Ele tem uma tatuagem visível na mão esquerda, um código composto por letras e traços carimbado entre o polegar e o indicador. O significado é um segredo que não partilha. «Todas as tatuagens são uma história. Ou melhor, são uma história que não queremos esquecer», concede o sempre reservado escultor. Mas o verdadeiro mistério das mãos de Rui Chafes, 47 anos, é a sua contenção nos gestos.
Uma delicadeza inesperada em alguém que se entrega ao sacerdócio da conversão de metal pesado. «Ferreiro», muitas vezes o designam assim nos artigos de jornal. «Eu gosto desse termo», admite Chafes, nome maior da arte contemporânea portuguesa, presença habitual no circuito internacional.
Além das mostras patentes em latitudes tão diferentes como Madrid, Malta, Dubai, e de uma individual a ser preparada para Dusseldorf, o «ferreiro» junta agora, em Lisboa, os resultados de cerca de duas décadas e meia de produção (a que acrescentou quatro novas peças) a esculpir, a moldar, a torcer e retorcer entranhas de ferro negro. O Peso do Paraíso, comissariada por Isabel Carlos, e apresentada no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian (CAM) é a sua primeira antológica patente em Portugal, depois de o artista já ter tido várias mostras extensas, dedicadas ao seu trabalho, em vários países (como foi o caso de Carne Misteriosa, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 2013).
Esta é uma «paisagem» reconhecível até para os mais desatentos: os trabalhos do escultor têm uma fortíssima identidade visual e material, mesmo quando oscilam entre a grande e a pequena escala mesmo quando são instalados em lugares distantes dos cubos brancos dos museus e galerias, tão diferentes entre si como igrejas, florestas ou avenidas urbanas (quem nunca reparou em Eu Sou Como Tu, escultura de ferro forjado com seis metros de altura e cerca de uma tonelada de peso, instalada num passeio da Avenida da Liberdade, em Lisboa?).
No CAM, tudo começa com o trabalho mais antigo presente na mostra, exposto no átrio: o voo interrompido de um pássaro de ferro, as asas esticadas e a cabeça oculta na parede (Aurora, 1989). Mas a cronologia não é o critério dominante da exposição: por perto, está o emaranhado gigante de Was Erschreckt Dich So? (2008-2009) a que Chafes chamará «o caracol de cabelo enlouquecido». A seguir, arruma-se a floresta de Lições de Trevas (1992-2002), multidão de totens pela primeira vez apresentados no País. Já dentro da nave, observam-se esferas densas que desafiam a gravidade, tentáculos serpenteantes junto das paredes, criações em malha de ferro, sombras e espetros…
Alguns, debruçam-se para o jardim exterior: A História da Minha Alma (2004), procissão de bancos negros dispostos como animais em fuga que aparentam atravessar a janela da sala e precipitar-se no lago adjacente.
E The Forbidden Sea Is Calling You põe uma onda sobre a relva… «A exposição foi pensada em torno de tensões e paradoxos presentes na obra do Rui: peso e leveza, baixo e cima, céu e terra, densidade e fragilidade, físico e espiritual, corpo e botânica, dentro e fora…», interpreta a curadora Isabel Carlos.
«Penso na exposição como uma peça musical em que, no fim, todas as notas estão certas», descreve Chafes.
Enigmas e epifanias
Olhando para trás, esta descrição também se poderia aplicar ao percurso do próprio Chafes: uma única frase proferida por um, então, estranho colocou em andamento um dominó insuspeito e arrumou todas as peças no lugar certo. Adolescente com gosto pelo desenho e pela escrita, acabaria por tomar a decisão profissional mais importante da sua vida numa noite tempestuosa.
Um amigo levou-o a conhecer o filho de Almada Negreiros, o arquiteto José Almada Negreiros, que lhe assegurou que ele era «um escultor». Chafes acatou esta opinião como uma epifania. «Eu saí dali e obedeci, fui ser escultor. Nunca mais pus tal em causa », recorda. Mais à frente na conversa, dirá isto, a propósito da relação entre a espiritualidade e as emanações mais violentas das suas sobras: «Sou completamente isento de intenções e livre. Oiço uma voz superior que me diz ‘agora faz assim, agora vira’.
Nunca desconfio das vozes superiores.» E, para acender mais uma acha, declarará ainda: «Acredito na arte como um deus.» Os seus altares são negros, rigorosos, latentes. O ferro, enquanto matéria prima preferencial, foi a descoberta seguinte; quando estudava Escultura, na Escola Superior de Belas-Artes, Rui ainda se deixou tentar por outros materiais, mais ou menos convencionais. Fez experiências, por exemplo, com madeira e com pedra. Mas o ferro ocupou definitivamente o lugar central da sua produção artística ainda que o desenho também tenha conquistado um lugar importante, e que a palavra (nos misteriosos títulos das suas esculturas, por exemplo) seja uma bússola essencial neste corpo de trabalho.
A mãe, ligada à matemática, ajudá-lo-ia numa das empreitadas maiores da sua vida: a tradução para português de Fragmentos de Novalis (Assírio & Alvim, 2000) do poeta e filósofo alemão que viveu entre 1772 e 1801, de que resultou um livro a que o escultor juntou desenhos da sua autoria. «Eu queria fazer essa escultura de palavras, que era sentar-me a uma mesa, durante meses, a transpor palavras do alemão para o português.
É um exercício escultórico. A tradução é uma atividade maravilhosa, fascinante, de precisão e rigor. E queria, também, partilhar Novalis, cuja única tradução existente era a que o poeta [Mário] Cesariny tinha feito a partir do espanhol. Apesar de Cesariny ser um absoluto génio, essas já eram palavras em segunda mão…», declara.
A viver então na cidade alemã de Dusseldorf, Rui iniciou uma aventura que durou meses: escrevia a tradução a caneta, enviava-a por correio para a mãe que o ajudava a rever o português e a fazê-la seguir para [o então editor da Assírio & Alvim e também escultor] Manuel Rosa, e, por fim, o texto regressava à Alemanha em envelopes.
«Guardei o manuscrito dos Fragmentos porque parece que isto foi há muito tempo mas, na verdade, em 1992 era assim que se faziam traduções com esferográfica e papel», recorda.
Cultura alemã
O romantismo alemão é uma das influências habitualmente apontadas à obra de Rui Chafes, e o escultor permanece fortemente ligado àquele país, aí fazendo exposições regulares. «A relação com a Alemanha e a língua alemã é muito intensa, apaixonada, e foi-se desenvolvendo ao longo dos anos quer através das leituras dos filósofos e escritores alemães, quer através do cinema », especifica. Os ciclos de cinema germânico, na Cinemateca, desempenharam um papel fundamental na formação do jovem Chafes. «As pessoas, às vezes, encontram a sua casa que tanto pode ser uma luz, como uma pessoa, ou uma língua… Eu encontrei a minha casa na língua, nos seus pensamentos e palavras alemães. É a mais bela língua do mundo: geométrica, lógica, cristalina, precisa, clara. Essa mesma precisão faz parte da minha natureza», declara.
A reserva face à vida pessoal é cultivada. Pai de três filhos, sobre a sua própria infância, diz, lapidar: «Nunca tive infância, já nasci assim.» Mas descreve-se como «um filho da música e da matemática», por razões óbvias: a mãe domina a língua portuguesa e a matemática, o pai pertence à música.
«A minha mãe diz sempre que a matemática é a música da razão e a música é a matemática dos sentidos.» O ateliê de Rui Chafes fica situado nas traseiras da casa de férias da família, no Guincho. «Continuo a brincar, mas com brinquedos maiores», diz. É um lugar no campo, rodeado de árvores e silêncio. «Às vezes, quando chove, paro de trabalhar e fico lá sentado a ouvir a chuva. Como para qualquer artista, o ateliê é o centro do mundo », descreve. Nesse território, a solidão é necessária: «O ateliê é um espaço, não digo secreto, porque não está escondido debaixo da terra, mas extremamente privado, e onde não vai quase ninguém. É um lugar só meu, onde trabalho sozinho», conta.
É aí que solda, corta, trabalha o ferro. As peças pequenas são feitas por ele próprio; nas obras maiores pode contar com a ajuda de uma equipa de técnicos que com ele trabalha há mais de 20 anos (o senhor Venâncio, o Mário João, o Rui…). É também aí que, dentro de grandes recipientes de ferro, faz regularmente os seus momentos Fahreneit, queimando tudo o que escreveu em cadernos e folhas soltas, em papéis grandes e pequenos.
«O fogo dá-me felicidade», atira.
Mais tarde, enunciará uma trindade preferida: «O ferro, o fogo, a palavra.» «O ateliê nasce na cabeça, e manifesta-se nos desenhos. Estou sempre a fazer desenhos.
[Tira do bolso e mostra uma série de pequenos papéis amarrotados e garatujados].
Em papelinhos. Caderninhos não gosto, é uma coisa burguesa. Gosto dos fragmentos, e gosto de os queimar. Gosto mais do fogo do que das palavras lá escritas. É a minha piromania conceptual», esclarece.
Aliás, as caixas de aço seladas onde guarda, depois, as cinzas dos escritos queimados, tornaram-se, também, uma obra de arte, já exposta.
Silêncios
De regresso às paredes do CAM, Rui Chafes explica que a obra O Peso do Paraíso foi pensada como um percurso, balizado entre dois momentos de som: a instalação imagética do realizador Pedro Costa e a «aranha», criada em colaboração com a artista irlandesa Orla Barry, em cantos opostos da galeria. A meio, o «grande silêncio» das fotografias de Paulo Nozolino, que ecoam todo o silêncio da exposição antológica.
«Esta é uma ocasião para testar se o enigma ainda se mantém pelo menos para mim», diz o escultor. A resposta parece ser positiva.
«Passado este tempo, vi peças que continuo sem compreender: elas continuam a resistir-me.
Essa resistência que as obras oferecem ao seu próprio autor é também uma medida da sua qualidade; as peças que se deixam explicar não têm uma vida longa», declara. Há ainda tempo para outra frase surpreendente: «Eu acredito que as esculturas são feitas pelas pessoas e não por mim, elas completam-nas. Esse é o meu ponto de partida, sou um mero servidor das pessoas.» Isabel Carlos sublinha que, por vezes, não é suficientemente lembrado que a obra de Rui Chafes tem um lado «orgânico, físico, de muito corpo» e aponta as botas femininas gigantes, expostas como um exemplo de que há mais mundos para além dos clichés repetidos sobre a obra do artista.