Beatrice Rana ainda não está pronta para se dedicar a Beethoven como ele merece. Tem tocado os concertos, mas as obras a solo são outra questão. “Com Beethoven não ajuda realmente ser italiana”, explica à VISÃO. A escola italiana de pianistas é fortemente influenciada pela ópera, pela linha melódica do belcanto, mas em Beethoven a lógica é outra e o material também. “Visto isoladamente, às vezes parece que são apenas escalas. A ideia é menos importante do que a construção”, explica a pianista.
Semelhante escrúpulo fica bem a alguém tão jovem, e desmente qualquer suspeita de que ela esteja com pressa de absorver todo o reportório importante. Uma suspeita que podia ter nascido do facto de ter gravado as Variações Goldberg aos 23 anos. A obra-prima de Bach exige um nível superior de maturidade, como provam muitas versões deficientes que têm saído nos últimos anos. No caso de Rana, a crítica foi praticamente unânime, elogiando um “documento notável” onde “o detalhe é um dos aspetos que torna esta performance tão fascinante, seja o pôr em relevo uma nova linha na repetição, mudanças subtis no fraseado, um toque de pedal – há exemplos em cada variação. Dinâmicas são usadas para reforçar o minidrama em cada número e a aplicação de ornamentos também é maravilhosamente fresca, embora ‘aplicação’ dê uma impressão completamente errada, pois o efeito é invariavelmente orgânico e vai do sublime ao malandro” (Gramophone).
Rana, pela sua parte, elogia a humanidade das Variações, bem como o seu poder emocional, referindo que para si o desafio foi tentar ir mais longe. “Adoro essa peça há muito tempo. É outro tipo de aventura”, diz. Embora não tenha sido a primeira a gravar a obra tão cedo – o exemplo de Glenn Gould vem obviamente à cabeça, mas há outros – a sua versão, editada o ano passado na Warner Classics, promete tornar-se uma das de referência. Curiosamente, como ela explica, representou uma mudança em relação ao seu reportório anterior. No seu CD anterior havia Prokofiev e Tchaikovsky, respetivamente os concertos 2 e 1, dois cavalos de batalha dos virtuosos de alto nível, convenientes a uma pianista com um som cheio e poderoso.
Lisboa apreciou plenamente esta característica das suas interpretações no programa que ela veio tocar na Gulbenkian há semanas: Estudos Sinfónicos de Schumann, Mirroirs de Ravel e a suíte do Pássaro de Fogo, de Stravinsky. Embora só a primeira tenha o adjetivo “sinfónico” no título, todas elas o merecem, pois a utilização que fazem do piano é realmente sinfónica. Ela própria o diz, invocando a tradição que começou com Liszt. Ao inventar o recital, uma instituição que pressupunha uma sala grande e, portanto, música capaz de a encher (não raro, literalmente, transcrições de obras para orquestra; Liszt transcreveu para piano as sinfonias de Beethoven, por exemplo), ele deu novos mundos ao piano.
Rana assume a tradição, e a sua presença foi um momento alto da temporada, com interpretações ao mesmo tempo volumosas e finamente nuanceadas. O Schumann foi completamente satisfatório, e o Stravinsky também. Só o Ravel talvez tivesse ganho, aqui e ali, com um som um pouco mais rarefeito. Questões de gosto. O que ninguém pode negar é que Rana é uma pianista completa. O facto de ser filha de dois pianistas profissionais (que não foram os seus professores e nunca a incitaram a nada, ressalva: “Só quiseram sempre que fosse feliz. Tenho muito bons sentimentos em relação à infância”) talvez tenha ajudado a criar a naturalidade da sua abordagem. Sem ser obsessiva, ela evita ouvir outras interpretações quando aborda uma obra.
Isto apesar de achar que vivemos numa era de ouro do piano. Entre vários nomes possíveis, destaca o de Daniil Trifonov. O qual, por acaso, deu um recital na Gulbenkian dois dias antes do seu. Quando lhe dizemos, pergunta imediatamente o que o pianista russo tocou (para que conste, o concerto de Schumann). A curiosidade parece genuína, como o resto nela. Simpatia incluída.