É um lugar demasiado comum, e bastas vezes provado, esse que nos diz que a realidade ultrapassa sempre a ficção. Mas Don Cheadle não quis (ou quis?) correr riscos no seu filme sobre Miles Davis e decidiu mesmo injetar alguma invenção no retrato que fez de uma das mais lendárias figuras da história do jazz.
Quem chegar a Miles Ahead (estreia-se esta quinta-feira, 14, nas salas portuguesas) com a expectativa de encontrar um biopic mais ou menos clássico sobre (toda) a vida de Miles Davis, arrisca-se a sair desiludido do cinema. Mas é absolutamente injusto acusar Don Cheadle, 51 anos, de não ser fiel à verdade (e ao mito). Para o bem e para o mal, o filme não podia estar mais ligado ao seu nome: Don realizou (é, aliás, a sua estreia na realização), coescreveu o guião, interpretou (excelentemente, diga-se) o papel de Miles Davis e ainda contribuiu para a banda sonora. Talvez ainda mais importante do que tudo isso, lutou para que o filme fosse feito, à sua maneira, numa longa campanha em busca de financiamentos que nem sempre correu bem. “Para conseguirmos financiar este filme, precisávamos de um coprotagonista branco. E até o Ewan [McGregor] aparecer, até contratarmos o coprotagonista branco certo, não havia filme. Isso significa alguma coisa. Isto é a realidade”, disse o realizador norte-americano em entrevista à Rolling Stone, sem medo de pôr o dedo na ferida do racismo.
O escocês Ewan McGregor entra, então, no enredo de Miles Ahead no papel de Dave Brill, um ficcional jornalista que tenta aproximar-se de Miles Davis num momento turbulento da vida do músico, na segunda metade dos anos 70, fora dos palcos e dos estúdios, recluso em sua casa, a lutar com fantasmas e tóxicos excessos. Não deixa de ser irónico que o primeiro grande filme sobre Miles Davis opte por se centrar na fase mais obscura, menos pública e menos musical do ícone do jazz.
Respondendo a uma pergunta sobre os seus feitos e realizações, o trompetista e compositor nascido a 26 de maio de 1926 no Illinois terá respondido: “Bem, acho que mudei a música umas cinco ou seis vezes”. E não estava a ser propriamente exagerado. Faz todo o sentido que a palavra Miles esteja no plural: Miles Davis teve muitas vidas e fases que, fora do contexto, sem as ligações visíveis entre os vários pontos, até parecem incompatíveis, vividas por diferentes pessoas. Don Cheadle não resistiu a espreitar (e interpretar) algumas, em flashbacks que percorrem todo o filme. Como por exemplo aquele momento incrível (e real) em que Miles Davis, no intervalo de um concerto no clube Birdland, em 1959, quando fumava um cigarro no passeio depois de acompanhar uma espectadora a um táxi, foi preso por um polícia branco que simplesmente o mandou circular, sair dali. “Esse momento mudou a minha vida e a minha atitude, tornou-me amargo e cínico outra vez quando eu começava a sentir-me bem e confiante com as coisas que mudavam no meu país”, escreveria Miles Davis na sua autobiografia, publicada em 1989, dois anos antes de morrer. Vemos também a sua relação com a bailarina Frances Taylor (interpretada por Emayatzy Corinealdi), primeiro inspiradora e depois transformada num casamento violento e cheio de traições…
Mas o centro da ação do filme desenvolve-se a partir do momento em que o tal jornalista inventado invade a casa de Miles Davis e, com a promessa de lhe arranjar cocaína de qualidade superior, consegue tornar-se seu cúmplice numa aventura que envolve a recuperação de bobines roubadas com as mais recentes gravações de Miles Davis… Há tiros nos escritórios da Columbia (a editora do músico, outra relação sua que nem sempre foi pacífica), perseguições de automóveis a alta velocidade pelas ruas de Nova Iorque, pancadaria fora do ringue durante um combate de boxe, sangue… Don Cheadle apresenta Miles Davis como uma espécie de gangster alucinado, pedrado, egóico e temerário, quase como uma personagem de Tarantino. O boneco funciona na perfeição, mas… A grande vantagem de Miles Ahead não ser um biopic que nos mostra toda a incrível vida de Miles Davis é que esse filme fica, ainda, por fazer.