O conhecido bar do Porto pôs trancas à porta.
Mas os versos e os sons da viola não estão de quarentena.
Esta noite, a partir das 23 horas e das casas do ator Rui Spranger e do músico Rui David, a clássica tertúlia de poesia das segundas-feiras entra nas residências de quem se ligar à página do Pinguim Café no Facebook. “Não respeitamos vírus e não lhes reconhecemos o direito de se interporem entre nós e as palavras”, assumem os animadores de serviço, desafiando todas as pessoas a encherem a cave virtual com partilha de poemas e canções, escolhendo um local bem iluminado e sem ruído das respetivas habitações. “Liguem-se, mandem bitaites e ponham-se na fila para intervir. Se tudo correr como deve ser receberão uma chamada de vídeo para participar, como nos passatempos da rádio”, explica a dupla desta primeira sessão do Pinguim fora de portas, aberta ao mundo.
“As noites nunca têm uma temática, correm livres e ao sabor da inspiração e das vontades dos participantes. Assim será também esta noite”, garante Rui Spranger. E, desde já, há alguns poemas que lhe ocorrem, ou melhor, versos de alguns poemas que serão ou não ditos esta noite. “Deixo-os aqui como reflexão. O primeiro é do Poema Pouco Original do Medo, do Alexandre O’Neill, que começa assim: “O medo vai ter tudo”. O segundo é do Carta a Meus Filhos Sobre os Fuzilamentos de Goya, do Jorge de Sena, que diz a certa altura «Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém / vale mais que uma vida ou a alegria tê-la. / É isto o que mais importa – essa alegria.». Por fim, a última frase da brevíssima e maravilhosa prosa do Almada Negreiros A Invenção do Dia Claro, que termina «só faltava uma coisa, salvar a humanidade».”.
Para Rui Spranger, este é o tempo de “questionar toda e qualquer informação que recebemos e tudo fazermos para não cair nas fake news e nos histerismos. Depois, respeitando ao máximo a saúde pública, levarmos a vida o mais naturalmente possível e continuar a avançar com projetos. Espero que os músicos façam concertos a partir de casa, os pintores partilhem os trabalhos, etc. No fundo que continuemos todos ligados.”.
E hoje assim acontecerá, de novo, pois, ao longo da sua história de 32 anos, as noites do Penguim só não ocorreram por cinco vezes.
Pinguim: uma história com 32 anos
Onde antes as mãos andavam à toa à procura de um poema, hoje chega-se à poesia pelos dedos, via telemóvel ou tablet, pesquisando on line e on time todas as palavras que o momento pede. Na cave granítica do Pinguim Café ainda há, como outrora, livros enrugados, nem por isso vencidos da vida, espalhados pelas mesas, pelos balcões, ronronando atenções. Mas onde outrora se partilhavam páginas amarrotadas trazidas de casa para os esquecidos e desorganizados do costume, agora há versos a pirilampar nos ecrãs frágeis e imaculados da última geração, na penumbra das vozes. E esta segunda, 16, estreia-se a transmissão em direto nas redes sociais, pois não há coronavírus que corte a raiz ao pensamento.
Será uma clausura libertadora. Como tantas noites aconteceu, em formato tradicional.
Mas nem a tecnologia nem os dizedores de colheita recente mudam os genes da casa e da causa: aqui ainda ditam leis os poetas de sempre – de Cesariny a Al Berto, de Manuel António Pina a Herberto Helder – a fazer parelha com os novos, sem preconceitos, sem nunca se zangarem.
Como sempre aconteceu, um poema sobre a guerra civil de Espanha pode desaguar num Augusto Gil em versão soft porno, com curvas e contracurvas à boleia de Benedetti, Jorge Sousa Braga, Filipa Leal, Don Herold ou de uma desconhecida poeta romena. O caos pode instalar-se, mas também a doçura. “Dou por mim a escrever e a pensar como é que o poema ficará quando for dito no Pinguim. E o aplauso autêntico é uma conquista”, resume Eduardo Leal, já enfarinhado nestas leituras, poeta também ele.
Podem aparecer poetas sem teto, poemas sem título, textos sem nexo, prosas com sexo. Podem surgir dizedores de outras paragens feitos ali, de Isaque Ferreira a Ana Afonso, mas também políticos como José Soeiro, do BE.
Podem desencadear-se vícios, dependências e encantamentos tais que façam alguém dedicar-se a traduzir 86 poemas de origem hispânica para português. E descobrem-se sempre novas vozes em palavras vintage. Ontem como hoje, a cave transforma-se num laboratório “onde aparece malta muito mais nova, a viver o espírito do Pinguim de forma desempoeirada”, atesta o ator e encenador Rui Spranger, “distribuidor de jogo” das noites da cave e agora a partir de casa.
Nas suas mais de três décadas de vida, o Pinguim já viveu as intermitências da morte. Mas sobreviveu sempre, entre a cegueira e a lucidez.
Tudo começou no final dos anos 80 pela mão de uma figura que, ao jeito de Cossery, nunca desejou outra coisa a não ser ele próprio: caminhava na rua sem nada, com as mãos nos bolsos, e sentia-se um príncipe. Joaquim Castro Caldas (1956-2008), poeta, dizedor, ator, foi tudo isso nas versões ternura e labareda. As noites do Pinguim beberam muito dessa vagabundagem da contracultura do Porto e da fauna underground daquela etapa a que Castro Caldas deu corpo, desafiando improbabilidades.
Nele, na voz dele, cabiam a arte e o desassombro de João Villaret, Mário Viegas e Ary dos Santos. Era carnívoro, incendiário e terno, capaz de se abandonar aos outros como um gato ou desampará-los, assanhado, se não estivessem ali a fazer nada. Tinha, palavras dele, um cadastrum vitae de desrespeito: viajara de carroça e burro pelo Alentejo no Verão Quente, pateara raivosamente o teatro obsoleto, andara pelos palcos das óperas proibidas. Atravessara o comunismo prêt-à-porter, habitara o rés-do-chão dos poetas de arranhar os céus, os serões clandestinos das casas de fado, paços reais e pátios imundos. Pedira à Gulbenkian “um subsídio para o suicídio que lhe foi gentilmente recusado”, andara pela Europa, coração numa mochila aberta. Fuçara por conta própria numa “indisciplina coerente” e “esfomeada entrega.”. Conhecera meio mundo que tinha a mania de o ignorar “porque o outro meio julga que o evita.”. Chegara assim a mestre-de-cerimónias das noites líricas do Pinguim, neurótico nas horas vagas, doido nos tempos livres e esquizofrénico nos intervalos. And work is work, cognac c´est cognac.
A princípio, está bom de ver, chamaram-lhe louco: dizer poesia às segundas, à meia-noite, na cave de pedra despida de um bar escondido na soturna Rua de Belomonte?! Era impensável, mas virou fenómeno. “Consegui sentar no mesmo chão vedetas e vadios, pessoas de 70 anos e miúdos de 17”, recordou, em tempos. Apareceu gente vinda de geografias e devoções várias, carente de leituras mil, inchada de talento presumido ou até desabrigada da poesia. Também figurões de outras andanças: Jaime Isidoro, Fernando Lanhas, Paulo Abrunhosa. Diz-se – e o Joaquim dizia – que até Pinto da Costa, presidente do FC Porto, também por lá terá passado, com António Nobre na ponta da língua, presume-se.
Na rua, por cima dos passeios, carros e gente tornaram a viagem para o Pinguim quase intransitável nesse tempo. Noites em que a cave entupia. De fumo, de palavras acesas ou gastas, num vaivém de cerveja, gin e desenfreadas paixões. Joaquim Castro Caldas puxava pelas pessoas, “obrigava-as a intervir.”. Às vezes, “a bem ou a mal”, certo de enxertar o que outras gerações levariam ao colo. Contagiava quem “torcia as orelhas à poesia”, desafiando-os a escrever e a dizer. Ali. Agora. Na memória do escritor Valter Hugo Mãe, tantas vezes sobressaltado de madrugada por um telefonema do Joaquim a pretexto da alvorada de um poema novo, Castro Caldas era um “elegante evocador de provocações”, invariavelmente capaz de levantar um texto como “uma bandeira de palavras.”.
Por lá passaram putos vestidos “altivamente de preto, como se estivessem de luto por um mundo visto pela primeira vez”, no dizer de Micaela Maia. Ali se cozinhou uma “estranha mistura entre o sonhado e o imponderável”, nas palavras de Pedro Lamares, que também andou pela cave, em fases posteriores, a distribuir “jogo.”. Ali se tesourou cabelo entre poemas. Leu-se Sida, do Al Berto, de cor, braços cruzados, tipo múmia e pintaram-se, a batôn, telas reais e imaginárias. Na cave, houve também “bravatas e até pistolas chegaram a ser manejadas”, recordações que perduram em prosa, para lá da poesia, na memória de Isaque Ferreira, outro dos animadores de outrora, cúmplice daquelas névoas madrugadoras. Musicaram-se ilusões, ofereceram-se poemas nas costas de um flyer, atiraram-se palavras para a mesa ou ao vento, sorveram-se outras páginas após o fecho das redações, que o diga Luís Miguel Queirós, jornalista, poeta a descobrir na antologia dos 25 anos do Pinguim, editada em 2013.
Dos ouvintes calados também se fez o património do Pinguim. E de gente que ali batucou e tarimbou no escrito e no dito, ora a rasurar inocências ou a rascunhar talento. Valter Hugo Mãe, Daniel Maia-Pinto Rodrigues, João Habitualmente, João Negreiros, Anthero Monteiro, Filipa Leal, Renato Filipe Cardoso, tantos outros.
No Pinguim, Amílcar Mendes esteve quase uma dúzia de anos a dizer poesia, vestido de preto (assim recomendam os puristas aos dizedores). Ele entrara numa época em que a cave já enjoara de Pessoa e heterónimos, Manifesto Anti-Dantas e por extenso, de José de Almada Negreiros. Lugar-tenente e muleta do Joaquim, Amílcar viu nascer ali a Poesia em Pó, panfleto A4 dobrado em quatro, de cento e tantos números, impulsionados por Luís Carlos e Fernanda, antigos donos do Pinguim, sementeiros, diz-se, das “segundas de poesia.”.
Quando as noites da cave definharam e desapareceram, Joaquim Castro Caldas deixou-se então morrer como se as quisesse salvar. Estava-se no verão de 2008 e Pedro Lamares propôs a Rui Spranger e Paulo Pires, dono do bar, que se reabrisse o Pinguim na segunda-feira de velório para excecionalmente celebrar o Joaquim. Dessa noite renasceram outras. Spranger, que anos antes havia lançado as sessões de poesia surrealista e empenhara corpo e alma para manter vivo o espírito do lugar, estava “na fase de sair”, mas acabou por ficar. Deve ter sido uma sacanice do Joaquim, travessuras dele lá em cima. Ou no inferno, onde há presunto, diz-se.
Passaram 32 anos e as noites continuam a prolongar-se madrugada dentro Agora terminam com o Ir Indo, letra de Joaquim Castro Caldas para o Bando dos Gambozinos, cantado em grupo, com Rui David à viola. E hoje não será diferente: “ir indo / a gente aprende / o coração à lareira / que se fica a ir / e reacende / até que um dia / alguém se lembre.”. Ouve-se bem, aí em casa?