Desde o momento em que, ainda bebés, passamos a relacionar-nos com o mundo à nossa volta através de palavras, vivemos na nossa língua (ou em várias) como na atmosfera ou como os peixes vivem no oceano. É algo sempre presente, mesmo se estivermos calados, mesmo se não quisermos, por um minuto que seja, pensar no assunto… mas a verdade é que queremos, muitas vezes. A língua – sotaques, escolhas de palavras, correções e incorreções, respeitos e desrespeitos… – pode ser tema de longas conversas e de acaloradas discussões em que ninguém detém toda a razão. Há perguntas para as quais nunca se encontra a resposta exata.
Comecemos por esta: o que é escrever bem? Logo a abrir o seu livro Por Amor à Língua, Manuel Monteiro, que, depois de se formar em Economia e Jornalismo, se foi especializando nas questões da Língua Portuguesa e de revisão de textos, põe as coisas desta forma: “Ao fim de muitas páginas lidas acerca da arte de escrever, concluir-se-á que é muito mais fácil definir os critérios que permitem identificar a má escrita do que aqueles que permitem identificar a boa escrita.” Como tudo o que é humano, demasiado humano, essa definição depende de vários fatores e perceções. Se “escrever bem” fosse, apenas, uma questão técnica, a Inteligência Artificial e a ciência avançada dos algoritmos já teriam atingido o pináculo, inquestionável, da boa escrita.
Legislar a língua
Passaram já quase 32 anos desde o dia em que, em Lisboa, se assinou o AO90, então também chamado “ortografia unificada da língua portuguesa”.
O tempo suficiente para percebermos que algo correu mal no caminho…
Comecemos por recordar factos históricos, cada vez mais longínquos: no dia 16 de dezembro de 1990, em Lisboa, assinou-se um tratado internacional que visava uniformizar o mais possível a escrita do português nos vários países onde é língua oficial. Estavam, por isso, presentes representantes oficiais de todos esses Estados. Em Portugal, as alterações propostas por esse acordo ortográfico (que ficaria conhecido como AO90) só entrariam legalmente em vigor a 13 de maio de 2009, data em que se iniciou um período de transição de seis anos em que o Acordo de 1945 e o AO90 podiam coexistir. Nos outros países de língua oficial portuguesa, a situação é, ainda hoje, muito díspar – Angola e Moçambique nunca instituíram legalmente o AO90 e no Brasil entrou em vigor, depois de muitos adiamentos e questionamentos, em 2016.
Mas chegados a 2022, não é arriscado dizermos que a palavra “desacordo” combina bem melhor do que “acordo” com todo o longo e errático processo do AO90. Uma das promessas iniciais era uma simplificação para os falantes de português, ao sujeitar a ortografia, o mais possível, ao som das palavras – sendo a eliminação das consoantes mudas uma das propostas mais visíveis do AO90. O grande objetivo, esse, era que um mesmo padrão de escrita existisse em Portugal e no Brasil (facilitando muito a vida, por exemplo, às editoras que trabalham nos dois mercados). Mas tanto a “simplificação” como essa harmonização não existem hoje com clareza. Aliás, como o documento do Acordo Ortográfico indicava regras e procedimentos, mas não exatamente uma lista, ou um dicionário, com as novas grafias das palavras portuguesas, dá-se mesmo o caso de, atualmente, se encontrarem versões diferentes em dicionários diferentes.
Com o passar do tempo, algumas questões revelaram-se mais complexas, ou difíceis de aceitar, do que outras. Uma das alterações mais difíceis de explicar e aplicar tem que ver com a supressão de acentos nas palavras graves. De acordo com o AO90, a frase “ninguém para o Benfica”, por exemplo, tem dois sentidos completamente diferentes (“para” e “pára”, do verbo “parar”). Algumas exceções às novas regras (que, muitas vezes, dão margem para dúvidas) vão fazendo o seu caminho quotidiano, e muitos casos há em que o acordo permite duas grafias diferentes para a mesma palavra (“espetador” e “espectador”, por exemplo). Também a eliminação de alguns hífenes consegue gerar, ainda hoje, estupefação – em palavras como “corréu” (no sentido de “réu acusado com outro no mesmo processo”) em vez de “co-réu”.
Em 2017, um grupo de trabalho criado pelo Parlamento português laborou na possibilidade de alterar e aperfeiçoar o Acordo Ortográfico. O relatório final desse grupo foi aprovado na Assembleia da República em julho de 2019 (com votos a favor do PSD, CDS-PP e PCP e a abstenção do PS e do BE), mas das votações finais ficaram de fora todas as “recomendações” concretas, o que inviabilizou quaisquer alterações legais imediatas.
As polémicas do AO90 chegam ao ponto de permitirem outra discussão de fundo: estará o acordo em vigor? O embaixador Carlos Fernandes publicou, em 2016, um livro com argumentos jurídicos sustentando a tese que lhe dava título: O Acordo de 1990 Não Está em Vigor (Guerra & Paz). E no Brasil, com a eleição de Bolsonaro, cresceram as vozes dos que defendem uma desvinculação do país ao AO90.
No seu livro Por Amor à Língua, escreve Manuel Monteiro: “Quem defendeu inicialmente o Acordo e não mudou de posição – muitos mudaram e muitos, muitos, muitos se calaram – está hoje num labirinto pior que o do Minotauro.”