Plantu (nascido Jean Plantureux), 65 anos, cartoonista do jornal francês Le Monde desde os 21, veio passar três dias a Lisboa, onde recebeu (com Eduardo Lourenço) o prémio Helena Vaz da Silva para a divulgação do Património Cultural, promovido pelo Centro Nacional de Cultura. Chegou ligeiramente atrasado à entrevista, acompanhado de um guarda-costas.
A companhia, permanente, foi-lhe imposta pelo governo francês, desde que a redação do jornal Charlie Hebdo foi alvo de um ataque terrorista, em janeiro de 2015, matando muitos dos seus colegas caricaturistas. Convive bem com a companhia. O atraso, esse, deveu-se ao adormecer tardio, depois de uma noite de fados, e à greve dos táxis, em Lisboa, que começou por impor um certo caos no trânsito da capital. Em França, diz, “há greves a toda a hora. Se entramos no comboio e ele não anda, concluímos que há greve e arranjamos alternativa. Se no comboio não nos servem a refeição, a mesma coisa… há greves a toda a hora.” Já cá tinha estado umas cinco vezes. Mas não se cansa de ir ao Castelo de São Jorge, onde se perde na vista. Também voltou a Belém, foi à Fundação Gulbenkian descobrir, nas paredes, novos traços, e ainda teve tempo de ir aos fados. “Se tivesse outra vida, gostava de ficar para desenhar as casas, as portas, as janelas, as varandas, as ruelas, as pessoas… há uma simplicidade, aqui, de que gosto.” Começámos, portanto, com uma provocação.

Como vê Portugal no Mundo? Desenho feito para a VISÃO, no iPad, sem a voz da caneta sobre o papel, que tanto o inspira. Escreveu em português, pondo-se a cantarolar
Há muitos franceses que se mudaram para Portugal, nos últimos tempos.
Adoro o meu país, tenho muito orgulho em ser francês, mas há bloqueios incríveis – sociais, sociológicos. Há cada vez mais gente a precisar de respirar, de ir para fora. Estamos no fim de um ciclo, em França.
Só em França ou na Europa?
Desde logo em França. Vivemos em democracia, mas há uma tragédia que se anuncia. Já não falo dos atentados de 2015, mas das tragédias que se anunciam. Estamos só no início.
Daqui a seis meses haverá eleições presidenciais em França. Vai mudar alguma coisa? O que é que esta política, de extremos, lhe diz?
Há um crescimento cada vez mais importante dos extremos. Há 10 anos criei, com Kofi Annan [então secretário-geral da ONU], a Associação Cartooning for Peace. Kofi Annan já tinha percebido que a chegada da internet, apesar de genial, nos fecha sobre nós mesmos. Permite que uma pequena frase de um Trump ou de outro qualquer extremista seja agarrada pelos media – estes alimentam-se muitas vezes de audiências – e seja transmitida como informação que, na verdade, não é. A pequena frase pode ser promovida a vedeta, mas não traduz a realidade. Na política ou nos media, este buzz (ruído) é que é o rei. Há uma revolução a fazer nas escolas, nos media, na política. Não estamos preparados para a era da internet. Temos um instrumento genial, mas que não sabemos controlar.
Está a querer dizer que o extremismo vem dos media, da globalização da informação?
Não, mas os extremistas sabem como é que funciona. Trump é um cliente do buzz, tal como os extremos, em França.
Fala muito de Trump. Está preocupado com as eleições nos Estados Unidos?
Claro! Adoro Obama, mas desiludiu-me. Se me perguntam por Trump, ou mesmo Hillary Clinton, não me ponho a sonhar.
Precisa de sonhar para desenhar?
Preciso de sonhar o tempo todo.
VEJA UM EXCERTO DA ENTREVISTA EM VÍDEO
Diz-se jornalista. E um jornalista alimenta-se de realidade, não de sonhos…
É preciso agarrarmo-nos aos nossos sonhos para pedir contas. A esquerda, no poder, deve fazer com que os pobres sejam menos pobres e que as desigualdades diminuam. Em França, há 30 anos que a esquerda no poder não é isso. Nem se preocupam. A esquerda esqueceu esse sonho.
Já não há esquerda, em França?
Há pois! Mas há 30 anos que não está no poder… quem tem estado no poder considera que o Mediterrâneo, o diálogo norte-sul, o desemprego, não é uma prioridade.
Qual é a prioridade?
Gerir a comunicação, manter-se no poder. Esqueceram o essencial. E o eleitorado continua a votar neles…
E, no seu caso, como gere a realidade e o sonho? Faz autocensura?
Faço como os jornalistas, que por vezes não publicam por não ser o momento ou porque, se publicarem certas coisas, as pessoas não vão perceber. Se só eu souber da doença de um político, por exemplo, é uma questão da sua vida privada. Ou o caso da filha de Mitterrand. Eu conhecia-o e sabia que tinha uma filha, mas nunca pensei fazer um desenho passando essa mensagem. Há desenhos que são verdadeiras flechas. E eu não faço o que me passa pela cabeça. Quando as atiro, é porque são refletidas. O que não deixo é escapar nada que se prenda com os Direitos Humanos.
É esse o seu combate?
O meu combate é o amor ao meu jornal, o amor dos meus leitores, que não conheço. Tento pôr-me no seu lugar. Sei que, apesar de quererem aprender, os leitores não percebem tudo o que os jornalistas dizem, por isso tento fazer o go between, traduzir o que os jornalistas dizem. Sou um tradutor, um bom interprete, que por vezes também exprime as suas fúrias e as dos leitores. É o que faz a minha personagem Paul Emploi, que desenho com um carrinho de supermercado vazio. Insisto para que os políticos percebam que ele representa a sociedade. Quando o seu carrinho estiver cheio, a esquerda terá cumprido o seu papel. Mas o carrinho está sempre vazio…
Mudando de assunto. Tem um guarda-costas. Sente medo?
Não, porque sei que se alguém me quiser mal, fá-lo-á. Mas também pelas crianças – visito muitas escolas – é seguro ter alguém que as proteja, quando lá vou.
Que mensagem tenta passar às crianças?
Falo-lhes sobre o viver em conjunto, o respeito, sobre o que se pode ou não dizer.

Como está a Europa, com o Brexit e os migrantes? Não pôs o Brexit, porque “não se pode pôr tudo”. Depois, perguntando pela Síria, acrescentou a avestruz de cabeça na areia
Tem uma linha vermelha que não ultrapasse?
Tento não humilhar. É muito fácil fazê-lo…
Disse noutra entrevista, citando o humorista Pierre Desproges, que se pode rir de tudo, mas não de toda a gente… como é isso?
Quando vou à Dinamarca e falo do Charlie Hebdo, tenho de explicar que os desenhos não eram feitos para eles, eram para os leitores do Charlie. A internet também tem o seu papel. Um desenho feito em Lisboa chega, em dois minutos, por vezes incompreendido ou manipulado, a Beirute ou ao Cairo, e não se percebe. É essa a grande novidade.
Qual dos seus 30 mil desenhos tem na parede da sala?
O de Arafat e Shimon Peres no quarto. É aquele de que me orgulho mais.
Com as bandeiras da Palestina e de Israel, assinadas por Arafat e Shimon Peres antes mesmo dos acordos de Oslo. Aí, fez História. Que passo gostava de dar, hoje, para voltar a fazer História?
Gostava de pôr os políticos a desenhar. Ao fazê-lo, estaria a fazer babysitting e eles diriam, no desenho, tudo o que é essencial.
Também poria os políticos europeus a desenhar? O que é que se passa, com a Europa?
Durante a crise de Sarajevo, desenhei a Europa de 1917, em sépia. Não se percebe a Bósnia, a Sérvia, a Croácia ou a Crimeia sem se conhecer a História. Se esquecemos a História, não percebemos o que se passa. Não podemos desprezar as pessoas. Só compreendemos a Europa se olharmos para o Mediterrâneo, para o Médio Oriente, para África. E vamos entrar em campanha eleitoral e não se há de falar nem do Mediterrâneo, nem do diálogo norte-sul, nem do Médio Oriente. É um erro.
Qual o seu papel, nisso?
Vou às escolas, onde há um enorme aumento da islamofobia e do antissemitismo. Os jovens, nas escolas, acreditam que são os judeus que controlam os media. É impressionante! E é por aí que a Europa vai cair.

Desenhe o divino, ou a laicidade do Estado. Após uma pausa, desenhou os dois. “Liberdade, igualdade, fraternidade, são valores universais!”
Já não tem esperança?
Ainda se poderá controlar, mas acho que é tarde demais. Eu faço “como se” funcionasse. Quando fiz o desenho com Arafat, fiz “como se” ele e Shimon Peres fizessem a paz. Aqui, podemos fazer o mesmo. Podemos pensar “como se” a Europa fosse bem sucedida. Nas Filipinas, por exemplo, olham para nós e dizem “a Europa é espetacular! Há paz!”
Na verdade, é preciso ouvir as pessoas. Porque é que na Grécia, na Hungria, as pessoas se estão a tornar extremistas? É preciso ouvir as pessoas, não as podemos desprezar. As pessoas têm medo. Há que saber ajudá-las a ultrapassar os problemas. Há que perceber que há outra cultura europeia, que não é a nossa, da Liberdade, Igualdade, Fraternidade. E quando nos falam em Sharia [direito islâmico], temos de dizer que respeitamos as religiões, mas que o edifício francês e europeu se baseia na Liberdade, Igualdade, Fraternidade e que a religião, que é individual, não passa à frente do espírito cultural que reúne a Europa.
Parece simples.
Há que tirar partido das coisas boas. Eu não percebo nada de futebol, mas o Euro 2016 reuniu toda a Europa. Aproveitemos. Não podemos é deixar de ver que deitámos abaixo o Muro [de Berlim] em 1989, mas reinventámos outros, entre nós. Como se explicam os 60 milhões de pobres, na Europa? E a venda de armas? Ninguém fala disso… ninguém se interessa.
Pelo contrário, os burkinis…
Falamos muito disso, entre caricaturistas. É um tema verdadeiro, para nós, mas os media roubaram-no-lo e fizeram dele uma caricatura. O nosso trabalho é exagerar… e os media, em vez de relativizar, contextualizar, atiraram-se ao tema sem objetividade. Foram completamente subjetivos, como os caricaturistas. Exageraram, como os caricaturistas. Não fizeram informação.
Como teria sido, se se tivesse feito informação?
Era preciso ouvir a população, na praia, em Nice. As pessoas ainda estavam em choque com a tragédia [o atentado de 14 de julho]. Ainda estavam no seu processo de dor. Vão à praia e atiram-lhes com a religião para cima. Não o suportaram. Mas daí a multar as mulheres, fazê-las despirem-se… foi ridículo. É preciso respeitar toda a gente. Vivemos numa época em que não aprendemos a respeitarmo-nos uns aos outros.
E agora?
É preciso voltar às escolas. Há professores que me dizem que não ousam ensinar Darwin ou a Shoah. Estamos em vésperas de um novo conflito, no seio da Europa. Estou convencido disso. Há demasiado ódio.

JoaoLima