Havia duas casas, uma montada e outra desmontada. A casa montada estava no centro, uma estrutura de madeira clara, moderna, colocada sobre um estrado, de dentro da qual brotava uma árvore tão imponente que crescia para lá do telhado. A luz que incidia sobre esta casa era quente. Já a casa desmontada estava no canto, à direita, recolhida na penumbra, à espera de ser levada dali. As duas estão num estúdio escuro, grande, pé muito alto, onde já se realizaram grandes produções de cinema e que é agora alugado, por exemplo, para ensaios de peças de teatro. Tanto o espaço como as marcações, a simularem as dimensões de um palco, fazem lembrar o filme Dogville, de Lars von Trier, que, ao dar a ver um dispositivo em marcas no chão, está a dizer ao espectador: isto é um jogo, uma construção, isto é uma ficção.
Foi no estúdio grande da Tóbis, ao Lumiar, que decorreram os ensaios do novo espetáculo de Tiago Rodrigues, Catarina e a Beleza de Matar Fascistas, que se estreia já este sábado, 19, no Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães. A peça conta a história de uma família que tem por tradição matar “fascistas” com um tiro de pistola. “Nós não fizemos nada para convencer o público de que isto não é só uma ilusão, não é só uma história”, explica o encenador e diretor artístico do Teatro Nacional D. Maria II. “Não queremos gastar tempo a convencer alguém de que isto está realmente a passar-se. Mas queremos que tenham os sinais suficientes para acreditarem que isto poderia estar a passar-se.”
O PARADOXO DA TOLERÂNCIA
Era uma tarde de início de julho. Encenador e atores estavam na Tóbis, a trabalhar na primeira cena de Catarina e a Beleza de Matar Fascistas. Uma mesa corrida estava colocada à direita, no palco simulado. O ator Pedro Gil ia trazendo pratos, copos, talheres, de dentro da casa para a mesa. A uma ponta, estava sentado um homem (Romeu Costa), amarrado à cadeira. Era o fascista, raptado. Marco Mendonça, de t-shirt “Black Lives Matter” vestida, auscultadores colados aos ouvidos, começou por dizer: “As pessoas passam a vida a apagar fogos. Correm, cansam-se a apagar fogos. Mas é raro pensarem: vou começar um fogo, atear um incêndio, vou queimar. (…) Quem apaga um fogo sabe como vão terminar as coisas. Fumo e cinzas e alívio. Quem ateia um incêndio, faz uma pergunta ao futuro.”
Aquele almoço marcava o começo de um rito iniciático de que trata esta história: Catarina (interpretada por Sara Barros Leitão) iria matar o seu primeiro fascista. Na verdade, todos naquela família se chamam Catarina, todos já mataram ou irão matar fascistas. A ação passa-se em 2028, algures em Baleizão, no Alentejo. A extrema-direita está no governo com maioria absoluta e prepara-se para fazer alterações à Constituição. Isso, de facto, já aconteceu, porque nos é narrado pelo rapaz dos auscultadores, desta forma protegido do ruído, do debate, da dúvida – protegido do paradoxo da tolerância de que falava o filósofo Karl Popper. É esse o grande tema da peça: deverá um conjunto de pessoas ter o direito de violar as regras democráticas para manter a democracia? Devemos tolerar os intolerantes?
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A PALAVRA, A AÇÃO
A casa desmontada seguiu rapidamente para Guimarães. Uma vez que o espetáculo irá, depois, em digressão por várias cidades da Europa – Lausanne, Toulouse, Cherbourg-Octeville e Paris –, é necessário haver dois cenários que se revezem para agilizar as montagens e desmontagens. Só em abril de 2021, Catarina e a Beleza de Matar Fascistas será apresentado no D. Maria II, em Lisboa.
À semelhança da casa, que se desdobra por vários lugares e cuja arquitetura e materiais remetem para tempos diferentes, também a questão da ação – matar ou não matar? – lançada pela peça proporciona camadas múltiplas de interpretação, de pensamento, que se sobrepõem e chegam até a ser contraditórias. Nesta peça, tenta perceber-se que lugar há, hoje, para a dúvida, para a palavra, para a alternativa à violência.
“Acredito absolutamente que, em muitos casos, a palavra é ação. E, ao mesmo tempo, sei que o teatro não é ação política”, diz-nos Tiago Rodrigues, sentado num banco de jardim, à saída da Tóbis. “Pode ter uma dimensão política, pode até ser uma antecâmara da ação, mas será só uma antecâmara. É um jogo onde pensamos, onde temos prazer, onde nos encontramos. E é uma assembleia humana. Mas a ação política de Atenas não era a Antígona e o Creonte…”, complementa o encenador, referindo-se ao clássico de Sófocles.
VALORES DA DEMOCRACIA
Há três momentos-chave na dança entre certezas e incertezas na cabeça desta Catarina-iniciática-que-duvida: a conversa com a mãe, a conversa com a irmã mais nova (uma Catarina-freneticamente-sem-dúvidas-de-que-um-dia-matará, interpretada por Beatriz Maia) e a conversa com o tio (António Fonseca) em torno do conceito de dilema e amor. A argumentação com a mãe atingie o clímax quando esta lhe diz: “Matamos porque estamos dispostas a morrer.”
“Devo dizer que, ao escrever esta peça, ao ensaiar, nos muitos debates que temos tido e que continuaremos a ter mesmo depois da estreia, um dos resultados foi ter um receio muito grande do esgotamento da palavra e do poder transformador da palavra na nossa sociedade. Reconheço uma sensação de impotência e de frustração”, admite Tiago Rodrigues. “Numa sociedade em que permitimos – porque permitimos – que um deputado mande outra deputada para a sua terra porque ela é negra, não só porque não o prevenimos mas também porque não conseguimos tomar as decisões institucionais para impedir que volte a acontecer…; quando permitimos que este mesmo deputado volte a ser sufragado – o que significa que a democracia portuguesa acha que alguém que disse aquelas coisas, afirmações claramente racistas, pode ser sufragado de novo –, não só estamos a negar um artigo fundamental da Constituição como estamos a, mais do que normalizar, institucionalizar aquele discurso. Isto é irreversível: banaliza o que não pode ser banalizado, normaliza o que não pode ser normalizado e institucionalizado. E tem outro efeito muito nocivo: se aquilo é banal, também as palavras opostas, as que defendem a democracia, as que defendem a igualdade, também essas se banalizam, no pior sentido.”
A POLÉMICA DO TÍTULO
A certa altura, o Catarina-admirador-de-aforismos-de-Brecht (interpretado por Rui M. Silva) diz: “Quem luta pode perder; quem não luta perde sempre.” “A impotência das palavras é uma espécie de rastilho para aquilo que pode vir depois”, diz Tiago Rodrigues. “E o que pode vir depois das palavras pode ser uma manifestação. Uma manifestação democrática não são só palavras, são também corpos presentes. É a mostra da disponibilidade física para estar presente. Ela é, de certa forma, a mais saudável das ameaças.”
Quanto à polémica que o título da peça possa suscitar (e já suscitou), Tiago Rodrigues considera a tendência atual para interpretações literais assustadora e reveladora de uma incapacidade de se distinguirem as convicções de um autor das palavras que ele escreve para as personagens dizerem
Quanto à polémica que o título da peça possa suscitar (e já suscitou), Tiago Rodrigues considera a tendência atual para interpretações literais assustadora e reveladora de uma incapacidade de se distinguirem as convicções de um autor das palavras que ele escreve para as personagens dizerem. “Considero isso, até à peça se estrear, uma não polémica, uma especulação. Há um debate que leva a esta peça, é verdade, e que esta peça também pode gerar. Isso, se acontecer, será completamente saudável, desejado; é bom que esse debate seja alimentado por controvérsia, por uma certa capacidade de provocação da arte”, defende. E acrescenta: “‘a beleza de matar’ passa por dois conceitos que, juntos, podem chocar e, quando usamos a palavra ‘fascistas’ no título, sabemos que estamos a trilhar o caminho da provocação. Mas estamos, de alguma forma, a fazer um espelho no título daquilo que é a ameaça e a delicadeza dos perigos que estamos a retratar.”
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PÓS DE REALISMO MÁGICO
No início de setembro, aquela primeira cena a que assistimos em julho tinha já sido alterada para algo mais estilizado: a mesa estava já posta, tinha um papel nas saias da toalha a dizer, com caligrafia de escola primária “Não passarão”. A família de Catarinas começou por juntar-se à esquerda do palco, alguns sentados, outros de pé e no chão, para tirarem uma fotografia. Os atores tinham já vestida a roupa desenhada por José António Tenente, todos de saia comprida e camisa grossa, cores entre o castanho e o bordeaux, escuras. Remetem para um Portugal do passado, pesado, da terra difícil de cavar. A pose da família reporta-nos para um western, os camponeses de semblante austero e espingardas ao lado – aqui são pistolas – a completarem a solenidade do momento, cientes que estão de terem de defender a sua terra. O cowboy no faroeste simboliza, por excelência, a figura da ação, de quem toma a iniciativa.
“O texto tem uma dimensão realista, mas tem também uma dimensão mágica. Joga até com algumas ferramentas daquilo a que se poderia chamar ‘realismo mágico’”, contextualiza Tiago Rodrigues. “Há várias referências de westerns e, até, várias referências fellinianas. Há essa dimensão de realismo mágico, no sentido em que é plausível uma série de coisas que não são… plausíveis”, explica o autor e encenador. “Há uma dimensão de absurdo que, através da fantasia, nos permite essa alteração da moral dominante, das regras, dos valores… É um jogo alegórico: vamos entrar num mundo que não é bem o nosso, mas onde encontramos muitas semelhanças com o nosso, apesar de tudo. É uma metáfora da impotência da democracia face à ameaça fascista.”
CONFINAMENTO E POESIA
O fascista, já de fato, cabelo e barba bem aparados, encontrava-se sentado à mesa, mas deixou de ter uma corda a amarrar-lhe as mãos. “Inicialmente, a peça iria passar-se em 2020. A escolha de mudar para um Portugal onde já aconteceram os próximos oito anos foi uma ideia que surgiu do confinamento”, revela Tiago. “Uma das coisas que pressenti muito rapidamente, estávamos ainda no final de março, princípios de abril, foi: quando pudermos voltar a fazer teatro nas salas, o explícito, o hoje, o agora, o lá fora – que é uma coisa muito presente nas minhas peças – não vai ser o mais importante. O mais importante vai ser a imaginação, o ambíguo, o complexo, o codificado, a poesia.”
Com um final surpreendente, Catarina e a Beleza de Matar Fascistas suscita a dúvida de que as questões levantadas sejam claras para todos os públicos, de que os perigos que pretende trazer a debate sejam considerados como tal por todos. “Nada impede que, na sala, entre espectadores e atores, não haja convicções políticas muito diferentes. Mas não estamos aqui a falar de convicções políticas normais, estamos a falar do bem e do mal”, defende Tiago Rodrigues. “É aí que entra a confiança no teatro. E é também um exercício de confiança no público.” E remata: “Espero que a peça consiga, pelo menos para uma parte do público, dar essa primeira sensação de impotência face a um final infeliz daquilo que é uma história de 2028 e leve a pensar “Ah, mas ainda estamos em 2020. Talvez eu possa fazer parte de um processo que permita que esta história nunca aconteça em 2028!’”