«Ele é muito reservado», «um homem de poucas palavras», «olha que não gosta muito de jornalistas», «não é fácil conseguir uma entrevista com ele», ouvi na redação quando me preparava para entrevistar o escultor Rui Chafes para a revista VISÃO Júnior. Parecia que estavam a falar de outra pessoa. Não aquela a quem eu tinha enviado uma mensagem de voz tão comprida que acabou por ficar incompleta. E que me ligou, assim que ouviu a dita mensagem, depois de regressar de férias. Rui Chafes empenhou-se como ninguém para explicar aos nossos leitores, que têm entre 6 e 14 anos, o que faz um escultor. Convidou-nos para visitarmos o ateliê. O seu santuário, como lhe chama. “Só alguns aqui entram.”
Foi entre a natureza, o silêncio e a tranquilidade da casa onde cresceu, que Rui Chafes nos acolheu. Como quem espera um familiar. Mostrou-nos tudo. A secretária onde desenha. Os desenhos que fazem nascer as esculturas. As rebarbadoras, as máquinas de soldar, de corte, os alicates e berbequins. São muitas as ferramentas que usa para dar forma às gigantescas peças em ferro. Nenhuma das sombras negras se encontrava ali, porque estava numa azáfama a preparar duas exposições. Mesmo assim, esteve connosco quase duas horas.
O seu discurso é pausado, tranquilo, todas as palavras têm uma razão de existir. E somos embalados. Há uma luz e um ritmo próprios. O tempo parece parar.
Aqui fica a entrevista.
Como explica aos seus filhos o que faz no dia-a-dia?
Acho que basicamente há aqui dois níveis de linguagem. Se eu estiver a falar com um filósofo ou um crítico de arte, a minha resposta é completamente diferente. Tenho ideia que faço sombras, não faço esculturas. Mas não vou dizer isso aos miúdos…
Mas acho que pode dizer… Eles podem perceber porque também fazem esse tipo de imaginário…
Eu tenho sempre sonhos, não são só sonhos, penso sempre em formas que não existem na natureza. E eu quero fazê-las. Desenho-as, estou sempre a desenhar formas. E esses desenhos vão sempre servir-me de armazém de ideias para esculturas que eu quero fazer. Essas esculturas têm de ser, para mim – outros escultores têm outra maneira de pensar – formas que não existem na natureza, que existem entre a natureza e o sonho. Não são abstratas, mas também não são cópias da natureza, aquilo a que se chama figurativo. Há escultores que fazem estátuas, um pé, uma mão, um braço. Muitas vezes as pessoas associam a ideia de estátua à escultura. Há muita gente que confunde e diz-me «Rui, gostei muito das tuas estátuas». Eu nunca fiz uma estátua, nem vou fazer. As pessoas associam a escultura a uma figura em pedra num pedestal. É uma ideia que já está ultrapassada, não é válida. As esculturas podem ser objetos de qualquer forma. Até podem ser objetos muito parecidos com os objetos que existem na realidade, ou não, mas, quanto a mim, como não acredito que os objetos tenham muita força, o que eu faço são sombras no espaço.
Onde vai buscar estas sombras?
A coisa mais importante num artista visual, pelo menos é assim que eu vejo, não é saber desenhar, por exemplo. É saber olhar, é saber ver. Um artista visual é um ladrão. Está sempre a roubar imagens do quotidiano, imagens do real, imagens do mundo. É uma ave de rapina que anda pelo mundo a olhar e rouba imagens. Rouba uma dobra de um braço, rouba um cabelo, rouba um ombro, rouba uma nuvem. E é a partir desse armazém de imagens roubadas ao mundo que o artista visual cria.
Essas imagens vêm mais do exterior do que do seu interior?
São roubadas ao exterior mas depois crescem, germinam no interior. É como uma semente que germina. É colocada na terra, regada e germina.
E para quê? O que o move?
Para nada. Não tenho nada a dizer nem tenho uma mensagem a transmitir. É uma arte para nada. Mas porque o faço? Por necessidade. Só consigo viver se tiver este trabalho. Tenho uma necessidade de fazer os desenhos e as esculturas porque é a minha vida, é o que eu sei fazer. Cada pessoa deve fazer aquilo que sabe fazer. Pode ser fazer contas, como pode ser estudar ciência, como pode ser fazer pontes, escrever poemas ou fazer música, ou matemática… As pessoas deveriam ser movidas pela necessidade interior e não por coisas que são impostas exteriormente. Um dos grandes problemas das escolhas das crianças é a questão de pensar numa profissão ou num trabalho, que são coisas diferentes. Uma profissão é um trabalho com um objetivo, uma remuneração, um horário. O trabalho não tem objetivo nem é sempre uma profissão, é uma atividade que a pessoa faz porque é essa a sua natureza. E a minha natureza é fazer esculturas em ferro.
Como descobriu que era essa a sua natureza?
Em criança estava sempre a fazer desenhos. Depois, por volta dos 14, 15 anos, não sabia o que queria fazer e decidi ser veterinário. Felizmente não fui para veterinário porque ia ser péssimo. E, como estava sempre a desenhar, comecei a acreditar que o que eu queria mesmo fazer era desenhar e fazer arte. Talvez com 18 anos, percebi que para além de desenhar, eu queria era fazer esculturas. Muito rapidamente, depois de ter feito esculturas em madeira, pedra, plástico, em canas, experimentei muitos materiais, percebi que a minha linguagem precisava do ferro e do fogo e das máquinas, do barulho, da violência e do corte, dos martelos. Mas fui percebendo, não foi uma coisa imediata. Fui ouvindo qual era o meu caminho. Quando ouvimos a voz dos outros e essa voz está a dizer-nos o que devemos fazer, já estamos errados. Devemos ouvir o que nos dizem, claro, mas sobretudo ouvirmos a nossa voz. Claro que há crianças ou adolescentes ou jovens que demoram mais tempo do que outros a perceber o que querem fazer. Começam por querer ser astronautas e acabam por ser outra coisa qualquer, mas pelo contrário há crianças/adolescentes que percebem logo. Não há nenhuma regra. O essencial é sabermos que tem de ser a nossa voz a guiar-nos. E se fizermos aquilo que gostamos e formos bons nisso, está tudo certo.
O que lhe deu força para ouvir a sua voz?
Uma coisa muito importante: o tédio. É essencial, o aborrecimento, o tédio, o silêncio para batermos com a cabeça nas paredes e começarmos a ouvir o que queremos dizer-nos. Um dos grandes problemas hoje é que as pessoas, os jovens e as crianças andam numa corrida com mil atividades. A maior parte das crianças tem uma lista de atividades desde a ginástica, ao ballett, à natação, violino… tudo e não têm tempo para não fazer nada. E isso, ou seja, parar a corrida que os pais impõem, que a sociedade nos impõe é muito importante para conseguirmos ouvir a nossa voz. Eu acho que tinha muito tempo, os meus pais não me impuseram nada. A minha mãe, sobretudo, ficou em pânico quando soube que eu queria ir para artes… Ainda me lembro de a minha mãe dizer: «Tens de ter uma profissão, senão vais morrer de fome». Mas foram impecáveis. Não só não impuseram, como me apoiaram nas decisões, que é o que os pais podem fazer, mesmo que lhes meta medo. E lentamente dediquei-me àquilo que a minha voz me dizia e correu tudo bem.
Então, pode dizer-se que o que faz hoje é um sonho de criança tornado realidade?
É. E no meu caso, ainda há outra coisa muito interessante e de certa forma rara: aqui, no sítio onde hoje tenho o ateliê, é a minha casa de infância. Eu continuo no mesmo sítio, não me mexi um centímetro. Estou onde sempre estive. Antes brincava aqui e agora brinco com brinquedos maiores.
E que vão daqui para todo o mundo…
Para todo o mundo. Este jardim foi plantado pelo meu pai. Fisicamente estou no ninho. A maior parte das pessoas muda de casa, de cidade, de país. A maior parte dos artistas trabalham em ateliês alugados ou comprados e eu tenho este privilégio de trabalhar na casa onde cresci. É muito raro e nunca fiz uma escultura fora daqui. Todas as esculturas foram feitas aqui. A peça que está na Avenida da Liberdade tem 5 metros e foi feita aqui, na horizontal. Eu nunca vejo as peças muito grandes na vertical, só quando vão para a indústria, para as oficinas, para as fábricas que trabalham comigo é que eles as colocam na vertical para serem pintadas e eu vejo que está tudo certo. Aí vejo pela primeira vez aquilo que fiz aqui durante meses na horizontal. Posso trabalhar uns dois meses numa peça grande.
Qual é a sensação ao criar uma escultura dessas?
É emocionante porque estás a intervir no mundo e a trazer coisas que não existiam e formas absolutamente inúteis, que não servem para nada, porque a arte não serve para nada, não tem qualquer função nem utilidade. É uma atividade completamente inútil e é esse o seu valor. Não é um bem de consumo, independentemente de ser ou nao vendida, não é um pão, um prato de sopa ou um sapato. Isto é a maneira como eu vejo, há artistas que discordam completamente. Há artistas que acham que a arte tem uma intervenção social ou política ou que pode documentar a ecologia e a guerra. Para mim é a procura de uma beleza e de uma sombra, de uma intuição sombria interna que é o seu valor único. Não há outro.
Trabalha no terreno da imaginação, mas tem de ter um bom suporte técnico para concretizar as suas esculturas…
Sim. Eu quase sempre sigo um horário de operário. Entro de manhã, páro para almoçar e depois pego de novo às duas, duas e meia. Porquê? Porque quando estou a trabalhar com a indústria, esse é o horário deles, é essa a disciplina deles e eu não posso estar de pijama até às três da tarde e ter uma ideia às quatro, porque depois não tenho ninguém para receber as peças e não posso fazer barulho à noite. O meu dia-a-dia é o de um operário. Visto o fato-de-macaco e cumpro os horários. Sou operário de mim mesmo, não tenho patrão nem colegas. E cozinho aqui na casa.
Onde gosta mais de ver as suas peças depois de prontas?
Gosto de vê-las nos sítios para os quais foram feitas. Há peças que podem ir para qualquer sítio e muito mais abertas ao mundo e há outras peças, que são as que eu prefiro, que são feitas para sítios específicos – seja uma arquitetura, um espaço natural, um parque, uma floresta, uma gruta, uma igreja, uma montanha, uma encosta, uma praia. São peças que já nascem com um destino.
Já nascem com pais, com uma casa.
É, com pais e uma casa, para não serem orfãs. As outras são peças muito nómadas, que tanto podem estar aqui como ali…. Mudam de sítio, de luz, de calor, de frio e de mãos.