Conta-se que quando Miguel Ângelo terminou a sua escultura de David, impressionado com o extremo realismo do trabalho, tocou-a com um cinzel, ordenando-lhe: “fala!” O realizador Abdellatif Kechiche, autor do mais impressionante filme de realismo íntimo dos últimos tempos, A Vida de Adèle, Capítulos 1 e 2, teve atitude semelhante, ao sugerir que a atriz adotasse o nome da personagem, Adèle Exarchopoulos. Achou inconcebível que aquela personagem, tão real, tão próxima, não existisse para além do cinema. Quem vir o filme também duvida da sua inexistência fora de campo. Há uma espécie de 5D, um passo atecnológico, em que o realizador nos consegue colocar dentro da pele da personagem. Transmite-se uma mensagem profunda, um estado de alma que se expressa em cada gesto, em cada esgar. E a câmara está sempre lá, para nos incluir, num superlativo quotidiano. Os motivos que tornaram o filme polémico, basicamente a cena de sexo de seis minutos e as outras que se lhe seguem, passam ao lado da capacidade emotiva de um filme que vai perdurar na história do cinema. Kechiche e Léa Seydoux, a rapariga do cabelo azul, trocaram acusações na imprensa. A mais forte foi a da atriz que afirmou ser tratada como uma prostituta. E de Kechiche ter levantado a hipótese de não estrear o filme. Mas uma coisa é certa, sem uma cumplicidade fervorosa entre as duas atrizes este filme nunca teria sido feito, não desta forma. Em A Vida de Adèle, Abdel Kaddefeliche (vencedor da Palma d’Ouro em Cannes), realizador franco-tunisino, aclamado por O Segredo de um Cuscuz, libertou-se dos clichés suburbanos do novo cinema francês, para nos imbuir numa história profunda, adaptada e decalcada da novela gráfica, de Julie Maroh, Le Bleu est une couleur chaude. O pormenor é importante, porque, em determinadas cenas, a semelhança é tal, que a BD poderia ter servido de story board. Kechiche já se tinha afastado do paradigma da história do imigrante (ou dos seus filhos) dos subúrbios, com A Vénus Negra, uma adaptação histórica mal conseguida, onde não deixa de revelar a intenção de retratar o Outro, o excluído. Aparentemente, em A Vida de Adèle Capítulos 1 e 2, o tema do Outro mantém-se presente, ao contar uma história lésbica. Contudo, apesar da natural identificação da comunidade LGBT, o filme serve mal de bandeira multicolor. Mas na verdade Kechiche evita os clichés dos confrontos sociais (aborda-os de forma mais subtil) e leva-nos ao íntimo da personagem. Não há um grito de libertação. Há apenas uma libertação. O conflito não parece exageradamente dramático com o meio, é apenas dramático no seu íntimo. Aliás, no plano social, a luta contra a descriminação sexual é apanhada já a meio caminho, o trabalho mais importante foi feito pela geração anterior, não parece haver conflito maior por aí, o lesbianismo de Emma é até positivamente banalizado no seu meio artístico. O que há, em Adèle, é o encontro progressivo da personagem consigo própria: mas nem a esse nível a questão é excessivamente trágica. Aliás, na essência a inquietude de Adéle é universal. O lesbianismo não está em debate, é apenas um pormenor relevante. Um pormenor que leva o filme a ser interdito a menores de 18 anos. As cenas de sexo explícito são muitíssimo bem filmadas. Kechiche deixa-nos ficar porque são momentos determinantes na construção da personagem. Desenganem-se: o que Kechiche procura filmar ao longo daqueles seis minutos não é o corpo, mas sim a alma; ou através do corpo chegar à alma. Aliás, faz parte do estilo do filme, a opção por cenas longas, enfoques no rosto, que representa todas as dúvidas adolescentes que se prolongam para a idade adulta. Adèle é uma personagem em constante construção, que nós seguimos de uma proximidade imprópria. Ficamos à espera dos próximos capítulo, como se da nossa vida se tratasse. A vida de Adéle cap. 1 e 2, de Abdellatif Kechiche, com Léa Seydoux, Adèle Exarchopoulos, Jeremie Laheurte, 187 min
A Vida de Adéle: Close up da alma
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Desenganem-se: o que Kechiche procura filmar ao longo daqueles seis minutos não é o corpo, mas sim a alma; ou através do corpo chegar à alma. Aliás, faz parte do estilo do filme, a opção por cenas longas, enfoques no rosto, que representa todas as dúvidas adolescentes que se prolongam para a idade adulta