
Nuno Markl
Tiago Miranda
De calções, t-shirt e gorro na cabeça, ele tenta esconder o nervosismo. De fato completo, ela espalha alegria e descontração. Ele segue à risca a indumentária do músico em crise existencial. Ela revela-se uma dinossaura cor-de-rosa sem igual. Sim, leu bem. Refrigerantes e Canções de Amor, o novo filme realizado por Luís Galvão Teles, tem uma inesperada protagonista. Mas não se trata de uma qualquer espécie criada num Jurassic Park lusitano. É, tão só, uma poderosa metáfora para contrariar o ditado popular que diz “quem vê caras não vê corações”. Neste filme que marca a estreia de Nuno Markl como argumentista de cinema, o mistério é o rastilho do amor.
A dinossaura cor-de-rosa não é a única excentricidade que o humorista imprimiu neste primeiro argumento cinematográfico. Ao longo de duas horas, o ecrã enche-se de fabulosos “produtos da imaginação”, concebidos por quem não consegue controlar o turbilhão de “imagens, ideias e disparates” que, confessa Markl à VISÃO, cruzam constantemente a sua cabeça. Um duo musical que se separa, duas carreiras a solo com destinos diferentes, canções para publicidade, técnicas de engate com carrinhos de compras, supermercados com DJ, assassinos a soldo, amigos imaginários, e Sérgio Godinho e Jorge Palma como atores. Assim se faz uma comédia romântica bem portuguesa, com certeza, mas que, antes de tudo, é uma história de amor, como Nuno gosta de sublinhar. De resto, a ausência de fronteiras entre drama e comédia impôs-se desde o início da sua carreira. Markl lembra-se bem das primeiras apresentações que fez em concursos de ideias. Por entre as explicações de conceitos e inspirações, tantas vezes pensou ele: “Isto parece stand-up comedy.” Mas tratava-se apenas da sua vida reinventada, uma outra forma de lidar com a perda.
Tudo parecia resolvido em 2007. Ao fim de 10 anos, o primeiro casamento de Nuno Markl acabou civilizadamente. Conversaram sobre o assunto, deram o passo decisivo e continuaram amigos. O passado estava “arrumado”. Até ao dia em que ele voltou às compras. Reviver sozinho a rotina quotidiana que sempre cumpriu com a ex-companheira, foi a gota de água. “A ficha caiu finalmente”, recorda. Da solidão e do supermercado, surgiu-lhe uma certeza: “Isto dá um argumento incrível. ” Sobre uma separação amorosa? Não só, mas também. É que, por esses dias, ele andava a ler, para o seu programa O Homem que mordeu o Cão, notícias sobre uma nova ciência: Carrinhologia. Ainda não há estatísticas para convencer os mais céticos, mas os adeptos desta técnica de acasalamento garantem bons resultados: escolher o alvo a partir do conteúdo do carrinho de compras.
Até chegar ao argumento final de Refrigerantes e Canções de Amor, Nuno Markl teve de percorrer muitos corredores. “Era um ponto de partida sem pés nem cabeça”, afirma. Foi então que o seu coração voltou a bater: apaixonou-se. E, mistério, pela radialista Ana Galvão, que sempre viu como alguém envolto num “enorme segredo”. Era a peça que faltava, a metáfora certa: amava-a sem a conhecer. A dinossaura cor-de-rosa entrava em cena.
“A minha vida foi rimando com a evolução desta história”, reconhece Nuno. De tal forma que teve de criar mecanismos de distanciamento. “O filme não podia ser sobre humoristas, seria demais”, brinca. Amante de música, a opção para o guião revelou-se simples: Lucas e Pedro formam um duo musical perfeito, mas decidem separar-se. Pedro, interpretado por João Tempera, segue uma carreira a solo de êxito crescente. Encarnado por Ivo Canelas, Lucas vê-se entregue à publicidade, compondo temas para cereais e refrigerantes. No meio da rivalidade, há Carla (Lúcia Moniz), agente e amante de ambos. Mas, afinal, havia uma dinossaura. E Lucas rende-se.
Woody Allen português
Foi este argumento que Luís Galvão Teles recebeu, há oito anos: o seu entusiasmo foi imediato. Quase a celebrar quatro décadas de cinema (a sua primeira longa-metragem, A Confederação, data de 1978), o realizador e produtor (através da Fado Filmes) estava aberto a novos projetos. Refrigerantes e Canções de Amor ainda teve outras hipóteses para realizador, como o também pianista e argumentista de bd Filipe Melo, mas revelaram-se impossíveis.

Sérgio Godinho
PAULO ALEXANDRINO
Avançou Galvão Teles, com a sua experiência e capacidade de gerir atores de várias gerações, e de cruzar diferentes linguagens cinematográficas, como pedia este argumento. Com incursões na comédia (Dot.com, em 2007), o realizador deixou-se seduzir pelo “humor inteligente e pujante” de Nuno Markl e pelo desafio de transformar em cinema um enredo que oscila entre o real e o imaginário. Também lhe agradou a ideia de, na era das selfies, ter uma atriz escondida dentro de uma dinossaura cor-de-rosa. Nada se mede pelas aparências em Refrigerantes e Canções de Amor.
“Se vivesse na América”, garante Galvão Teles, “Nuno Markl seria seguramente um Woody Allen”. O realizador reconhece-lhe talento e boas ideias. Por isso, diz, à “qualidade” do argumento apenas teve de acrescentar “mais qualidade”. No elenco destacam-se ainda Victoria Guerra, Ruy de Carvalho e Gregório Duvivier, humorista brasileiro da Porta dos Fundos, aqui no papel de outro viciado em supermercados. E Sérgio Godinho, a quem Galvão Teles pediu várias canções e para fazer de assassino profissional. “Só podia ser ele”, garante o realizador. “Um Navalhas que dispara balas.”
O único risco foi deixar para o fim o convite a Jorge Palma. Apaixonado pelo músico, Nuno Markl não hesitou em escrever no argumento que Lucas tinha um amigo imaginário chamado Jorge Palma, ele mesmo, o “artista genial”. Com a rodagem prestes a começar, esta escolha tinha tudo para correr mal. E se ele não aceitasse? Mas a resposta foi calorosa. “Isto é canja”, disse o músico. “Claro que alinho.”
A alinhavar outros enredos, está já Nuno Markl. Sempre quis “experimentar coisas novas”, diz, e, depois desta experiência de oito anos, quer arriscar novos filmes. Até porque, no início deste ano, separou-se da segunda mulher: com ele não há divórcio que não dê “um argumento incrível”.