Miguel Araújo, 37 anos, andava a tratar a sinusite em Penafiel. António Zambujo, 40, ainda tinha a mão inchada, porque tinha tirado o gesso há pouco tempo. Agenda médica à parte, os dois músicos conseguiram encontrar-se num hotel no Parque das Nações, em Lisboa, ao princípio da noite. António foi buscar o amigo do Porto ao comboio e depois levou-o ao sushi. Em cima da mesa da entrevista estiveram sempre os dez concertos (entretanto já passaram a treze, doze das quais já esgotados) que vão dar nos coliseus em fevereiro – também foram o mote para irmos mais longe na conversa.
Não podendo começar pela pergunta da praxe (“para quando o Coliseu?”), porque já os esgotaram em nome próprio e agora em conjunto, resta saber para quando o Scala de Milão?
António Zambujo: Por acaso estamos a pensar internacionalizar isto para alguns sítios onde já toquei e o Miguel era suposto ter ido, como o Brasil ou França.
Lá fora, o público é só português?
AZ: Quando comecei a ir a França, em 2007, e ainda nem tocava cá, havia muito poucos portugueses na plateia. Os nossos artistas funcionam bem lá fora quando já têm sucesso em Portugal. Pelo menos comigo funcionou assim. O que achas?
Miguel Araújo: Fui a Macau e havia muitos portugueses. No Luxemburgo, curiosamente, não eram assim tantos até falei em inglês nesse espetáculo. O sítio com mais estrangeiros no público foi a cem quilómetros de casa, na Galiza. Eles adoram a nossa música: entrei numa loja e estava a tocar Ana Moura e num restaurante estava dar uma música dele.
A vossa música vive muito da letra, dos trocadilhos. Pode ser estranho haver quem não fale português nos espetáculos…
MA: Não se pode dizer no “nosso caso”, porque somos músicos diferentes. Ouvindo o primeiro disco da minha banda [Os Azeitonas] e o primeiro disco do Zambujo ninguém diria que somos do mesmo planeta.
Se alguém andar pelo o YouTube a ouvir uma música do António Zambujo, por exemplo, aparece ao lado uma sugestão para o Miguel Araújo e às vezes até a cantarem o mesmo tema…
MA: É da barba. [risos]
AZ: Já fomos confundidos umas quantas vezes.
MA: Para mim o auge dessa confusão aconteceu nos últimos Globos de Ouro, em que o António ganhou e até partilhou o prémio comigo, muito gentilmente. A pessoa que estava à porta a ver os convites quis despachar serviço e disse logo para o colega do lado: “António Zambujo”. E eu avisei: “Desculpe, eu sou o Miguel.” E ele, muito despachado: “Ah, sim, Miguel Zambujo!” [risos]
AZ: Noutro dia fui ao hospital para tratar de uma dor nas costas e estava lá uma enfermeira que meteu conversa comigo e falámos dos concertos e das canções. Antes de eu ir embora disse-me: “Aquela música dos Maridos das Outras não faz sentido nenhum.”
MA: A principal razão para termos marcado estes concertos é para mostrarmos que somos duas pessoas diferentes.
Onde nasceu a vossa amizade, que já dura há 15 anos?
MA: Num bar em Lisboa, da mãe do João Pedro Ruela, que já foi meu manager e do Zambujo, em momentos diferentes.
AZ: É o Berimbar, na Lapa, onde a malta do fado se encontra muito no fim dos concertos. Só abre à meia-noite e pode comer-se uma feijoada às cinco da manhã.
MA: Tinha vindo a Lisboa com uns amigos, com uma guitarra portuguesa (estava a aprender a tocar na altura) e violas para nos imiscuirmos na cena do fado. Logo na primeira ou segunda noite conhecemos o Zambujo. Ele fazia parte do musical Amália, do La Féria, e convidou-nos para ir ao espetáculo na noite seguinte.
AZ: Depois do musical fomos ao restaurante do Carlos Veríssimo, lembras-te? Era o Pecado da Gula, na rua da Misericórdia. Ficámos até de manhã, a tocar e também estava lá a Mariza.
MA: Mas ela já tinha uma aura de meter medo. Já brilhava no escuro. [risos]
Não é a primeira vez que sobem juntos ao palco dos coliseus. Convidaram-se mutuamente quando foram os vossos concertos a solo. Calculo que ainda não tenham pensado muito no espetáculo, mas qual será a diferença em fevereiro?
MA: Não há muito para ensaiar – será um concerto com duas cadeiras, voz e guitarra.
AZ: No ano passado convidaram-nos para ir ao festival de storytelling, no São Jorge, e foi uma experiência ótima. Cada um com a sua guitarrinha, contámos histórias e tocámos. A sala estava cheia e houve muita interação com o público.
MA: Quando era mais novo, numa certa noite em casa da minha avó, apareceu o Rui Veloso. Senti que estava a ter acesso a uma coisa incrível. Desde que eu e o Zambujo nos conhecemos, já aconteceram incontáveis noites dessas e nota-se que as pessoas começam a telefonar a amigos e às tantas somos mais de 20 pessoas. Com este espetáculo, convidamos toda a gente para uma sessão destas.
Não temem que esse registo intimista se perca numa sala como o Coliseu?
MA: We are trained professionals. Agora a sério, podíamos ir para um sítio mais pequenino, mas teríamos de começar já e só acabávamos em 2017.
AZ: Um concerto de voz e guitarra é a essência das nossas músicas e onde elas se encontram.
Como explicam este fenómeno de esgotarem coliseus em catadupa?
MA: Não tem explicação. É surreal.
AZ: A última data em Lisboa esgotou-se em três ou quatro horas. Não faz sentido nenhum.
Não sei se já repararam que os vossos nomes rimam? Será um entrave se um dia quiserem gravar um disco…
AZ: O Nuno Markl chama-nos os Ujos…
MA: Vamos gravar os concertos todos. Logo se verá se chegaremos a lançar algum disco.
Já atingiram ouros e platinas…
AZ: Eu só tenho platinas. Tenho problemas a nível ortopédico e preciso de muita platina.
MA: E eu só tenho ouros. Toma!
Mas apesar disso, o dinheiro vem quase todo dos concertos, certo?
AZ: Quase exclusivamente.
MA: Longe vão os tempos em que os Beatles se davam ao luxo de não tocar. Só deram concertos de 1962 a 1966.
AZ: Hoje vão aparecendo novas plataformas que nos permitem fazer outra gestão da carreira.
Que plataformas?
MA: A rentabilidade através do YouTube, por exemplo. Mas as editoras não sabem ainda como olhar para isto. Ouve-se dizer que há gente que ganha não sei quantos milhões só com partilhas de vídeos, mas até parece uma coisa meia clandestina. Só que acende-se uma centelhazinha para o futuro. Artisticamente, tocar ao vivo devia ser uma opção. Antigamente, os artistas decidiam quando fazer digressões e quando descansar.
AZ: É uma pressão grande, até do ponto de vista criativo. Temos de estar em permanente criação, para editar discos uns atrás dos outros e continuar a alimentar concertos.
Quantos concertos já deram este ano?
MA: Noventa e tal.
AZ: Eu dei cento e tal.
Têm o privilégio de viver da música, apesar dos percursos completamente diferentes. Que conselhos dariam aos novos talentos, alguns deles a saírem dos concursos televisivos?
AZ e MA: Um bom conselho é não irem a esses concursos.
MA: A arte não é para se disputar.
Mas o António Zambujo ganhou um concurso…
AZ: Ah, mas isso foi quando tinha 16 anos e fui quase empurrado.
MA: Aconselho a que sejam apaixonados por música de uma forma obsessiva e doentia, fazendo ritmos em cima de mesas como se fossem atrasados [bate com os dedos em cima da mesa e, ao longo da entrevista, há de simular várias vezes o gesto de tocar guitarra].
AZ: Prestar atenção ao que estamos a cantar. Isso ajudou-me muito, ler os poetas mais clássicos e os mais atuais de língua portuguesa.
MA: No processo criativo não se pode pensar no que os outros vão pensar.
Gostariam que os vossos filhos fossem músicos?
MA: Gostava que ele fosse qualquer coisa semelhante aquilo que eu sou, na sua área.
AZ: O meu filho João diz que o sonho dele é cantar comigo. Tem cinco anos. [risos]
MA: O meu filho Joaquim tem três e também diz que quer ser músico. É o que vê em casa…
As vossas canções contam histórias, recorrem a rimas simples, quase pueris. O António-Pedro Vasconcelos disse que elas eram como pequenos sketches musicais. Agrada-lhes a comparação?
AZ: A imagem cinematográfica agrada-me, porque é assim que imagino as histórias quando estou a cantá-las.
MA: Estás sempre concentrado nas letras? Eu não. Às vezes estou a pensar no som ou na barraca das farturas. Se estiver muito concentrado até posso esquecer-me.
Não cantam como o comum dos mortais: no duche, no carro?
AZ e MA: Isso não.
AZ: Gosto de estar num jantar de amigos, puxar da guitarra e cantar, mas tem de ser um impulso meu.
MA: Se tiver de trautear uma música porque estou a mencioná-la, morro de vergonha como outra pessoa qualquer que não é cantora.
Não pode trautear uma música agora?
MA: Nem pensar! Só gosto em palco, com o som direitinho. Se for para tocar uma guitarrinha, nas calmas. Cantar é uma extensão necessária daquilo que faço.
Vocês existem, como amigos, para lá da música?
MA: Até já fizemos férias com as famílias.
O que une um alentejano de gema a um portuense, com percursos tão diferentes?
AZ: A música.
MA: Todos os meus amigos têm a ver com a música. O meu melhor amigo, ainda hoje, era o único que no 5º ano sabia quem eram os Dire Straits.
Miguel, que pergunta gostaria de fazer ao António?
MA: Qual foi a música que foste cantar ao Big Show Sic, quando ganhaste o prémio?
AZ: A Samaritana.
MA: Um dia esse videozinho tem de vir à baila. [risos]
Agora troquem-se os papéis.
AZ: Qual é o sítio fora de Portugal onde a tua música se encaixaria melhor?
MA: Onde houver portugueses ou pessoas que falem português. Gostava de cantar em Cabo Verde.
O António disse que o Miguel é quem mais se aproxima da sua forma de pensar. Quer retribuir o elogio?
MA: Isso é muito verdade. Tomara eu ter os dotes vocais e interpretativos do Zambujo. Mas tenho outra prática a escrever letras ou a tocar guitarra. Complementamo-nos.
Se levassem um estrangeiro a um concerto do outro, como o definiriam?
AZ: Dizia que era um amigo e um músico de quem gosto muito, que tem uma capacidade incrível de escrever e compor músicas que fazem as pessoas felizes.
MA: Anda daí ouvir um músico, dos melhores que há no mundo, que consegue fazer coisas inacreditáveis com a voz e a guitarra.
O António estudou clarinete no Conservatório. O Miguel andou na Católica em Gestão. Chegaram ao mesmo palco. O que pensam acerca da formação musical?
MA: Eu tenho formação musical, apesar de ter estudado sozinho. Desde os 11 até agora estou sempre a estudar.
AZ: Acho que é muito importante. Mas as músicas que toco nunca veem em partituras. Os sete anos que toquei no Senhor Vinho, fazendo questão de acompanhar os outros guitarristas, ajudaram-me muito.
MA: No ano sabático que tirei a seguir ao curso, eu e o João Salcedo [Os Azeitonas] estávamos à frente das atividades musicais de um bar no Porto e aquilo era como se fosse um karaoke ao vivo. Foi uma escola brutal.
Como foi trocar o Alentejo por Lisboa?
AZ: Acabamos por nos acostumar. Cada vez que vou a Beja sinto-me estranho, as pessoas não são as mesmas, os amigos estão casados, com filhos, e só saem para “beber a bica”. Parece que chegam a uma determinada altura e deixam de viver, passam só a ter rituais: trabalhar, tratar do jantar, sentar-se a ver a novela…
MA: É a minha vida! [risos] Os filhos destroem a vida a um gajo, não vale a pena fingir. Já não saio. Eu e a minha mulher deitamo-nos às nove e meia da noite e acordamos às seis e meia da manhã.
O Miguel não se adaptou a Lisboa?
AZ: Ele está mortinho por voltar a viver aqui!
MA: Fomos para o Porto depois de nascer o meu primeiro filho – era difícil estar aqui sem apoio. Gostei muito de Lisboa, dos anos de boémia.
AZ: Apesar de não viver com os meus filhos, também sou muito caseirinho. Ainda vou a bares de vez em quando, aquela coisa de só sair para “beber a bica” incomoda-me.
Oiça aqui Romaria das Festas de Sta Eufémia. Foi tocado pelos artistas no Coliseu do Porto, a 29 de novembro do ano passado, durante o concerto de Miguel Araújo (por sua vez, quando António Zambujo esteve no Coliseu em Lisboa também convidou Miguel a subir ao palco para cantarem juntos). Não vai ser possível passar por cima deste tema nos esgotadíssimos espetáculos de fevereiro.