Nasceu em Washington D.C. em 1956. Quando chegou a Portugal, em 1987, o objetivo era traduzir para inglês as cantigas de amigo, amor e de escárnio e maldizer medievais. Mas acabaria enredado no labirinto de Pessoa. Para a História, ficará como o autor da mais completa biografia dos 46 anos de vida do escritor lisboeta. A edição em inglês saiu em 2021 e a tradução portuguesa, com a chancela da Quetzal, chega às livrarias nos próximo dia 19 de maio.
Pode-se dizer que esta grande biografia nasceu no momento em que o Richard descobriu Fernando Pessoa. Como foi essa descoberta, esse encontro inicial?
Nos Estados Unidos da América tinha uma amiga que conheci na Colômbia, onde passei seis meses numa universidade. Ela vivia em Chicago e tinha um namorado português que lhe tinha mostrado uns poemas de Álvaro de Campos e Alberto Caeiro. Depois de termos estado na Colômbia falávamos espanhol e ela passou-me essas fotocópias, que conseguíamos perceber. Fiquei fascinado! Lembro-me, sobretudo, do impacto d’A Tabacaria. Fui procurar traduções inglesas e já havia algumas. Gostei de conhecer Pessoa mas não fiquei propriamente obcecado… Depois de terminada a universidade, no estado de Virgínia, e de seis meses a aprender português, fui para o Brasil, para Santa Catarina, e comecei a ler Pessoa mais a sério. Mas também não foi aí, ainda, que percebi que um dia iria trabalhar a fundo sobre Fernando Pessoa. Em 1987 cheguei a Portugal para trabalhar na tradução das cantigas trovadorescas. Aqui, descobri o Livro do Desassossego [que foi publicado, pela primeira vez, em 1982]. Percebi que ainda não havia uma tradução em inglês e propus-me a fazê-la eu, pedi uma bolsa de apoio para isso.
A partir daí é que se tornou mais séria, e profissional, a sua relação com Pessoa…
Sim. Publiquei a minha primeira tradução como The Book of Disquietude. Passados uns anos, fiz uma revisão profunda e passou a The Book of Disquiet. E ainda hoje penso em fazer mais revisões. Uma tradução assim nunca acaba.
Sendo Pessoa uma grande referência nacional e, cada vez mais, até internacional, não é estranho que a maior biografia que tínhamos disponível até agora fosse a de João Gaspar Simões, editada em 1950? Como explica isso?
Para mim também é misterioso. Mas há algumas explicações para deslindar esse mistério. Por um lado, Portugal não tem uma forte tradição de biografias – algo que parece estar a mudar nos últimos anos. Depois, podia meter algum medo… Como pegar nisso? Algumas biografias que houve – a de Ángel Crespo, em espanhol, e a de Robert Bréchon, em francês – dependiam, paraticamente na totalidade, das informações biográficas do livro de Gaspar Simões. A questão é que a própria obra de Fernando Pessoa ainda não estava publicada, havia milhares de papéis por estudar e organizar que, durante muitos anos, estiveram em casa da irmã de Pessoa. Acho que para quem trabalhava sobre o escritor, o que importava mais era revelar e estudar a sua obra; isso era muito mais importante do que aprofundar uma biografia. Ainda por cima já existia uma, para quê fazer outra? Estudar a obra teve sempre prioridade. E é verdade que esse trabalho era fundamental antes de se voltar a fazer uma biografia, mais completa.
Diz que a biografia de Gaspar Simões deixou nos portugueses, ao longo do tempo, algumas ideias erradas sobre Pessoa… Quer dar exemplos?
A biografia do João Gaspar Simões é um bom retrato, conta uma história, aborda várias facetas… Mas contém algumas informações erróneas, sim. Só que ninguém sabia que o eram. Na verdade, um primo em segundo grau de Pessoa, Eduardo Freitas da Costa, publicou, logo em 1951, uma resposta à biografia de Gaspar Simões: Notas a uma Biografia Romanceada. Aí, sustentava que Gaspar Simões partiu para o seu livro com uma ideia feita que queria sustentar: a de retratar Pessoa como uma espécie de poète maudit, miserável, sempre em grandes apuros económicos, com pouca ajuda da família, muitas vezes mal vestido, bêbedo…
Um certo cliché do “escritor maldito”…
Sim, como se fosse uma espécie de Charles Baudelaire do século XX. E havia, mesmo, alguns factos que não estavam certos. Quando organizei uma edição de escritos autobiográficos e automáticos e reflexões pessoais de Pessoa, para a Assírio & Alvim [em 2003], comecei, realmente, a preocupar-me mais com a biografia de Fernando Pessoa. E percebi que o Eduardo Freitas da Costa tinha razão nas suas críticas, eram justas. Também havia a queixa de que a visão de Gaspar Simões era demasiadamente freudiana, escolhendo os factos para encaixarem na sua ideia e teoria prévia. Mas João Gaspar Simões teve o grande mérito de reconhecer que Pessoa merecia uma grande biografia, o que não era nada evidente nessa altura. Mesmo com os seus defeitos, foi um grande e importante contributo.
Na realização desta sua biografia teve um, ou vários, momento “Eureka!”, sentindo que estava a fazer uma descoberta marcante sobre Pessoa?
Sim… Antes ainda de começar a escrever tive vários momentos “Eureka!”, que viriam a ser incorporados na biografia. Por exemplo, em Durban, fazendo pesquisa nos arquivos do jornal The Natal Mercury descobri o primeiro poema que Fernando Pessoa publicou em inglês: The Miner’s Song. Estava assinado por um heterónimo desconhecido e tinha sido enviado ao jornal por um outro heterónimo! Isso muda um pouco a nossa perspetiva, percebemos que não foi só como adulto que desenvolveu esses episódios fictícios, jogando com os heterónimos. Já em criança, e jovem, o fazia. Quando li os seus textos de escrita automática, ou mediúnica, quase sempre em inglês e numa caligrafia que não era a sua habitual, difícil de decifrar (não fui eu que os descobri, mas havia muito pouco trabalho feito sobre eles), percebi que uma grande inquietação de Pessoa, nessa conversa com os espíritos do Além, era a sua virgindade. Ficamos a saber que nessa altura, aos 28 anos, ele era virgem e isso era uma preocupação sua. Antes disso, também encontrei um poema homoerótico, em três páginas datilografadas, muito curioso. Fala de um homem que se dirige a outro, heterossexual, mas o narrador está apaixonado por ele e tem medo de o confessar porque sabe que será rejeitado… Claro que tudo aí pode ser uma fantasia, ou mesmo mais um jogo da sua heteronimia. Com Pessoa temos de pensar duas ou três vezes antes de interpretarmos de forma autobiográfica tudo o que escreveu. Ele era muitas coisas… Essas descobertas foram importantes para mim.
Antes, ainda, de começar a escrita da biografia…
Sim, mas durante o processo de escrita também houve esses momentos “Eureka!”. Inicialmente, cheguei a pensar organizar o meu livro a partir de diversos pontos de vista (até porque estaria relacionado com a ideia dos heterónimos) e, depois, ainda considerei a hipótese de organizá-lo tematicamente. Mas, finalmente, optei pela lógica tradicional, cronológica. E ainda bem, porque assim é possível descobrir muitas coisas. Avançando ano por ano, percebia, muitas vezes, como determinada obra refletia coisas que estavam a acontecer na sua vida. Por exemplo, depois da morte da mãe de Fernando Pessoa, em 1925, sabia-se que ele tinha ficado muito abalado, que sentiu muito essa morte. Aqui, percebi que durante praticamente um ano deixou de escrever poesia, o que nunca tinha acontecido antes, nem aconteceu depois. Outro exemplo: na segunda fase da relação com Ofélia Queiroz, ela estava muito entusiasmada com a hipótese de estar com ele no seu aniversário, a 13 de junho de 1930. Chegou esse dia e ela ficou muito frustrada porque não houve encontro. Precisamente nesse dia, Pessoa escreveu o famoso poema de Álvaro de Campos Aniversário, mas também uma ou duas odes de Ricardo Reis, voltou a Alberto Caeiro, que nessa altura já quase não escrevia, e dedicou-se, ainda, a um trecho do Livro do Desassossego. E também recebeu uma mensagem do Além, nos tais escritos astrais. Ele ficou sozinho em casa a celebrar assim os seus anos. Nesse momento, tinha resolvido que se ia separar mesmo de Ofélia, na sua cabeça já estava fora da relação. Organizar a biografia cronologicamente realça a ideia de que foi mesmo uma vida. Precisamente por escrever sob tantos nomes e ser tão disperso, é bom ter um fio condutor, cronológico, para contar a história desta pessoa, ou pessoas.
Como lidou com essa dificuldade de fazer uma biografia completa, e muito concreta, de alguém que era extremamente reservado e que se notabilizou, sobretudo, pelo que deixou escrito? Esta figura tão fugidia assustaria qualquer biógrafo…
Sim, esse era o cerne do problema. Fernando Pessoa tinha uma vida social, ia ao café, tinha sentido de humor, não estava sempre fechado em casa… Mas era mesmo muito reservado. Não falava da sua vida pessoal. A sua própria irmã não sabia da existência de Ofélia, só depois da morte de Pessoa ficou a saber. Há escritores que deixam diários ou cartas que revelam muito das suas vidas, dos seus dias, e em Pessoa há muito pouco disso. Chegar ao quotidiano de Fernando Pessoa é, pois, muito complicado. Por um lado, privilegiei o contexto em que se movia, em termos políticos e sociais. Tive, ainda, acesso a cartas da família, não do Pessoa mas que ele tinha recebido, sobretudo da mãe, ou trocadas entre outros membros familiares. Lê-las é um trabalho de paciência mas alguns dados acabaram por emergir… Mas a obra de Pessoa é, mesmo, a principal fonte. E no seu espólio há mesmo muito papel… Encontramos aí apontamentos sobre coisas que tinha para fazer, quem ia encontrar, elementos do seu dia a dia.
É curioso isso ter resistido ao tempo, ter sido guardado como se pudesse vir a ter alguma utilidade no futuro…
Julgo que isso aconteceu por acaso. Ele era muito desorganizado, disperso, na maneira de escrever… Pegava em qualquer papel em qualquer momento para escrever versos, ou mesmo prosa. E é nesses mesmos papéis que, muitas vezes, se encontram apontamentos sobre coisas quotidianas: dívidas, encontros… Isso estava tudo misturado. Mas nos seus poemas e na sua prosa encontram-se muitos dos seus dramas pessoais, são a fonte mais importante. Mas, lá está, aí o biógrafo tem de ter muito cuidado… Tudo tem de ser bem medido antes de se chegar a uma conclusão. As coisas podem estar muito distorcidas e nunca são completamente diretas. Ao longo da vida ele sentiu-se atraído pelas mais diversas temáticas. Mas lendo tudo, pesando tudo, mesmo declarações contraditórias sobre determinados temas, conseguimos chegar a conclusões.
Sublinha uma faceta que as pessoas não associam muito a Pessoa: o sentido de humor, um lado lúdico, sobretudo nos primeiros anos. É muito curioso perceber como aquelas brincadeiras com o tio Cunha se desenvolveram ao longo de toda a obra de Pessoa, com a criação dos heterónimos…
O tio Cunha, de algum modo, também foi um momento “Eureka!”, sobretudo graças à Manuela Nogueira, a sobrinha, que divulgou algumas cartas desse tio para Fernando Pessoa quando ele estava em Durban. João Gaspar Simões menciona este tio Cunha e dizia que era, aparentemente, um analfabeto… Isso é completamente falso. O biógrafo terá recebido essa informação da irmã de Pessoa, a quem ele teria dito isso, talvez o escritor quisesse esconder as suas influências… E a influência desse tio foi enorme. Pessoa fala de Chevalier de Pas, o primeiro heterónimo, com que assinava, aos 6 anos, cartas para si próprio, mas também fala de um Capitain Thibeaut, que surge nas cartas do tio Cunha para Pessoa, escrito de outra maneira…
No fundo, Pessoa nunca parou de fazer esses jogos a vida toda…
Sim, nunca parou. De certo modo, Pessoa nunca cresceu. Ficou sempre uma criança. Quando somos pequenos, sabemos, por exemplo, que o Pai Natal não é real, mas para nós é como se fosse. Isso acontece mesmo quando descobrimos que não existe, na verdade, o Pai Natal. O mesmo acontece com a relação com alguns bonecos: a criança sabe perfeitamente que não é um ser vivo, mas pode perder o sono porque o boneco está doente ou não comeu bem… A criança tem essa capacidade de agir como se fossem reais uma série de coisas que não são. E Pessoa não perdeu essa capacidade. Coisas da sua imaginação, do domínio da fantasia, para ele têm uma dimensão de realidade.
Achei curioso a biografia começar com uma lista de “dramatis personae“, com uma descrição breve dos vários heterónimos, como se estivéssemos a entrar numa peça de teatro ou num livro de ficção, para não nos perdermos…
A verdade é que essa lista, no original que enviei à editora, estava no final. Mas o revisor, que fez um trabalho notável, sugeriu que seria mais útil no início, para quem lê saber da existência desses heterónimos previamente e poder consultar essa lista. Na verdade, também funciona como um statement, leva o leitor logo para esse mundo.
Esta biografia sai em inglês meses antes de ser publicada em português. Sente que, especialmente nos EUA, já há um interesse sobre Pessoa para lá do mundo literário mais académico?
Sim, sem dúvida, acredito que há um público para esta biografia e sei que Pessoa é cada vez mais conhecido e apreciado. Já está fora de um circuito exclusivamente académico. Ainda não como em França, por exemplo, mas cada vez mais.
Depois de toda esta longa viagem, sente que ainda há buracos negros na vida de Pessoa que lhe tiram o sono? Ainda há perguntas para as quais não tem resposta?
[Pausa.] Pensando bem, a vida toda de Pessoa é um buraco negro… Para quem investiga Pessoa, é muito fácil entrar nesse buraco, o difícil é sair. Essa é a grande dificuldade. Esta biografia é a minha tentativa de sair. Aliás, é mais do que uma tentativa: sou eu a sair dando conta daquilo que vi e aprendi. Mas claro que há muitas coisas que nunca vamos saber ao certo.
Ao pôr um ponto final num livro destes deve haver um alívio enorme. Confirma?
Para mim, Pessoa é, agora, um assunto bastante arrumado, sim. Durante 12 ou 13 anos, mesmo fazendo outras coisas pelo meio, dediquei-me a esta biografia. Fui adiando muitas vezes a entrega da versão final. Os meus amigos diziam-me: “Tu não queres terminar esse livro, é como se fosse um filho teu, nunca o vais dar como acabado, depois vais entrar em depressão…” Nada mais falso. Foi uma boa sensação, um alívio, terminar este livro.
(Entrevista publicada na VISÃO Biografia nº 8, de agosto de 2021, dedicada a Fernando Pessoa)