Há quem defenda que Hieronymus Bosch não era deste mundo, tão assombrosas eram as visões representadas nos seus quadros, um festim de seres híbridos, demónios sádicos, homens a emergirem de ovos, estranhas criaturas… É uma suspeita que sairá fortalecida de El Bosco, La Exposicíon del V Centenario, retrospetiva histórica, a inaugurar na próxima terça-feira, 31, no Museu do Prado, em Madrid, que reúne mais de 75 % dos tesouros boschianos conservados, entre quadros e desenhos, incluindo As Tentações de Santo Antão. “Obra nuclear, até para os estudos técnicos feitos nos últimos anos: pertence ao top ten de Bosch”, declara José Alberto Seabra Carvalho, diretor-adjunto do Museu Nacional de Arte Antiga, casa deste tríptico desde 1910, quando, a reboque da República, as coleções reais do Palácio das Necessidades (onde se encontrava) foram nacionalizadas. A origem deste Bosch é um mistério. Talvez tenha sido aquisição de D. Luís, há indícios de que o rei queria comprar uma obra que lhe fora proposta na Bélgica. Ou talvez 90% da bibliografia corrente esteja certa: a obra era propriedade do humanista Damião de Góis (1502-1574) que, intimado a provar catolicidade perante a Inquisição, respondeu que tem obras de Bosch, um painel chamado As Tentações de Santo Antão… Mas, diz Seabra Carvalho, não há provas insofismáveis.
A biografia de Bosch é outro enigma arrumado em poucas linhas. Jeroen Anthoniszoon van Aeken (c.1450-1516) nasce numa família artística em Hertogenbosch, Holanda. Filho e irmão de pintores e gravadores de iluminuras, após a morte do pai, o irmão mais velho herda o apelido e Jeroen assume-se Hieronymus Bosch. Ascenderá socialmente, ao casar, em 1480, com a filha de um burguês, e ao ingressar na sua confraria religiosa, a Jieve Vrouwe Broederschap (Confraria de Nossa Senhora) – os documentos religiosos são as escassas pistas existentes sobre a sua vida, vivida na praça central da cidade, entre a elite urbana, na época da invenção da imprensa.
Bosch teve obras em igrejas reputadas e em coleções de arte de nobres, inclusive da elite veneziana. Não se sabe o que leu, ou se viajou pelo mundo. Mas não é o espírito dominado pelas trevas nem o visionário que muitos acreditaram ver. “Bosch não é um herético. Esse lastro foi-lhe dado por certa bibliografia moderna, influenciada pelas vanguardas, e até pelos surrealistas que o acharam uma espécie de protoartista do movimento, com uma pintura que consideraram onírica”, alerta o diretor-adjunto do MNAA. Acrescenta: “Há até uma certa ganga acerca de o artista tomar drogas, ter alucinações de que surgiriam estas imagens estranhas, mas isso é uma fantasia absoluta. Bosch não era mais do que um pintor muito católico e temeroso da morte, um bom cristão que pintava temas místicos com uma força expressiva inigualável. Como diz um monge do século XVII, ele pintava mais os homens por dentro do que por fora. Dava a ver os medos do seu tempo: o inferno e a noção de que o diabo está em toda a parte.”
Há demónios com caldeirões fumegantes, sim, mas há também anjos a transportar eleitos. Sublinha Seabra Carvalho: “Esta é uma pintura profundamente moralista. Considerar Bosch um outsider é um erro: é-o apenas no sentido artístico. Ele pinta o que os outros pintam, apenas de outra maneira. Podemos dizer que o que lá está é delirante, mas faz parte do imaginário da sua época.”
Os séculos XVI e XVII verão imitadores a pintarem infernos à Bosch (literalmente, até à assinatura). Mestres como Brueghel, o Velho, assumirão a sua influência. Surrealistas como Max Ernst evocá-lo-ão. Apocalipses atuais ainda ecoam a sua obra. Quinhentos anos depois, em Madrid, há uma oportunidade única para decifrarmos o velho enigma Bosch.
A joia que (quase) nunca saiu do museu
O grande tríptico As Tentações de Santo Antão (c. 1500), representação do santo assediado por horríficas criaturas que encontra redenção na vida de eremita – e que olha diretamente para nós, observadores –, integra a retrospetiva do Prado como convidado de honra. No último meio século, a obra saiu apenas uma vez do Museu Nacional de Arte Antiga, em 1991, para uma mostra em Washington, por decisão superior do então secretário de Estado da Cultura e contra a opinião dos conservadores