Conhecemos Steve McQueen quando o Festival de Cannes, e depois o mundo, ficou atordoado com o seu filme de estreia. O artista multifacetado servira-se da greve de fome do membro do IRA Bobby Sands contra o governo de Margareth Tatcher, e do seu sofrimento na cadeia para alcançar uma forma de liberdade. Michael Fassbender usou igualmente o seu corpo escanzelado nessa extensão conceptual. Reencontrámos Steve (e Michael Fassbender) em Veneza, após recebermos um novo choque com Vergonha. Uma vez mais, a exposição física oculta um outro sentimento mais profundo. Uma vez mais Fassbender excede-se, com uma interpretação que foi a melhor, masculina, do ano que passou. E nem nomeado para os Oscars foi. Percebe-se que a deriva de um homem viciado em sexo não fosse possivelmente o melhor serão para os membros mais idosos da Academia visionarem os DVD dos candidatos. Pelo menos em família… Não faz mal, Vergonha não tem vergonha de ser assim. Já agora, lamentamos igualmente que a prestação, ainda que breve, de Carey Mulligan, naquele momento cândido em que sussurra o tema integral de New York, New York num clube noturno e nos faz chorar. Precioso. Mas vamos a Steve, Steve McQueen. Este, e não o outro.
JL – Acha que poderia ter feito este filme com um outro ator que não o Michael Fassbender?
Steve McQueen – Não conheço assim tantos atores… Para fazer esta viagem é necessário conhecer muito bem o ator. E eu e o Michael conhecemo-nos muito bem. Temos uma paixão mútua…(risos). Até por vimos do mesmo lugar – ninguém estava interessado em nós. Acho que só ele poderia ter feito este papel.
Em 2008, em Cannes, toda gente ficou surpreendia com a chegada de um novo realizador e ator. Para si, também foi uma surpresa aquela aclamação?
Fiquei muito surpreendido porque viemos sem qualquer expectativa e ganhamos já mais de 50 prémios. E foi até por esse filme que muita gente arranjou um emprego na Irlanda. Eu fico até mais orgulhoso por isso.
Sentiu que após Fome tinha ainda algo mais para falar sobre esta outra forma de prisão pessoal? Era para si uma viagem inacabada?
Fome foi o fim de uma história. Agora virei Belfast ao contrario. Como um objeto. Qual seria oposto de uma prisão em Belfast? Pois bem, Nova Iorque! Uma Metrópolis com acesso a tudo. Seguramente, o oposto a uma cela fria e cinzenta na Irlanda do Norte. E colocar Brandon nesse ambiente foi muito importante e interessante para mim. É claro que ele tem uma dependência de sexo. Mas não quer ter qualquer contacto humano. Tudo gira em seu redor. Ao contrario de Bobby Sands, em que era tudo sobre as pessoas. Nesse sentido, acho que são ambos anti-heróis.
Apesar de opostos, são filmes com uma certa proximidade.
Sim. De um lado Bobby Sands usando seu corpo como uma arma, uma ferramenta, uma forma de libertação. E é na sua prisão que ele cria essa liberdade, deixando de comer. Agora temos Brandon, cujo excesso de liberdade acaba por o encarcerar nele próprio.
Até que ponto esta era uma história importante para si?
Era muito importante. Porque é algo que se passa agora. Há uma certa urgência. Se o cinema quer sobreviver tem de ter alguma urgência nas suas histórias. Hoje temos a televisão, a HBO, a AMC, mas o cinema também poder ser global.
É interessante a ligação que faz entre Johann Sebastian Bach e Nova Iorque. Mas também toda a sua escolha musical. Quer falar um pouco disso?
A música do Bach é muito matemática, e o Brandon é metódico. Também gosto da ideia do ritual, de todas as coisas banais que fazemos quando nos levantamos. Seguir uma pessoa com uma câmara a fazer isso é quase como tai-chi. E no bar ouvimos Tom-Tom Club e Blondie. Hoje ninguém ouve isso. Hoje ouve-se a Adele. Gostei desse sabor. Não podemos usar a música como de fosse um filme de época.
É verdade que a Carey Mulligan quase se lhe impôs para fazer este filme?
Sim, ela tinha uma cópia do guião quando nos encontramos. Falamos um pouco e dei-lhe o papel. Na hora.
A versão integral de New York, New York, que interpreta com rara beleza, é um dos melhores momentos do filme…
Eu queria que ela cantasse um tema, um standard. Mas o New York, New York não é um standard, é de 1980, escrito para o filme do Martin Scorsese. Mas ela canta-o de uma forma em que tomamos mais atenção à letra. These vagabond shoes, are melting away… Fala de alguém destituído. Para mim, é um blues. Se fosse cantado pela Bessie Smith ficaria muito melhor. Acho que é isso que o jazz faz desde o início.
É também um forte e comovente momento de comunicação com o irmão, Brandon.
Essa música resume tudo aquilo que é o Brandon. Cantar-lhe esse tema, é a melhor conversa que tem com ele. É um momento bonito, em que temos tudo. Se as pessoas não perceberem, dou-lhes o dinheiro de volta.
Como planificou as cenas de sexo? Quais foram os seus limites?
Os limites eram, obviamente, a penetração. Não estava interessado em fazer um filme porno, queria transcender o lado porno. O que eu queria era que a câmara estivesse dentro da ação. Queria que o publico estivesse ali também e se sentisse perturbado. Tivemos excelentes atrizes e o Michael.
Porquê as sequências tão longas?
As cenas de sexo têm de ser sexy. Não é só fornicar. Temos de ver a possibilidade e o falhanço. E vemo-lo falhar.
Se calhar porque hoje o sexo inunda o nosso mundo…
Mas ‘no meu tempo’ não era assim. As revistas pornográficas estavam sempre na prateleira de cima. E só em certas lojas. Esse era o nosso ponto de vista sobre o sexo. A uma distância considerável, pois ninguém ousava comprá-las. Hoje essa vergonha está erradicada. Em dois cliques temos tudo.
Acha que Vergonha é um filme moral?
… Deixe-me ver. É uma boa pergunta. Acho que é um filme moral. É tudo moral, mas fazemos o que queremos. Ou talvez seja mais um filme reflexivo.
O Michael Fassbender descreveu-nos o filme como um homem doente que procura uma penitência. Concorda?
Acho que muitas pessoas estão desesperadas, porque apenas querem sentir. Ele está dormente. E não sabe como sair desse estado de letargia.
Mas ao fazer um filme sobre letargia e desconexão, como evitou não o tornar também maçador?
As melhores musicas são blues. Pelo menos para mim. São tristes. They hurt so good. É a única forma de responder a essa pergunta.
Qual é para si o verdadeiro significado da palavra vergonha?
Foi algo que discuti com a Abi Morgan, a argumentista. Na nossa investigação, os tipos que fazem estas escapadas sexuais, quando terminam sentem essa onda de vergonha. Que regressa sempre. E o que fazem então para a superar? Fazem-no de novo. É um pouco como a adição a alcool ou tabaco. Mas quando encarei pela primeira vez a ideia de um viciado em sexo, ri-me com isso. Só que quando o Brandon sente que tem de ter sexo a toda a hora, já não dá vontade de rir. É um problema.
De que forma, o seu passado na arte o acabou por ajudar a fazer cinema?
Ajudou-me com a imagem, a composição. O que eu quero com este filme é que as pessoas olhem e vejam. Por vezes as pessoas olham, mas não veem
Poderemos dizer que o seu cinema vai um pouco para além do cinema e entra no domínio da arte conceptual?
Não me interessa tanto o conceito. É limitador. Acaba por ser uma coincidência que tenha filmes apenas com uma única palavra, Fome e Vergonha. Não sei, espero que não seja visto assim. Apenas quero ser livre para experimentar coisas diferentes. O próximo filme poderá não ser bom, mas quero experimentar algo diferente.
Depois de fazer um filme na Irlanda do Norte e outro em Nova Iorque fará agora um terceiro na Grã-Bretanha?
Vou fazer, em 2013, um filme na América. Chama-se Twelve Years as a Slave, sobre um nova-iorquino que é raptado e vendido como escravo, em 1835.