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Criado em 2001, por Andrea Sabaddini, psicanalista da Sociedade Britânica de Psicanálise, European Psychoanalytical Film Festival, é um encontro bienal, com filmes europeus contemporâneos (maioritariamente longas metragens de ficção, mas também documentários), seguidos de painéis de discussão com psicanalistas, realizadores, críticos e teóricos do cinema, em conversação com uma audiência heterogénea de cerca de 300 pessoas (na sua maioria psicanalistas e psicoterapeutas, mas também pessoas ligadas ao cinema).
Nos últimos anos tem-se vindo a assistir a uma cooperação (por exemplo em websites, revistas, etc.) entre teóricos do cinema, realizadores e psicanalistas com o intuito de uma compreensão mais profunda sobre os aspetos, normais e patológicos, da subjetividade, identidade sexual, papéis sociais e relações interpessoais. Aliás os congressos internacionais de psicanálise já de si incluem frequentemente a visualização de filmes seguidos de discussão entre realizadores e psicanalistas.
O primeiro festival nasce em 2001, tendo decorrido na BAFTA (British Academy of Film and Television Association) sob a presidência honorária de Bernardo Bertolucci. Desde aí fizeram-se mais seis festivais, sempre no primeiro fim de semana de novembro.
Este ano foi escolhido o tema segredos, como um lugar onde cinema e psicanálise se cruzam… Como afirma o psicanalista Sabaddini:
“Os segredos são a espinha dorsal de filmes dos mais variados géneros, desde comédias a dramas familiares, “thrillers”, intrigas políticas e de espionagem. Os segredos podem ser descobertos, guardados, dados, vendidos. Quando partilhados, os segredos podem criar vínculos, quando quebrados, os segredos podem destruí-los. A sua função nas interações humanas é de uma enorme importância, daí eles estarem presentes nas diversas narrativas, incluindo as cinematográficas (…) Além disso, a revelação pelos analisandos dos seus segredos mais íntimos, e o respeito pela confidencialidade da parte do psicanalista, são componentes essenciais do nosso trabalho, que na sua maioria se centra no conhecimento do papel dos segredos que o nosso inconsciente tenta esconder do resto de nós mesmos (através da repressão) e também dos outros”. (Revista Eidos – cinema psyche e arti visive, nº 27 – outubro 2013)
É numa 5ª feira à noite, com um delicioso buffet, regado com vinho e intensa troca social, na Royal Society of Medicine, que se dá início ao Epff7. É neste ambiente descontraído, no qual se casam fascínio pela psicanálise e pelo cinema, que se seguem algumas palavras de boas vindas ao festival. Festival, não só para o diferenciar de um congresso, mas também para acentuar a ideia de festa, onde profissionais do cinema e da psicanálise possam gozar em conjunto as trocas entre as respetivas disciplinas. A noite termina com a apresentação de um short film de Raoul Ruiz – “Colloque de Chiens”, de 1977, seguido de comentários de Valeria Sarmiento, viúva do realizador, e Ian Christie, professor de história do cinema.
Os dois dias seguintes passam-se na BAFTA, a interessante academia de cinema britânica, reservada a membros, cujas paredes estão repletas de fotografias dos grandes nomes do cinema britânico, como Lawrence Olivier, Omar Sharif, Julie Christie, etc, que por lá passaram… São dias de uma grande intensidade entre as duas salas onde se passa a visualização dos filmes e sua discussão. Num só dia é possível visualizar 3 a 4 longas-metragens…
Aqui ficam por isso alguns dos momentos psico-cinematográficos do festival, e os segredos que consegui ver, ouvir e pensar.
Atmen
Atmen. traduzido para inglês Breathing (em português respiração) é realizado pelo austríaco Karl Markovics, em 2011, e conta a história de um jovem, Roman, de 19 anos, a viver num reformatório, após, com 14 anos, ter agredido um outro jovem da sua idade, que acaba por morrer. A ação inicia-se numa cidade industrial, cinzenta e deserta. Roman, mais uma vez incapaz de agarrar um emprego (vê-se o ambiente impessoal e ensurdecedor de uma fábrica metalúrgica), regressa à sua instituição, um grande edifício prisional, cujas portas de ferro o tempo enferrujou, e onde, após dar o seu nome, é despido e revistado, por fora e por dentro… Também Roman, mudo e de olhar ausente, espelha o peso cinzento e indiferente dos lugares, numa apatia e recusa em se ligar ao mundo e aos outros. Na sua pequena cela envelhecida, cuja parede nua e rasgada alberga um único pequeno poster (com uma paisagem naïf de um comboio numa paisagem verdejante, que por acaso encontrara numa velha revista), ele lê o jornal com os pés enquanto está sentado na retrete (a câmara fixa só o jornal e os pés, tudo o resto é sugerido…), à procura de um novo emprego que o seu tutor lhe havia aconselhado, para poder ter “alta” e sair em liberdade…
É nessa indiferença, de quem se recusa a agarrar a vida com as mãos, que com os pés ele escolhe o seu novo emprego: trabalhar com a morte, numa agência funerária. Toda a ação que se segue mostra a crueza de trabalhar com a morte, os corpos cinzentos envolvidos num plástico irrespirável, a serem despejados nos caixões, o seu peso inerte. É mais tarde, enquanto nada na piscina do reformatório, que Roman fica aflito sem conseguir respirar, e só os exercícios respiratórios (relacionais) do professor acabam por transformar a falta de ar num enorme soluço/grito reprimido, sem fim, nem contenção…
Mas é também durante este trabalho, com aqueles que já não respiram, que ele aos poucos se começa a agarrar à vida, e vai à procura das suas origens (descobre o contacto da mãe biológica que sabia que o dera para adoção em bebé). A mãe, uma mulher/miúda só 14 anos mais velha, de cara marcada e pintura esborratada, diz-lhe que deixá-lo foi a melhor coisa que fez na vida; e só mais tarde, ao reconhecer as coisas más dentro dela mesma (self-empathy nas palavras do psicanalista que comentou), ela diz-se uma má mãe, e lhe revela o segredo: ele era bebé e chorava sem parar, ela não conseguia dormir, desesperadamente pega numa almofada e procura sufocá-lo. Ao ver o bebé inerte, sem respirar, num impulso, faz-lhe respiração boca-a-boca, fazendo-o voltar à vida. No dia seguinte entrega-o num orfanato.
Aos poucos, o filme vai-nos mostrando, como a revelação dos segredos, conscientes e inconscientes, vai trazendo Roman novamente à vida, permitindo-lhe respirar a imensa dor reprimida. Também o contacto com a morte o faz perceber que tem que agarrar a vida… Aos poucos Roman recomeça a respirar.
Os comentários psicanalíticos são vários: a empatia, que começa por ser consigo mesmo (a “má mãe”) permitindo depois estender-se ao outro (o filho abandonado); as variadas cenas que se passam dentro de casa (reformatório, casa da mãe, casa de uma senhora acabada de morrer) como o espaço psíquico para a reconstrução das relações humanas; a relação de Roman com um outro trabalhador da morgue que o ensina a fazer o nó da gravata como simbolizando a relação com o paterno; o materno, que se transforma da mãe abandónica para uma mãe com limitações, e duplamente “salvadora” (da sua raiva, da sua incapacidade), na respiração boca-a-boca e pondo-o no orfanato.
Refere-se também a Teoria do Trauma de Freud, no seu importante texto: “Recordar, Repetir e Elaborar” (Freud, 1914). Roman, numa identificação com o agressor, repete a agressão a que foi sujeito através do ato violento, aos 14 anos, com o colega, o que o leva a ser fechado num reformatório. O seu Eu, defende-se da imensa dor secreta, através da dissociação: do mundo exterior, dos outros, sem amigos, a sua linguagem é quase inexistente. Na impossibilidade de pensar, ele repete (enactment), na piscina, o ato de sufocar da sua mãe. Será a empatia entre os dois que torna possível o perdão, a reconciliação e a resolução progressiva do conflito.
Mas também podemos olhar o filme na sua forma, e não só no conteúdo. Alguém do público chama a atenção para o facto de que, nas cenas iniciais, em que o personagem principal está de alguma forma alienado de si mesmo, ele aparece cortado na imagem (só aparecem os pés, ou aparece de costas), e à medida que os segredos se revelam, o enredo se desenvolve, e Roman vai sendo capaz de olhar para o seu interior, o realizador coloca-o no interior do ecrã.
Contudo, aquilo que mais me impressionou no debate foi ouvir os pensamentos do realizador sobre a construção da sua narrativa, para quem “story making is all about secrets”. Ao contrário do que eu imaginava não parecia ter havido qualquer intencionalidade (pelo menos consciente) de abordar esta ou outra temática… As imagens começaram simplesmente por surgir na sua cabeça, primeiro uma cena de uma mulher idosa acabada de morrer em sua casa, e só depois o rapaz no reformatório. Afirma que não sabia porque fizera este filme: “seria eu o rapaz solitário?“. Só posteriormente se lembrou que tinha dois filhos adotados, e que a vila onde nasceu tem o mesmo nome da vila onde existe o único reformatório do país…
Para Markoviks é estranho falar do seu filme porque ele é a própria fala, uma fala por imagens: “um bom filme fala melhor do que o seu realizador”.
Io e Te
Em “Eu e tu “, de Bertolucci (2012), Lorenzo é um adolescente de 16 anos, o farto cabelo castanho encaracolado, como um capacete envolvendo (protegendo) a cara pequena (o seu Eu?), salpicada por algumas borbulhas, debaixo de uns grandes olhos azuis.
A cena começa numa sessão de Lorenzo com o seu psicoterapeuta, que após lhe perguntar como passou a semana, tem unicamente como resposta o monossílabo “normal”, numa recusa em elaborar o que isso poderá significar. O psicoterapeuta diz-lhe: “Agora não queres pensar nisso, mas um dia irás ser capaz de o fazer”.
Lorenzo parece viver num tempo suspenso, entre a infância e a adolescência, percorre as ruas na ida e vinda do liceu quase como um zombie, mochila às costas, headphones com música alta (no filme, aparece a música alta sempre que ele põe os headphones como que a mostrar-nos o seu mundo subjetivo) e o olhar sem direção. No liceu entra e sai das aulas mas não está lá, recusa socializar com os colegas durante o recreio e recolhe-se num canto, ensurdecido pelo barulho da sua música, que não permite ouvir (-se) mais nada…
Mas a parte fundamental do filme vai ter como cenário a cave do prédio dos seus pais, onde Lorenzo decide viver durante uma semana, e para onde fugiu, após ter fingido ir a uma excursão de snowboard com os colegas. Aquela semana havia sido cautelosamente preparada, comida e bebida enlatada (sete coca-colas para 7 dias da semana…), cuidadosamente comprada nos dias anteriores (atestando as suas capacidades de entrar na vida adulta!). Na sua mochila (para a neve), havia colocado mudas de roupa, o seu portátil com a sua música, um livro de vampiros… E assim decorre o início do seu retiro, deitado num velho sofá a ouvir música aos altos berros (respondendo aos telefonemas da mãe com relatos imaginários de animadas paisagens de neve rodeado de colegas!), comendo e bebendo sempre que tinha fome, lendo a sua narrativa de horror…
Será a visita inesperada e fortuita de Olívia (uma meia irmã, filha do mesmo pai e da anterior mulher deste) à arrecadação, à procura de algumas coisas, que se torna o rastilho da transformação daquela história. O nosso “herói” é obrigado a albergá-la contra a sua vontade (ela ameaça contar à mãe dele), e é neste cenário relacional que o enredo vai tomando forma: ela é uma jovem de 18 anos, apaixonada e dependente de heroína, e para poder conquistar o seu amado, procura fazer uma cura de desintoxicação; a irmã de Lorenzo, que se sentira abandonada pelo pai (o pai que abandonara a sua mãe), e que por isso procura ser anestesiada (com drogas e comprimidos para dormir) dos seus segredos internos. Aos poucos os segredos são revelados, destapados, vasculhados, tal como os baús que enchem a arrecadação. E será esta relação de uma imensa beleza, simultaneamente naíf e madura, que se vai criando entre os dois irmãos, que acaba por salvá-los a ambos.
Lorenzo assiste à ressaca e à dor física e mental da sua irmã, e é forçado a sair do seu casulo; ela “fala-lhe” das maravilhas do mundo lá fora, da sexualidade (ela experimenta as roupas de mulher que estão dentro dos baús)… E aos poucos Lorenzo aceita sair daquele tempo suspenso e entrar no fascínio/curiosidade da adolescência. O clímax do filme é uma dança (bela e comovente) que marca o encontro entre dois seres humanos que tentam sobreviver e crescer com os seus segredos internos… e será este encontro, entre Io e Te, que lhes permite salvarem-se um ao outro.
O filme é comentado por um psicanalista, uma crítica de cinema e o próprio Bertolucci. Aborda-se o “Family Romance” de Freud (1909), e a necessidade/dificuldade de libertação dos indivíduos em relação aos seus pais. Mais do que ser um adolescente rebelde, Lorenzo estaria num estado suspenso, entre a infância e a idade adulta, um “nowhere“, numa necessidade de suspender o tempo. Mas para isso precisa de um sítio secreto, um sítio da infância, e do “day-dreaming“, a cave, metáfora também da irracionalidade dos mortos e do inconsciente… É lá que ele se vai confrontar com os segredos da família, incorporados em Olívia. Ele recusa uma viagem (a da superfície, da neve) e faz outra viagem, na profundeza do Eu, na profundeza da cela. A cela torna-se assim um espaço transicional, um espaço mágico entre o interior e o exterior, possibilitado pela interação das duas personagens.
Io e Te acaba com a separação dos dois irmãos, cada um agarrando a sua vida. Olívia, já sem a anestesia da heroína, vai ao encontro do seu amado; Lorenzo volta para casa, num andar leve, e onde a câmara termina, suspendendo a imagem no rosto de Lorenzo, no seu sorriso discreto, um sorriso para dentro e para fora… [LP1]
Bizalom
O que acontece quando um homem e uma mulher, inicialmente desconhecidos, são obrigados a viver num cativeiro – judeus escondidos -, durante a ocupação nazi na Hungria?
Bizalom, palavra húngara que significa “confiança”, foi realizado em 1979 mas só recentemente saiu nas salas de cinema e foi editado em DVD.
Escreve o seu realizador, Istvan Szabó:
“O espectador não vê nada senão duas pessoas… Essencialmente a história gira à volta de uma homem e uma mulher, e do desenvolvimento da relação entre eles. No inicio do filme eles encontram-se pela primeira vez, e aos poucos vão aprendendo mais um sobre o outro… Estou convencido que muito do mal estar da sociedade resulta de sentimentos de insegurança e falta de confiança. Esta é a base crucial para as relações sociais e interpessoais, mediadas entre diferentes gerações, permitindo-lhes transmitir ou assimilar experiências históricas. Esta é a razão por que eu queria contar uma história sobre duas pessoas cujo medo impede de confiarem um no outro, até esta situação se tornar insuportável e, através da confiança mútua que se desenvolve, adquirirem um sentimento de felicidade”. (Revista Eidos – cinema psyche e arti visive, nº 27 – outubro 2013)
A cena inicial mostra um filme de guerra a preto e branco, sem termos noção que se trata de um filme dentro do filme, até a câmara fixar uma jovem mulher, sozinha, sentada na plateia. A personagem, Kata, sai do velho cinema (agora a cores, em tons de cinzento azulado) numa rua deserta e cinzenta, que faz realçar o som apressado e amedrontado dos seus saltos na calçada. Subitamente, saído de uma esquina, surge um homem atrás dela que lhe diz que ela está em perigo, que não pode voltar para casa onde a Gestapo a espera, o seu marido teve que fugir. Kata, para se manter livre de perigo, é forçada a assumir uma nova identidade, junto de outro homem, János, numa pequena casa suburbana, onde eles têm que fingir ser marido e mulher. János, também casado e, tendo sido traído nos tempos de estudante, quando a rapariga de quem gostava o entregou aos nazis, desconfia… Kata, por seu lado, separada pela primeira vez do seu marido e filha, está permanentemente ansiosa e receosa. Ambos correm risco de morte.
Mas é neste ambiente de secretismo, reforçado pela filmagem em tons escuros, azul acinzentado, com pouca luz, que surge o ambiente de sufoco claustrofóbico, interrompido com momentos de tensão emocional, iluminados com uma só luz. E é neste lugar de clausura, em que este homem e mulher são forçados a olhar um para o outro, que surge uma profunda transformação emocional: da distância e desconfiança, para uma enorme intimidade e para o sentimento amoroso.
Como, durante um debate, dizia um teórico de cinema, Ian Christie, os filmes europeus são fundamentalmente sobre o implícito, por contraste com os filmes de Hollywood que procuram o explícito. É também nesta visualização implícita que decorrem as cenas eróticas, em tons de amarelo-escuro da vela e da pele, e do negro das sombras, onde de repente surgem umas mãos que percorrem as costas do outro, ou um rosto que transparece as imensas e contraditórias emoções (a revelação de um sentimento novo, o desejo, a surpresa, a culpa pela infidelidade…) no interior dos personagens. Como diz Szabó, cinema é para ele acima de tudo um rosto (que, ao contrário do teatro, a câmara permite focar), e a mudança emocional que ele transmite, o rosto que em cada segundo revela a transformação emocional no interior do sujeito…
Bizalon será um filme sobre confiança, mas talvez acima de tudo sobre intimidade, e como para ela se desenvolver precisa de um tempo e de um espaço recolhidos (tal como na relação psicanalítica). Aquele homem e aquela mulher, ao contrário do que sucede nas “relações do mundo moderno”, sem outros lugares para olharem, nem outro sítio para fugirem, foram forçados a olharem-se um ao outro, e gradualmente a entrarem nos segredos do outro, a compreenderem-se, a transformarem conflito em empatia, e tal não poderia terminar senão numa relação de amor…
Secret Event
O segundo dia do festival termina com um secret event: uma sala escura e duas cenas de filmes de cerca de 10 min. cada, ambas as cenas passadas em famílias da working class inglesa, onde se pode assistir (como dizia Szabó ser a especificidade do cinema) à mudança emocional a cada instante que a câmara capta ao fixar-se num rosto… Rapidamente o público aceita o desafio de adivinhar o autor/nome dos filmes secretos, e surge “Vera Drake” e “Secret Lies” de Mike Leigh. A cena seguinte é o próprio Mike Leigh, com os seus cabelos e barba grisalhos, e andar tranquilo mas firme, a entrar na sala para falar connosco…
Leigh já parece mostrar uma certa intencionalidade relativamente ao que procura transmitir com o seu filme e, curiosamente, é justamente aquele que procura a espontaneidade das personagens/atores, revelando-lhes apenas as suas partes do script, para que eles não sejam contaminados com as perspetivas dos outros personagens! Mike quer que os seus filmes deixem questões para pensar e falar, que não tenha todas as respostas ali… Claramente com um olhar psicológico sobre o seu trabalho, o realizador revela-nos que também ele cresceu numa família cheia de segredos, e talvez daí a necessidade de confronto com essa temática, de expô-los, de os compreender.
Cenas Finais
E é no domingo de manhã que, após a visualização de mais dois short-films, se terminam três intensos dias de cinema e psicanálise. Na discussão plenária, presidida por Andrea Sabbadini e Ian Christie (professor de história do cinema), dão-se os últimos remates num intenso diálogo com o público.
Conta-nos Ian Christie como a questão do segredo está intrinsecamente ligada ao cinema e como, quando apareceram os primeiros filmes, projetados numa sala escura, esse se tornou o lugar que mais pessoas reunia no escuro, e onde consequentemente se realizavam várias atividades secretas (e.g. encontros íntimos e prostituição), chegando mesmo a haver polícia nas salas!
Mas talvez o maior segredo que descobri neste Festival foi sobre a intencionalidade (ou a falta dela) de um filme, e do seu realizador. A tal intencionalidade, ou “conteúdo latente” que os psicanalistas procuravam…
Essa será talvez uma grande diferença relativamente às obras literárias, cujo autor pode ter um maior controlo sobre os caminhos que toma a sua história, e se, como dizem, a história ganha depois a sua própria autonomia, isso será talvez o lado desconhecido, inconsciente, do escritor em ação! Nas histórias do cinema temos vários autores, por um lado, e temos o acaso da realidade. O que fazer quando um cão atravessa a cena, ou quando uma nuvem atravessa o céu supostamente limpo, dizia Bertolucci citando Jean Renoir. Devemos incluir esse acaso?
Haverá realizadores com maior ou menor intencionalidade no seu script, com mais ou menos controlo no seu filme, mas este terá sempre segredos (ambiguidades) à espera de serem desvendados pelo espectador que aí irá colocar o seu olhar, e um pouco de si mesmo. O filme será sempre um lugar escuro onde projetamos as nossas questões e as podemos ver no ecrã… Sem que o nosso segredo seja revelado para fora.