Depois de Lisboetas, de Sérgio Trefaut, volta a temática da imigração em Viagem a Portugal. Maria de Medeiros e Isabel Ruth brilham num filme com fundo branco, retrato de um país que se encerra àqueles que procuram uma vida melhor
Uma viagem que não chega a lugar nenhum. Maria, a ucraniana do filme de Sérgio Tréfaut, sonha com o El Dorado português. Atravessa a Europa para vir ter com o marido, um médico senagalês que trabalha na construção civil, mas acaba por ficar retida no aeroporto de Faro. O Portugal que esta Maria conhece são as paredes brancas do aeroporto. Pretexto também para um jogo de forças, com duas grandes atrizes a contracenar: Maria de Medeiros e Isabel Ruth.
Na sua estreia na ficção, Sérgio Tréfaut regressa ao tema da imigração, com que se tinha destacado no documentário Lisboetas. O realizador, de 46 anos, deixou recentemente a direção do DocLisboa, para se dedicar exclusivamente à realização, estreou recentemente A Cidade dos Mortos, documentário com um sucesso acima da média para o cinema português. Com Viagem a Portugal, filme experimental e minimalista, regressa às grandes questões, num país dividido entre os que chegam e os que partem.
JL: Esta a sua estreia na ficção, tem uma ligação temática à sua estreia no documentário, em 2004, com Lisboetas. Reconhece esse laço?
Sérgio Tréfaut: Existem várias pontes. Conheci a história da Tânia, que no filme se chama Maria, quando estava a aprender russo por causa dos Lisboetas. A estratégia de lançamento de Viagem a Portugal está ligada a uma tomada de consciência de uma realidade. O recâmbio que acontece no filme sucede dez vezes por dia em Portugal e muito mais noutros países. No site estamos a criar um item onde as pessoas possam deixar testemunhos de histórias semelhantes. Vamos fazer uma conferência de imprensa na ante-estreia, com a presença das associações de imigrantes. Embora seja um filme conceptual, por isso longe do documentário, os diálogos são próximos do realismo.
É claro que nos Lisboetas havia a ideia de mostrar o cosmopolitismo da cidade…
Era um fresco de coisas muito variadas, de uma transformação… Nos Lisboetas já existia a ideia de queda do El Dorado… Esse sonho de um país maravilha que não se concretiza. Agora isso já é assumido. Chega a ser cómico ouvir as declarações de alguns políticos, que falam como se Portugal pertencesse ao clube dos países desenvolvidos. O Viagem a Portugal é sintomático dessa vontade de pertença.
Há uma ironia no título. Quem não saiba pode pensar que este é um roteiro turístico pelo nosso país, ou talvez uma adaptação do livro do Saramago, mas afinal nem sequer saímos do aeroporto de Faro.
Tudo é possível. Foi por isso que achei graça que a Pilar del Rio estivesse presente na estreia. Quando foi a apresentação no São Jorge, pedia à Pilar que lesse um texto do Eduardo Galiano… e foi bonito.
É uma viagem em que não saímos do aeroporto, apesar de não levar a ideia ao limite, há uma cena na cidade…
Sim há uma cena noturna… mas isso é a fronteira entre a primeira e a segunda parte. Porque é mesmo um filme claustrofóbico… O primeiro projeto escrito, apresentado ao ICA, que foi rodado durante algumas semanas, era muito maior: o equivalente ao que ficou, mais a expulsão, a chegada a Moscovo, a saída para a Ucrânia, onde passava três semanas em depressão, traumática, com o marido a telefonar-lhe… na verdade, a Tânia depois conseguiu voltar e hoje vive em Lisboa. A economia é que domina isto: se há trabalho as pessoas ficam, senão vão-se embora, foi o que aconteceu com os 300 mil ucranianos que havia em Portugal, agora restam 70. Quando a pessoa paga um bilhete de avião e tem um visto não adianta fazer aquilo. E há histórias terríveis. São muitas as ucranianas barradas e inspecionadas nos aeroportos de todo o mundo só por serem vistosas.
Há uma aleatoriedade? Quis mostrar isso?
Passa muito pela boa vontade dos polícias. Num avião de 200 pessoas, eles escolhem uma. A aleatoriedade é enorme.
Mas, ao mesmo tempo, a personagem da inspetora, interpretada por Isabel Ruth, não é uma besta sem sentimentos, tem sempre uma posição ambivalente…
Isso é mesmo como vemos o país. As pessoas que tentam ajudar, mas só atrapalham. Mas gostaria que se compreendesse o filme como uma máquina. Há dez pessoas por dia a quem acontece isto. Há situações caricaturais. A história da seringa, por exemplo, é real: ela tinha de tomar um remédio que estava num frasquinho com letras em russo, e não a deixavam. Não é um caso dos mais complicados, há pessoas com menos instrução, para quem o custo da viagem pode ser ainda superior.
Não terá sido por acaso que escolhe Maria de Medeiros para fazer de ucraniana. Foi para facilitar a nossa identificação com a vítima?
Não, juro que não foi nada disso. Não acho que as pessoas se sentissem menos identificadas se fosse uma ucraniana maravilhosa e angélica. Trabalhar com a Maria era um desafio importante, até para desfazer o preconceito que existe. Ela tem uma força brutal que por vezes é desconhecida no nosso país. E tem a capacidade de se colocar na pele de uma ucraniana, e de ser uma resistente. Quis que ela tivesse a dimensão de uma imperatriz no calaboiço que é imperatriz até ao fim. O filme também tem uma valência plástica em que as caras e os olhos das pessoas são muito importantes. Tinha trabalhado com uma excelente atriz, mas que não tinha esse impacto imediato que a Maria tem numa fotografia. E a Isabel Ruth a mesma coisa, o que provoca um duelo fotográfico.
Porquê o branco como fundo? Dá mais força à ideia de não lugar?
O branco vem das fotografias do Avedon. Ele a isolar personagens sobre o fundo branco faz com que nos concentremos na interioridade e nos olhares das pessoas. O ponto de partida do filme foi fotográfico. Queria que tudo fosse branco e simples, a mesa e a cadeira do Ikea… Depois também há o divertimento do desafio, de fazer o máximo possível com muito pouco. As pessoas podem pensar que a questão dos separadores foi um recurso . Mas está tudo escrito no guião.
Porque repete os diálogos?
Tem a ver com a distanciação brechtiana, de não estar apenas envolvido… senão transformar-se-ia apenas num melodrama… E também a pintura… às vezes gosto mais dos esquissos do que das obras acabadas. Às vezes tenho mais prazer a ver um ensaio do que o espetáculo completo.
Os portugueses estão habituados a ser aquela ucraniana… O filme poderia ser feito com um português, no aeroporto de Newark?
Sem dúvida. Conheço histórias dessas. A Isabel Branco chegou a estar presa durante uma noite num aeroporto norte-americano, algemada à cama. A realidade é sempre pior do que a ficção. Não é por acaso que nunca me deixaram filmar na zona de fronteira nos aeroportos. A forma como está filmada a devasse da mala é muito mais leve do que o que costuma acontecer. Lembro-me uma vez em Israel que me fizeram isso com uma violência terrível.
Então, poderia ter imitado mais a realidade. Porque não o fez? Não funciona?
Já aqui as pessoas pensam que eu exagerei… Nos Lisboetas também falavam do lado negativo e não havia lado negativo nenhum. Falava de pessoas com trabalho… Não falei nem das máfias, nem das prostitutas…
Há uma sensação de injustiça nesta história, até porque ela tinha dinheiro e o marido em Portugal. Mas imagina que haja outra histórias com maior justificação legal?
Essa injustiça é justificada… A polícia até tem as suas razões. A polícia suspeita que não é turismo, e tem tanta razão que aquele casal até vive aqui hoje. Mas o que ponho em causa é o sistema aleatório… As pessoas nem preparação têm. Que possibilidade de comunicação há quando não falam a mesma língua? Não acredito que este seja o sistema que permite que a economia funcione.
Defende a abertura total das portas aos emigrantes?
Defendo sistemas de desenvolvimento que possa integrar as pessoas. Não acredito que o sistema seja justo. Todas as pessoas tinham visto e tinham pago bilhete. Queria que este filme ajudasse a conhecer estas histórias e a pensar sobre o assunto. Já recebi e-mails de pessoas que me dizem ter vivido histórias daquelas e piores.
Esta história não poderia ser contada num documentário?
Só enquanto memória. Acharia genial se pudesse filmar durante dois meses interrogatórios policiais, por mais que eles tenham instruções para serem bem comportados, em dois ou três meses podemos tirar o que está por trás. Nos Lisboetas, foi duríssimo ter a autorização. Tive a oportunidade de verificar a diferença entre estar lá com uma câmara e sem câmara. Havia tantas coisas que seria interessante filmar, mas as instituições protegem-se muito.
Esta história pedia para ser contada desta forma? Foi por isso que fez uma ficção?
Foi-me contado como uma história, porque a Tânia contou-me dessa forma. Mas depois acabei por fazer uma ficção um pouco estranha, procurando não ser apenas um telefilme, mas algo mais provocador.
E a agora? Documentário ou ficção?
Tenho vários documentários em curso. Preciso não falar muito. Tenho uma ficção à espera de aprovação financeira. Não tem nada a ver com isto: é uma comédia com dúzias de personagens.