Escala-se a Rua da Alegria, olhos postos na Mãe de Água, até à porta vetusta, o átrio fresco de losangos pretos e brancos, os degraus largos de madeira gastos pelo tempo. Lá fora, ouve-se Lisboa. Lá em cima, vêem-se os telhados fotogénicos, os pátios secretos, a nesga de rio. Nuno Teotónio Pereira aponta-o com evidente prazer, da janela da cozinha revestida de antigos azulejos azuis, e cheia de rolos de papel, projectos e arquivos. Há mais de 40 anos que ali está instalado o seu famoso ateliê, tema da exposição Arquitectura e Cidadania: Atelier Nuno Teotónio Pereira. Todos os dias o arquitecto lisboeta de 82 anos sobe a este 3.º andar para trabalhar.
«Há um culto exagerado daquilo a que eu chamo o estrelato da arquitectura, que sofre do mesmo mal que a televisão: o excesso de espectáculo», diz calmamente Nuno Teotónio Pereira (NTP, como é chamado no ateliê). E acrescenta: «É preciso dar mais atenção à cidade. O espaço público deve ser valorizado, mais vivido, com melhor qualidade, e os edifícios têm um papel importante a desempenhar.» É o pretexto certo para se falar da capital. «Quando se fala de Lisboa, não pode falar-se só da cidade. Lisboa, hoje, é a periferia toda.» O arquitecto denuncia a falta de meios, de dinheiro, de vontades. Oferece soluções, alerta para o perigo das multinacionais, preocupa-se. «Não podemos baixar os braços.» É tudo o que ele não tem feito.
Arquitectura espectacular, eu?
Quem crê que a arquitectura é sinónimo de edifícios mediáticos corre o risco de passar ao lado de uma obra longa e considerada notável. Várias vezes vencedor do Prémio Valmor (e actual membro do seu júri) e de outros galardões, NTP foi presidente do conselho de delegados da Associação dos Arquitectos Portugueses (de 1990 a 1993), recebeu a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade em 1994, foi doutorado honoris causa pela Universidade do Porto em 2003. Participou ainda no Inquérito à Arquitectura Regional Portuguesa impulsionado em 1956 por Keil do Amaral, no qual se baseou o livro A Arquitectura Popular em Portugal, e a sua biografia confunde-se com a da história da arquitectura portuguesa da segunda metade do século XX: pela obra feita, pelos nomes que com ele trabalharam, pela energia que ia muito além do estirador. De entre as obras do ateliê, contam-se: o Bloco das Águas Livres, em Lisboa (em colaboração com Bartolomeu Costa Cabral, 1961), com que obteve o 2.º Prémio Nacional de Arquitectura da Fundação Gulbenkian; os bairros Olivais Norte I (em parceria com Nuno Portas e António Pinto de Freitas), Prémio Valmor em 1968; a Igreja do Sagrado Coração de Jesus (em parceria com Nuno Portas e colaboração de Vasco Lobo, Vítor Figueiredo, Pedro Vieira de Almeida e outros), Prémio Valmor de 1975; o edifício comercial na Rua Castilho, em Lisboa, mais conhecido por Franjinhas (com colaboração de J. Braula Reis, em 1965), a que foi atribuído o Valmor relativo a 1971 mas só entregue em 1975, quando o arquitecto modernista é libertado da prisão.
A lista continua num rosário de betão e pedra: a Igreja de Águas (Penamacor); o Mosteiro de Santa Maria do Mar (Sassoeiros, 1959), com Nuno Portas e Pedro Vieira de Almeida. E conjuntos habitacionais, incluindo casas de renda económica em Barcelos ou Trancoso (1960, com Duarte Nuno Simões) ou Castelo Branco (64); as moradias na Praia das Maçãs, Sintra e Vila Viçosa (com Nuno Portas, em 1968); Laveiras (1987), com Pedro Viana Botelho, Prémio INH 1992. Ou ainda os projectos recentes para a estação de metro do Cais do Sodré.
Fora do canteiro de obras, NTP nunca se coibiu de dar opiniões, escrever artigos (actividade iniciada em 1944 na revista Técnica), enfrentar poderes e participar em polémicas. A última tem a ver com a actual construção do Túnel do Marquês, na capital. Os seus argumentos são os de sempre: a coisa social, o bem-estar da comunidade, a arquitectura pensada em continuidade.
Mundo de aventuras
«Com o Museu Guggenheim de Bilbau, por exemplo, (Frank) Gehry pôs uma cidade na arquitectura do mundo! Nós apresentamos obras que vêm até hoje e permitem-nos reconstituir um percurso. O NTP talvez seja dos arquitectos portugueses em quem mais encontramos um percurso coerente, um trabalho sobre o espaço público e a dignificação da coisa pública», defende a arquitecta e comissária científica da exposição Ana Tostões. E acrescenta: «O seu ateliê foi um dos responsáveis pela conquista de uma contemporaneidade a par do que se fazia a nível internacional. Uma geração pós-Duarte Pacheco, que se afirma no Congresso da fundação da União Internacional dos Arquitectos, de 1948. Fernando Távora, por um lado, e NTP, por outro, nunca perderam a noção da importância da ligação às tradições: assumem de forma clara a possibilidade de ser moderno sem esquecer as raízes. É esse pot-pourri que permite grande liberdade de actuação a nível dos projectos, da releitura de materiais, e daí dar o salto para a contemporaneidade.»
NTP estava atento. Ficara impressionado com o catálogo da exposição Brazil Builds Architecture New and Old, 1652-1942 (que estivera no MOMA, em Nova Iorque), oferecido por um tio em 1945. Às voltas com um projecto para uma igreja, escreve a Oscar Niemeyer. A carta é devolvida. Erro de endereço. Anos mais tarde, Helena Roseta faria chegar a missiva às mãos do criador de Brasília.
NTP aponta os seus tesouros de parede. Um poster de uma exposição de Victor Palla, uma foto sua ao lado de Nuno Por-tas. Doze anos mais novo que NTP, este entra no ateliê em 1957. Trabalhariam juntos cerca de 17 anos. «O ateliê», lem-bra, «era fundamentalmente um local de discussão laboral. A questão da autoria não se punha. Ninguém saía de lá por falta de liberdade criativa; talvez mais por problemas de tesouraria.» Mas o primeiro destino dos vencimentos de NTP eram os salários dos seus colaboradores.
Os projectos ainda o desafiam, fazem-no levantar-se de noite para apontar ideias. Mas desmente a ideia de jovem precoce e futuro arquitecto de caderno na mão. «O que me marcou foram as viagens de comboio que fiz por Portugal inteiro, com o meu pai, vendo as paisagens, falando com as pessoas.» A vocação de geógrafo ficou adiada. NTP mostra algum desassossego com os elogios. Passa a mão repetidamente pelos cabelos, hesita, acaba a dizer que «estar com os outros é sempre muito gratificante; embora não seja um grande conversador, sou mais um bom ouvinte, sim.» Espírito metódico, sóbrio e perse-verante, homem de grandes convicções que não se coíbe de as expressar são definições dadas por quem o conhece. «Conhecer bem o Nuno é impossível: é reservado, sério», diz Ana Tostões. E recorda-se ainda hoje da primeira gargalhada sonora que o ouviu dar: «Em 1993 visitei a Igreja de Águas. No supermercado vi uma série de pratos ilustrados com o nosso património. Num deles estava a Igreja de Águas. Comprei três pratos e levei um ao NTP. Acho que ele se sentiu muito satisfeito por estar integrado na colectividade.» Gonçalo Ribeiro Telles é outro dos que não poupam elogios a NTP. Frequenta-dores dos mesmos cafés e círculos académicos e católicos, recorda-se de o ver no Chiado, de máquina fotográfica em punho, a andar ao contrário para captar a vida do sítio. «O Nuno praticava um cristianismo com grande autenticidade. Tinha um grande empenho social, virado para o humanismo. Viveu com uma grande inteireza e não tirou partido de vítima de tudo quanto passou.»
Passos e prisões
Segundo dos seis filhos de Luís e Alice, nascido Theotónio com um «h» que deixa cair em 1942, NTP faria os seus estudos no Liceu Pedro Nunes. Em 1936, depois de Salazar ser nomeado presidente do conselho, inscreve-se como voluntário na Mocidade Portuguesa e viaja a Espanha em missão de apoio ao exército franquista. «Sempre gostei muito de actividades de grupo», diz, entre a ironia e a verdade. Entra para a Escola de Belas-Artes, tendo como colegas Manuel Tainha ou Carlos Manuel Ramos, e como professores Cristino da Silva e Leopoldo de Almeida. Terminado o curso de Arquitectura em 1949, com 18 valores, surge o primeiro ateliê na Rua Rodrigo da Fon-seca, com Chorão Ramalho, Alzina de Menezes e Manuel Tainha. NTP torna-se o sócio n.º 132 do Sindicato Nacional dos Arquitectos. Em 1957 muda-se para um rés-do-chão da Rua da Alegria. Cinco anos depois descobre o actual ateliê. Outras causas se trabalhavam também aí. «Ele trabalhava de manhã na Federação de Caixas de Previdência (teve esse emprego durante 20 anos), estava no ateliê à tarde, à noite fazia-se sub-versão», descreve Nuno Portas. «Ele achava que não era altura para fazer coisas, era altura de fazer a revolução.» Nuno foi co-fundador e dirigente do MRAR (Movimento de Renovação da Arte Religiosa). Em 1958 apoiou a campanha de Humberto Delgado para a presidência da República, subscrevendo manifestos de católicos contra a ditadura. Foi co-fundador da publicação clandestina Direito à Informação (1963-1969). «Inventávamos estratagemas para a PIDE não a detectar, colocando-a em envelopes de empresas e distribuindo-a por vários pontos do País», conta NTP.
Em 1972, participa na vigília da capela do Rato, tendo sido detido pela PIDE. Em Novembro de 1973 é novamente preso, e só seria libertado da prisão de Caxias na noite de 26 para 27 de Abril de 1974… Preso em regime de confinamento solitário, sujeito à tortura do sono, faz esquissos em formato A4 com feltros e tinta-da-china.
Laços de família
Nenhum dos três filhos (Luísa, 53 anos, Miguel, 49 e Helena, 47) seguiram Arquitectura. Miguel Teotónio Pereira vive na casa velha de mais de 400 anos que os pais compraram em 1966 num sítio remoto do Marvão que serviu de quartel-general para expedições clandestinas ao «lado» espanhol. Lá repousa ainda uma colecção do «subversivo» Comércio do Funchal, impresso em papel cor-de-rosa. O filho lembra-se de aprender com o pai um lema para a vida: «Miguel, quando se faz uma coisa, ela deve ser bem feita.» E garante que o pai «com um bocado de papel e uma lapiseira faz milagres.» Outros hábitos revelados? Cultor intransigente da sesta curta e intensa, praticada sentado; fumador persistente, sempre sem filtro.
NTP casou em 1951 com Maria Natália Duarte Silva, uma jovem divorciada e ateia que morreria aos 40 anos no parto da quarta filha, Catarina. Hoje está casado com a escultora Irene Buarque, brasileira fugida à ditadura militar e radicada em Portugal há 30 anos, sua colaboradora em vários projectos. São descritos como parceiros de canoagem e acampamento, bons anfitriões dos amigos e de um círculo ligado às artes, que desagua na casa na Atalaia, perto do Cabo da Roca.
Pendurados na parede do ateliê estão agora imagens do Plano de Mobilidade Pedonal da Covilhã, em que NTP trabalha. Falta de mobilidade é a sua queixa: depois da operação ao joelho no ano passado, a sua companhia permanente é uma leve bengala e o carro substituiu as viagens de metro de que gostava.
Jorge Sampaio, amigo de longa data, quando foi presidente da Câmara de Lisboa queria fazer esta exposição. NTP disse: «Nunca a minha antes da do Keil do Amaral!» Assim foi: Keil teve exposição em 1999-2000. Mesmo assim, NTP solta um queixume de tímido: «Tantas canseiras, tantas trabalheiras…»