Faz este ano meio século que um miúdo cego chegou, pela mão de Ronnie White, dos the Miracles, à porta da toda poderosa Motown. Stevland Hardaway Morris tinha então 11 anos e fora descoberto por um irmão de Ronnie, que pediu ao músico para o ouvir. Impressionado com o talento do pequeno Stevie, o patrão da editora, Berry Gordy, contratou-o de imediato. Não só tocava piano, baixo, bateria e harmónica, como também cantava – e muito bem… Depressa ganhou a alcunha de “oitava maravilha”, que viria a estar na origem do nome pelo qual ficou conhecido: Stevie Wonder – na altura antecedido da palavra “Little”.
Hoje, o nome de Stevie Wonder confunde-se com o da história da música popular, nas últimas décadas. Cantor, compositor, multi-instrumentista, produtor e ativista social, é o autor de clássicos como Superstition, Higher Ground e Sir Duke, que continuam a influenciar gerações de músicos, ou de êxitos como Happy Birthday, I Just Called to Say I Love You ou Part-Time Lover. Com mais de 30 temas no top 10 americano e 22 prémios Grammy, é um dos mais bem sucedidos artistas da história da música pop, sempre com um toque soul.
É esta verdadeira lenda viva que já este sábado, 2, estará no Parque da Bela Vista, em Lisboa, onde será um dos principais cabeças de cartaz do Rock in Rio 2012. O ano passado, na edição brasileira, Stevie Wonder assinou um dos melhores momentos da história do festival, ao tocar durante mais de duas horas para uma audiência de 100 mil espectadores, num espetáculo em que contou com a presença da filha Aisha nos coros – a mesma para quem escreveu o clássico Isn’t She Lovely?
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Impressões digitais
Nascido a 13 de maio de 1950, na pequena cidade de Saginaw, no Estado do Michigan, Stevie foi o terceiro dos seis filhos de Calvin Judkins e Lula Mae Hardaway. Nasceu prematuro e o excesso de oxigénio que recebeu na incubadora causou-lhe cegueira. No início dos anos 50, após a separação dos pais, mudou-se com a mãe para Detroit, onde se apaixonou pelo jazz que ouvia na rádio. Apesar da sua deficiência, nunca foi demasiado protegido pela família e, ainda pequeno, começou a cantar em coros de igreja e a aprender piano. “A cegueira nunca me impediu de fazer o que quer que seja. Saltava as cercas dos vizinhos, com os meus amigos e até saía mais que os meus irmãos”, recordou numa famosa entrevista à revista Rolling Stone, dada em 1973, ano do seu glorioso regresso à Motown. “Nunca me apercebi disso, a não ser quando, na escola, alguém me disse que eu era negro.”
Tinha apenas 13 anos quando conseguiu o seu primeiro número 1 no top americano, com o tema Fingertips (Pt. 2). O feito seria repetido por diversas vezes durante toda a década de 60, quando também começa a colaborar com o departamento de escrita de canções da Motown, compondo êxitos como Tears of a Clown, tema popularizado por Smokey Robinson & the Miracles. Mas, apesar do êxito, Stevie Wonder queria mais… O “génio” começava a não se contentar com o estatuto de cantor de singles de sucesso e, na viragem para a década de 70, rescindiu o contrato com a Motown, devido ao espartilho criativo imposto aos artistas. Stevie tinha-se casado havia pouco tempo com a antiga secretária da editora, Syreeta Wright, e queria ter um controlo total sobre a sua obra. O casamento duraria pouco mais de um ano (voltaria a casar-se em 2001, com a designer de moda Kai Milla Morris), mas, em compensação, a sua música seria elevada a um outro patamar.
Ao saber que Stevie Wonder estava a gravar de forma independente dois novos discos, Berry Gordy voltou atrás e aceitou as exigências do músico concedendo-lhe total liberdade criativa, celebrada num contrato milionário (de 120 páginas!). Estava iniciado aquele que viria a ficar conhecido como o “período clássico” de Stevie Wonder, iniciado com Music of My Mind, um disco muito mais experimental, onde, lado a lado com as habituais canções de amor, eram também abordados temas sociais e políticos.
Um ícone americano
Nos anos seguintes, Stevie Wonder revelar-se-ia um músico muito à frente do seu tempo, com discos como Talking Book ou Innervisions a lançar as pistas para muita da música que viria a ser feita no futuro. Quando chegou a década de 80, era já um dos mais influentes músicos negros de sempre. O álbum Hotter than July, que incluía os êxitos Happy Birthday e Master Blaster (Jammimn), volta a confirmá-lo um campeão de vendas e o músico aproveita a boleia do sucesso para se envolver cada vez mais em causas sociais e políticas, como a campanha para tornar o aniversário de Martin Luther King em feriado nacional. A sua voz canta contra a fome em África em We Are the World ou pela não discriminação dos doentes com SIDA em That’s What Friends Are For. Stevie Wonder transformara-se num verdadeiro ícone da cultura americana, com presença assídua em filmes, séries e programas de televisão. Embora, musicalmente, a sua influência artística já não fosse a mesma, viveu então o período de maior sucesso comercial, muito à custa de um tema extraído da banda sonora do filme Woman in Red (1984), chamado I Just Called to Say I Love You, que viria a tornar-se no seu maior êxito de sempre. A partir da década de 90, porém, passou a editar bastante menos: Conversation Peace (1995) e A Time to Love (2005) são os dois únicos álbuns de originais lançados nos últimos 20 anos. Em compensação, multiplicaram-se as compilações e discos ao vivo, nas últimas duas décadas, que ajudaram a manter viva, na memória coletiva, a obra de Stevie Wonder. Ao entregar-lhe, em 2008, o prémio Gershwin, atribuído pela Biblioteca do Congresso como reconhecimento “pela influência da música popular na cultura mundial”, o Presidente dos EUA Barack Obama disse que Stevie Wonder “criou um estilo singularmente americano, singularmente próprio mas também, de alguma maneira, universal”. “Influenciou a vida de milhões de pessoas, incluindo a minha”, acrescentou, revelando que a música de Stevie Wonder o ajudou a conquistar a mulher, Michelle, com quem se casou ao som do tema You and I (We Can Conquer the World).