Se eu com catorze anos tivesse tido a oportunidade de me ver aqui, neste momento, a conversar com o Zé Pedro, estou certo de que ficaria muito impressionado. O Circo de Feras tinha sido publicado havia pouco e apenas saía do prato do meu gira-discos durante os instantes em que mudava do lado A para o lado B, ou vice-versa.
Desde então, muito aconteceu. Eu já não tenho 14 anos e o Zé Pedro comemora os 60 na próxima semana. É sobre isso que vamos falar. O caminho teve altos e baixos, uns e outros foram imprescindíveis para chegar aqui.
É verdade que os aniversários são momentos de balanço, mas também é verdade que os balanços são oportunidades de nos olharmos ao espelho. Esta conversa também é um esboço desse reflexo: Zé Pedro, o músico mais carismático do Rock português, e eu, a ouvi-lo, quase sempre com 14 anos
Nasceste na ala do exército do Hospital da Estrela e li que nos primeiros anos da tua vida estiveste bastante longe, em Timor. Que memórias tens desse tempo?
Tenho bastantes memórias. Somos sete irmãos, mais ou menos seguidos, o que nos dá uma grande partilha de histórias. Éramos miúdos, com uma diferença de cerca de onze anos entre a mais velha e a mais nova. Uma das minhas irmãs ficou cá, só a conhecemos três anos depois. Para a integrarmos, a minha mãe, muito inteligentemente, fazia-nos passar serões a contar histórias, a olhar para fotografias e slides. A memória mais viva que tenho é a viagem para cá, teria uns seis ou sete anos. Viemos de barco e a primeira coisa que recordo foi pararmos ao largo de Hong Kong. E eu nunca tinha visto uma cidade, nunca tinha visto prédios. Esse momento nunca me saiu da memória: a primeira vez em que vi uma cidade.
Quando chegaste a Lisboa, ficaste nos Olivais. Como eram os Olivais nessa altura?
Era uma zona um pouco isolada da cidade. Era um bairro construído com a intenção de unir várias classes sociais, embora tivesse um resultado algo diferente na prática. Entre os jovens, havia muitas rivalidades.
Foi aí que começou o contato com a música?
Havia o culto de se ouvir discos. No vinil, ouvia-se os discos até ao fim. Às vezes, ouvia-se em grupo, o que também era interessante. Os discos eram difíceis de comprar cá. Encomendavam-se de Londres e, por isso, existia também aquele culto de estar à espera do carteiro com o disco dos Zeppelin. Quem me incutiu a maneira de ouvir música foi o meu pai. Ele ouvia muitas bandas de jazz, Glen Miller, Duke Ellington. Sentava-me ao seu lado e mostrava-me onde estava o saxofone, a bateria. Criou-me o hábito de ouvir música e de perceber um pouco o contexto.
Mas para além do aspecto musical, também há um outro lado. Lembro-me de ouvir falar dos encontros na Avenida de Roma. Que tipo de encontros eram esses? O que acontecia?
Na época, os Olivais eram um bairro fechado. Quando os meus amigos e eu vínhamos à cidade, programávamos muito bem o que íamos fazer. Depois do 25 de abril, as coisas abriram muito. Quem não viveu diretamente o 25 de abril não se apercebe do quanto mudou. Politicamente, eu não percebia nada, não fazia ideia do que era a ditadura. O meu pai era militar e não se falava do que se passava politicamente em Portugal. Vivíamos à margem. Com a abertura do 25 de abril, quis descobrir o mundo.
E também estavas numa idade de descoberta…
Sim, claro. Havia uma discoteca chamada Browns, que passava música nova, música moderna. Havia o programa do António Sérgio, que divulgava muita coisa. Esses eram lugares a que eu gostava de ir. Por aqueles cafés da Avenida de Roma, passei o meu período de “limpar calçadas”, a andar de um lado para o outro, a encontrar o pessoal, a ir lá atrás fumar um charro, a passar a tarde toda no café sem fazer nada, mas convencido de que estava a fazer muito.
Já tinhas banda?
Foi nessa altura que começaram os Xutos & Pontapés. Eu tinha chegado de interrail, tinha estado num festival Punk em Mont-de-Marsan, em França, onde vi as bandas todas, excepto os Pistols, que andavam numa tourné na Escandinávia e acabaram por não ir. Mas vi os Clash, que me encheram as medidas, tocaram também os The Damned, vi a segunda actuação dos Police. Havia um fervilhar muito forte, com que me identifiquei muito rapidamente.
Foi nessa altura que meteste o anúncio de jornal: “Baterista e baixista precisam-se para grupo Punk”?
Exato. Mas só consegui o baterista. O baixista – o Tim – acabou por ser encontrado em Almada, a tocar guitarra no jardim. O Zé Leonel, que era o vocalista dessa altura, viu-o e convidou-o para fazer um ensaio connosco. O anúncio não era para uma banda minha, mas era para os Faísca, a banda do Pedro Aires Magalhães. Foi nesses anos, 77/78, que me tornei aficionado do Punk Rock. Tenho a impressão de que toda a arte absorveu e foi influenciada por esse movimento. Não tinha uma agenda determinada, absorvia o urbanismo. Havia um chavão, o Do It Yourself que fez movimentar muita gente. Então, o submundo da arte, em todos os sectores, saltou para a frente. Havia os estilistas, os escritores, os realizadores, muita gente que teve oportunidade de pôr trabalhos cá fora nessa altura. Isto além do movimento musical, que foi fortíssimo.
Achas que se os Xutos se tivessem chamado Beijinhos & Parabéns teriam tido o mesmo caminho? Eram a mesma banda passados estes anos?
Tenho a impressão que rejeitámos esse nome logo quando surgiu em cima da mesa, só apareceu escrito no toalhete da cervejaria.
O primeiro contrato discográfico foi com o António Sérgio. Foi alguém que deu a conhecer muita música a muita gente. Suponho que já fosse importante para ti antes do contacto pessoal.
Sim, já o conhecia da rádio. Gravávamos os programas dele e, para descobrir as bandas novas, trocávamos cassetes do programa. Era usual fazer-se isso dentro do circuito dos punks – éramos para aí uns dez, mas achávamos que éramos os opinion makers. Pessoalmente, já me tinha cruzado com ele, já tínhamos trocado impressões. Enquanto Xutos & Pontapés, ele era a única pessoa a quem levávamos maquetes. Não levávamos a editoras, não levávamos a ninguém. Só tínhamos interesse em saber a opinião dele. Quando nos convidou para fazer parte do catálogo da Rotação, foi um prazer enorme. Dissemos-lhe que o queríamos como produtor, ele aceitou e, assim, produziu os dois primeiros singles e o primeiro álbum.
Álbuns como o Circo de Feras ou o 88 foram êxitos absolutos dos Xutos. Quais são as primeiras memórias que tens desses anos gloriosos?
Estávamos com sete anos de existência quando saiu o Circo de Feras, já enchíamos salas. Tínhamos um culto grande, tínhamos material, mas não tínhamos editora. Antes, gravámos o Cerco em menos de uma semana, com condições precárias, não havia dinheiro para estúdio. Nessa época, as nossas atuações faziam o Rock Rendez-vous transbordar, dávamos concertos grandiosos fora de Lisboa. Tínhamos a noção de que precisávamos de gravar para abrir caminho. Quando fomos chamados pelo Tozé Brito para ir para a Polygram, escolhemos músicas que já resultavam muito bem ao vivo. Tínhamos consciência de que o disco tinha condições para ser bem aceite. Foi uma passagem natural. Em dois anos, gravámos o Circo de Feras, o single da Minha Casinha e o 88, disco triplo ao vivo. Aí atingimos um pico de carreira e de espetáculos que nos deu uma bagagem muito grande. E, claro, sobe-se muito e, depois, cai-se um pouco, mas sobrevivemos.
Foi nesse tempo que viste pela primeira vez pessoas a fazerem o xis com os braços?
Foi em Braga. Tínhamos dado um concerto, com os Mão Morta na primeira parte, e à saída fomos cumprimentados por esse cruzar de braços.
Mais tarde, o início dos anos noventa também foi uma travessia no deserto para os Xutos. Estou a lembrar-me, por exemplo, da importância e do envolvimento que o Tim teve nos Resistência que, na altura, também estavam presentes em toda a parte. Como é que isso foi sentido?
Nessa altura, eu tinha acabado de abrir o Johnny Guitar. Passámos um período difícil que nos levou a estar com a banda suspensa durante algum tempo e, só por sorte, não houve uma reunião para terminarmos. O Tim envolve-se com os Resistência; eu, o Kalu e o Alex dos Radio Macau ficámos com o Johny Guitar e, assim, separámos as águas. Foi um intervalo que tínhamos de fazer. Quando voltámos, estávamos prontos para recomeçar. Tivemos a sorte de, nessa altura, aparecer a Marta Ferreira, que foi quem organizou a estrutura dos Xutos, na qual ainda hoje vivemos. Infelizmente, ela morreu e esse foi um grande abalo, que ainda assim, não deitou abaixo a nossa estrutura.
No concerto de comemoração dos 30 anos dos Xutos, no Restelo, fui praticamente obrigado a ir com o meu filho que, na altura, teria à volta de uns sete anos. Como é que vês este leque tão grande de público que têm e que vai das crianças aos avós?
Vejo com muito agrado. Acho que o desejo de qualquer artista é ter um público tão alargado. É um prazer enorme de quem cria, e de quem faz as coisas com alma, conseguir chegar ao maior número de pessoas. Claro que não há fórmula, mas é fascinante assistir a miúdos a discutirem músicas de quando ainda nem eram nascidos.
Mas os Xutos ainda são uma banda Punk?
Temos o nosso quê de Punk, porque o Punk tem a ver com atitude. Essa atitude, conseguimos ter. Ao vivo, se tivéssemos uma atitude mais fragilizada, já estávamos a leste do paraíso porque as pessoas não perdoam. Habituei-me a seguir o Punk em várias vertentes. Ao mesmo tempo que ouvia os Pistols, também ouvia os Clash que iam para lugares inimagináveis, ou a Patty Smith e os Talking Heads, que se afastavam daquele sector mais próximo dos Sex Pistols. Por isso, o Punk era uma enorme abrangência de formas. Sou um grande fã dos Strangles, que introduziram o órgão. Havia alguns puristas que diziam que aquilo não tinha nada a ver com Punk, mas tinha. Para mim, era sempre mais acerca de Rock & Roll do que algo estanque.
Quais são os desafios da música neste tempo, em Portugal?
Vive-se um tempo estranho de música. A internet trouxe muitas coisas boas, mas trouxe também uma desabituação em ouvir música demoradamente. Para mim, uma das últimas bandas que surgiram com esse tipo de carisma talvez tenham sido os Artic Monkeys. Hoje, em dia, é tudo tão rápido que não se consegue absorver. Penso que bandas como os Linda Martini ou os Capitão Fausto começam a ter um culto, oxalá consigam desenvolvê-lo.
Passará esse culto pela internet?
A internet tem um lado bastante negativo: apenas se leem títulos, nada se aprofunda. E isso acontece muito no consumo da música. O habitual é as pessoas ligarem-se a determinado artista, mas não ouvirem metade da música. Tenho a impressão de que, nas plataformas, ouve-se trinta segundos e forma-se logo opinião acerca do seu interesse.
Mudando de assunto, como estás de saúde? [Zé Pedro fez um transplante de fígado em 2011] Tudo bem?
Estou nas minhas guerras, mas bem, a conseguir conquistá-las. No que toca à saúde, passei por situações difíceis, mas tenho ao meu lado uma pessoa fantástica. Com o suporte no amor da minha atual mulher, a Cristina, tenho uma tranquilidade muito grande. Às vezes, preciso de sofrer menos, preocupar-me menos, porque quem está ao lado sofre muito mais. Não posso dizer que está tudo sarado, mas estou num ótimo caminho para passar um período grande sem preocupações.
Apesar de estamos a aproximarmo-nos da data do teu aniversário, sentes que foram esses problemas de saúde que te fizeram entrar numa nova idade?
Não tenho dúvida nenhuma. Quando aconteceu a primeira situação, em 2001, eu estava numa espiral de que não conseguia sair. O consumo de drogas e álcool era fortíssimo, principalmente no ano anterior a esse problema. Estava desgastado emocionalmente, não tinha ambições de músico, não tinha um amor ao meu lado que me fizesse viver, não tinha nada que me interessasse. Essa espiral levou-me até um abismo muito forte. Desde aí, a minha vida mudou. Parei com tudo, tive de passar pela ressaca, deixar acalmar a poeira e entrar numa vida nova. Felizmente, apareceu a Cristina na minha vida. Os Xutos nunca me largaram, ter sempre esses companheiros ao meu lado também foi um apoio muito bom. E claro que a minha família também me ajudou muito a manter-me à tona de água e ter a segurança necessária para virar a página ali. Chego aos 60 anos tranquilo, com a segunda vida que tive, na segunda oportunidade que tive, com vontade de a aproveitar.
Quando olhas para trás, o que é que não mudou? Desde Timor e desde os Olivais, o que é que se manteve sempre?
Acho que foi o Rock & Roll. O gosto pela música não mudou, o gosto pelo amor também não mudou. Considero o amor algo verdadeiramente superior e que, quando se encontra, não se deve perder. É difícil encontrar e não se deve perder. E acima de tudo, a honestidade. A honestidade não é para com os outros, é sobretudo para connosco próprios. Esta forma de vida que me foi passada pela minha mãe, o dar e o receber, é muito importante e sempre me habituou a ter os pés no chão, a não esvoaçar por aí. Aproximei-me muito do abismo, mas sempre tive consciência de onde estava.