provocação, mas aspirava já à literatura. A sua obra será, aliás, povoada por outros aspirantes a escritores: o já citado Artur Corvelo em A Capital, mas também o pequeno Ernestinho Ledesma de O Primo Basílio, com queda para o dramalhão e a soerguer-se com os seus “sapatos de verniz com grandes laços de fitas, sobre o colete branco” e a correia do relógio a sustentar “um medalhão enorme, de ouro com frutos e flores esmaltados em relevo”. Ainda Gonçalo Mendes Ramires, protagonista de A Ilustre Casa de Ramires, “esbelto e louro, de uma brancura sã de porcelana”, dividido entre política e literatura, autor de uma novela histórica, que tem uma “desconfiança terrível de si mesmo, que o acobarda, o encolhe”. N’Os Maias, o poeta Tomás de Alencar, “face encaveirada, olhos encovados”, todo vestido de negro, com algo de “antiquado, de artificial e de lúgubre”, é a personagem que refletia as clivagens entre as escolas romântica e naturalista que insuflaram a Questão Coimbrã (Eça foi acusado de caricaturizar aqui o poeta ultrarromântico Bulhão Pato (1828-1912). “No meio desta Lisboa toda postiça, Alencar permanecia o único português genuíno”, atira Eça. E o inesquecível João da Ega, suposto alter ego de Eça, fidalgo com fama de ser “o maior ateu, o maior demagogo que jamais aparecera nas sociedades humanas”, irreverente e provocador, dândi e diletante, que também cederá à conformidade portuguesinha.
E é então que o bacharel José Maria de Eça de Queiroz, no verão de 1866, chega a Lisboa para, pela primeira vez, vai viver com os pais e os irmãos, Alberto, Aurora (Miló) e Henriqueta. Os progenitores estavam há quatro anos na capital: o pai juiz, já com carreira intocável, instalara-os no nº 26 do Rossio: um prédio distinto com janelas de sacada viradas para a colina do castelo (onde sobrevive, hoje, o Café Nicola). E foi no seu primeiro quarto no lar da familia que Eça escreveu os primeiros folhetins, escritos no papel almaço preferido, comprado numa lojinha da Rua de S. Roque: parágrafos de rajada praticamente sem emendas. Mal terminava os textos, José Maria abalava-se para o Bairro Alto, acordando Batalha Reis com um grito de guerra: “Sou eu e os meus abutres: vimos criar, devorando cadáveres!” Tinha 20 anos quando A Gazeta de Portugal publicou, a 23 de março de 1866, o seu folhetim inaugural (o primeiro dos dez artigos postumamente reunidos em Prosas Bárbaras em 1909): uma história em que Eça finge ter encontrado os fragmentos de uma trova nas margens de um papel rasgado, e em que escreve numa linguagem distante da longa elegância discursiva e exuberante dos seus clássicos, provocando assombro nos seus contemporâneos. Como esta frase: “Eu andava perdido pela floresta escura e sonora. As estrelas, como grandes olhos curiosos, espreitavam através da folhagem.” Eça tinha 21 anos, e quebrava, finalmente, a roda dos rejeitados.
Perfil publicado na VISÃO Biografia nº5 de julho/setembro de 2020