Para ver e ouvir:
Do nada, o nome de Ruben Alves tornou-se conhecido em 2013 com um improvável e fulgurante êxito de bilheteira nos cinemas.
A Gaiola Dourada ultrapassou largamente a barreira do milhão de espectadores em França e foi o filme mais visto do ano em Portugal, com mais de 700 mil entradas. Este lusodescendente, agora com 35 anos, fazia a ponte perfeita entre os seus dois países falando duma realidade que conhecia bem: a emigração portuguesa em França. Agora, sentado à sombra de um freixo entre Alfama e a Graça, confessa que já se sente, também, “lisboeta”. Um lisboeta com sotaque de quem cresceu em Paris e que, nos últimos anos, tem mergulhado nos mistérios do fado.
> Sempre teve a noção de que Portugal ia assumir um papel tão importante na sua vida profissional?
Não, não foi uma decisão consciente minha… Mas eu desde miúdo tive sempre esta tendência de, entre aspas, vender Portugal. Porque desde pequenino que, em Paris, era confrontado com preconceitos parvos sobre os portugueses, vindos de gente que não sabia nada sobre o assunto. Estava sempre a tentar defender Portugal. Mas nem tinha amigos portugueses, não ia a festas da comunidade, nem sequer falava português em casa com os meus pais. Esta ligação ao país dos meus pais ganhei-a mesmo em Portugal, nos períodos de férias, e não em França. De facto, nunca pensei que o trabalho me aproximasse tanto de Portugal. Foi acontecendo assim…
> O fado teve uma presença em sua casa, na sua vida, desde muito cedo?
Não. Os meus pais ouviam, como ouviam muitas outras coisas. A minha mãe adora cantar e sempre cantou canções populares, alguns fados… A minha descoberta pessoal aconteceu depois de ter descoberto a voz da Amália, com uns 17 ou 18 anos. Comprei um CD, The Art of Amalia, ouvi-o muito e, a partir daí, comecei a interessar-me pelo fado. Quando vinha a Lisboa tentava ouvir mais, adorava ir sozinho a casas de fado…
> E em Paris também ia a espetáculos de fado?
Não, lembro-me só de ir ver o musical do Filipe La Féria, Amália, quando foi ao Zenith. Aí percebi melhor a incrível história de vida da Amália, era uma personagem completamente cinematográfica e um ícone. Foi por esse lado, também, que me interessei a partir daí…
> Como é que chega o convite para a produção deste disco e do filme?
São coisas separadas. O filme é um projeto mesmo meu, feito com uma produtora que fundei agora em Portugal. A história do disco começou há uns três anos, numa praia portuguesa. Um produtor francês que gosta muito de Portugal, o Marc Hernandez-Martinez falou-me na hipótese de se fazer um bom disco de fado porque o público francês nem sabe o que isso é… Como percebeu que eu era fã da Amália e que me interessava pelo fado desafiou-me a pensar no assunto. Depois foi ter com a [editora] Universal francesa que ficou muito interessada pelo projeto e convidaram-me para ser o diretor artístico. Eu aceitei centrando o projeto na Amália Rodrigues, que chegou a ser célebre em França mas que é um nome desconhecido para as gerações mais novas…
> Teve carta branca para pensar o disco?
Tive, completamente. Aliás só aceitava o desafio se fosse para fazer como eu queria, sem me imporem artistas. Claro que havia um limite quantitativo, há outros fadistas de que gosto…
Mas, quando fechei nos seis nomes mais a Celeste Rodrigues [irmã de Amália], ficaram sete sete colinas de Lisboa, sete maravilhas do mundo, parei aí…
> Para este disco teve que mergulhar ainda mais no mundo do fado…
Sempre acompanhei… Escolhi fadistas de que já gostava muito.
O Ricardo Ribeiro ou a Carminho, por exemplo, descobri-os na [casa de fados] Mesa de Frades. Com este disco, o meu desejo é justamente dar a conhecer estes artistas a um público francês. Muitos lusodescendentes como eu nem sequer alguma vez ouviram falar nestes nomes de fadistas… Queria que este disco chegasse ao grande público, tal como aconteceu com A Gaiola Dourada.
> E o filme, que está a preparar agora sobre fado, é o quê?
Está relacionado com o disco apenas porque o tema também é fado, mas são projetos independentes. É um documentário, ainda está em rodagem mas tem que estar pronto no final do ano. Pensei: já que vou mergulhar no fado, mergulho até ao fim. A ideia é ser um filme muito urbano e contemporâneo. Como é que estes fadistas, e outras pessoas ligadas ao fado, vivem esse universo hoje? Quero ter uma base sólida no filme, que me é garantida pelo Museu do Fado e pelo Rui Vieira Nery, mas a ideia não é fazer um documentário didático e explicativo sobre o fado e a sua história… Quero que tenha um lado muito emocional. Cruza fadistas de várias gerações, é centrado em Lisboa mas também parte para outros lugares. É um percurso…
> O objetivo do filme também passa, como o disco, por uma grande divulgação do fado em França? Sim, claro. O que quer dizer “eu sou do fado”?
Quero mostrar ao público o que é esse sentimento que cada um vive como bem entende. Em França, hoje, o grande público não sabe o que é o fado, e os jovens nem sabem já quem foi a Amália…
> O grande sucesso de bilheteira d’A Gaiola Dourada em França contribuiu muito para um maior interesse dos franceses sobre Portugal e a comunidade portuguesa… Mas não sente que contribuiu também para sublinhar alguns clichés e os preconceitos de que falava, o português obediente e bom trabalhador mas bronco e pouco sofisticado, que leva a tupperware com a comidinha para o hotel? Acho que o caminho errado seria apagar a realidade e não assumir o que existe.
Esses clichés que estão no filme são verdadeiros, e eu não tenho vergonha disso. Eu estava numa boa posição para saber como é aquela realidade. Clichés?
Eu acho que pus no filme 30% do que podia ter posto; há portugueses que vivem lá, até tios meus, com cenas surreais e muito mais absurdas que podia ter posto no filme… Aquilo é a verdade, tratada numa forma de comédia, claro. Os clichés são verdadeiros. Sublinhei esses clichés? Sim, se calhar. Mas mostrei-os para o público, sobretudo o francês, ir além de isso, para se interessar, para ir descobrir quem são os portugueses.
Uma senhora disse-me que tinha uma porteira portuguesa que adorava, também chamada Maria, que confiava totalmente nela, como se fosse da família, dava-lhe as chaves e tudo isso, mas depois de ver o meu filme percebeu que nunca tinha entrado em casa dela e não sabia nada da vida dela… O meu filme, de ficção, não era sobre os portugueses em geral, era sobre uma família de emigrantes portugueses, trabalhadores, nos bairros chiques de Paris.
A partir dessa história, queria falar na importância dos valores da família, da vida… Isso é que era o mais importante.
E, sim, queria homenagear essas pessoas.
> Como é que olha para esta nova vaga de emigração portuguesa provocada pelos anos da troika, pela crise?
Encontrei uma rapariga portuguesa que andou no liceu comigo, em Paris, e que depois voltou para Portugal. Agora reencontrei-a e soube que tinha regressado a França para ocupar o lugar da casa de porteira que a mãe tinha deixado depois de se reformar… Havia aquele sonho de voltar para “a minha terra “, mas depois encontra-se um contexto tão difícil, tantas dificuldades em arranjar um emprego, que a solução é partir outra vez. Achei isso incrível. Mas se não há trabalho aqui o que é que as pessoas podem fazer? Têm que sair, sim, mas para voltarem o mais rápido possível. Acredito que nestes momentos de crise aparecem muitas oportunidades, desafios estimulantes.
E os portugueses são superbons nisso.
Como parece não haver alternativas, e se põe a questão da sobrevivência, a criatividade dispara e, mais importante, as pessoas têm que se unir, são obrigadas a juntarem-se. Os portugueses normalmente não se unem muito, mas a crise pode motivar essa união: uma empresa que não sobreviveria sozinha, sobrevive se se juntar a outra. Há um ambiente muito estimulante e criativo que tem provocado uma outra emigração, no sentido contrário. Todas as semanas há franceses a falarem comigo porque querem vir viver para cá…
> Há a questão dos incentivos fiscais…
Sim, isso ajuda, mas é muito mais do que isso. Há oportunidades e é um desafio saber provocá-las e aproveitá-las. Mas, sobretudo, há uma certa suavidade na maneira de viver, uma descontração. Neste momento, Portugal pode ser muito atraente e sedutor, porque em França as coisas também estão complicadas, sente-se um peso muito grande; todos os problemas do mundo, a começar pelas radicalizações, tornam-se muito mais significativos quando estás em Paris, não foges a isso, é angustiante… Aqui é tudo mais descontraído, as coisas acontecem na mesma, claro, sabemos delas, mas parecem mais distantes, passam como uma onda e… “‘Bora à praia? Mais um cafezinho, faxavor…”
> Fundou uma produtora aqui.
Foi fácil ou houve muitas burocracias?
Foi muito simples. A ideia da Imagina Produções é ter uma marca minha, em Portugal, para poder fazer coproduções com França, por exemplo.
> Desde o sucesso d’A Gaiola Dourada, passa mais tempo em Paris ou em Lisboa?
É quase metade, metade. Agora, com este projeto do fado, estou em Lisboa com idas e voltas a Paris. Normalmente estou em Paris, com idas e voltas a Lisboa.
> Já tem casa em Lisboa?
Sim, e adoro estar cá. Acho que posso dizer que também já me sinto lisboeta.
> Acompanha a atualidade portuguesa?
Cada vez mais. Quando tive que fazer a promoção em Portugal para A Gaiola Dourada, percebi que não sabia assim muito da realidade portuguesa, sobretudo a nível de política, de empresas… Conhecia, culturalmente, as coisas que mais me interessavam.
Falavam-me da Sonae, do Balsemão e eu não sabia nada disso. Agora sei cada vez mais do contexto português… Mas há muitas coisas que ainda não domino, claro.
> Como cidadão europeu, como vê a questão da Grécia e este “Não” no referendo?
Não sei o que se vai seguir, até pode ser muito mau, mas tudo o que está acontecer parece-me bom, positivo. De certa forma, é um despertar de consciências.
Será que somos mesmo obrigados a ir por um determinado caminho? Será que faz sentido sermos guiados só por questões financeiras, pelo dinheiro, pelos bancos? O povo falar democraticamente, como aconteceu agora na Grécia, é muito bom.
Acredito que tudo isto pode ser muito positivo para acordar consciências adormecidas.
A União Europeia tem estado muito distante das pessoas, o povo nunca percebeu bem o que é o Tratado de Maastricht ou o Tratado de Lisboa, nem isso lhes foi muito bem explicado. Há coisas que vão ter mesmo de mudar, e não acredito que seja para pior. Os gregos já sofreram muito, os portugueses também…
Consigo estar otimista. E, neste momento, não posso esconder o meu entusiasmo por constatar que um povo se exprimiu livremente.