(NOTA: entrevista publicada na VISÃO nº 975, de 10 de novembro de )2011
As vozes que ouvimos no seu último disco, Cantos da Babilónia, foram registadas em paragens bem longínquas, sobretudo na Ásia e em África. Não deixa de ser irónico que o autor do disco, Pedro Osório, 72 anos, o tenha composto e gravado fechado num pequeno estúdio, de porta azul em paredes brancas, ao fundo do terraço da sua casa, em Santo Amaro de Oeiras.
Muitos de nós associamos o seu nome a uma voz off que, no tempo em que os Festivais da Canção marcavam a agenda mediática do País, anunciava os arranjos das canções concorrentes. Em on ele diz-nos que onde se sente realmente bem é, precisamente, a fazer música no seu canto: “Chego ao estúdio, ligo os zingarelhos todos e… fico feliz.”
Este Cantos da Babilónia é um projeto antigo que agora toma forma?
É uma ideia que andava a germinar há muito tempo, sim. Sobre a qual comecei a tomar apontamentos e a fazer uns rascunhos há uns três anos. Só que eu estava na administração da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), tinha muito pouco tempo para a música… Não consigo trabalhar em música aos arranques, isto tem de ser pegar de manhã e continuar por ali fora, o dia todo.
Então, nesses anos em que esteve na SPA, a música deve ter-lhe feito falta…
Muita, fez-me muita falta. Em janeiro deste ano, larguei a SPA e pensei “é agora”. Meti-me no estúdio, passei dias em pijama e foram uns quatro meses e tal até ficar pronto este disco. Eu tinha muitos apontamentos, mas eram pontas soltas, coisas de dez a 30 segundos, coisas para deitar fora… Tive de decidir qual era a forma que o disco iria tomar. Sabia que seria baseado em cantos tradicionais, tinha a maior parte desses cantos já selecionados, mas não sabia ainda a forma. Decidi que seria um disco com peças fundamentalmente para piano, com mais algumas coisas que fossem necessárias, e sempre baseadas nos cantos. Estava com tantas saudades da música que aquilo saiu mais rápido que habitualmente. Por norma, eu trabalho devagar. O meu método é fazer, gravar, maquetar, pôr de molho durante uma semana e, depois, voltar a ouvir e pensar “isto é uma bodega, é para deitar fora” ou “isto vale a pena mas é para ir corrigindo”. Desta vez, foi mais rápido porque já estava muita coisa cá dentro. Foi um prazer muito grande voltar à minha vida de músico a tempo inteiro. Estive sete anos na administração da SPA…
É um disco com uma ambição muito universalista, a começar pelo nome. Como fez a seleção das vozes aqui presentes? Teve a ver com afinidades geográficas suas?
Eu tenho muito material étnico em casa. Vou comprando, coleciono desde há muitos anos… E tenho uma predileção particular pela música asiática e africana. A africana porque é a mãe da música e a asiática porque a abordagem musical é completamente diferente da nossa. Tirando duas faixas construídas a partir de cantos europeus uma baseada numa canção tradicional da Beira Baixa e outra numa canção da Andaluzia; não numa canção, nuns gargarejos da Andaluzia que eu apanhei, no meio de um disco estranhíssimo…, tudo o resto é Ásia e África. A Babilónia do título tem a ver com os cantos que uso, em diversas línguas, línguas que não entendo, línguas que não se entendem umas às outras… Fez-me pensar na Torre de Babel.
Há um etnólogo, um Giacometti, dentro de si? Gostava de ter feito, pessoalmente, a recolha destas formas de cantar? O seu entusiasmo nunca o levou para aí?
Não, o meu entusiasmo levou-me só a comprar as recolhas feitas por outros [risos]. Não tenho muito feitio para isso… Há quem faça isso muito bem e, depois, esse trabalho fica disponível; há discos à venda, com direitos que, por cá, se pagam muito caro… Eu vou colecionando, e vou escolhendo.
A questão das línguas é curiosa, porque todas as vozes surgem aqui como um instrumento, um elemento musical. O conteúdo, o que elas dizem, é secundário…
Estas vozes, por vezes, até devem estar a dizer coisas que não fazem sentido nenhum. Porque muitas daquelas frases são trabalhadas e foram recortadas, um pedaço aqui, outro pedaço ali…
Não se sentiu a desrespeitar a lírica aí potencialmente presente?
Não, de modo nenhum. Há uma tailandesa que canta quase durante cinco minutos e eu uso só 25 segundos, recortando uns bocados para construir determinada melodia…No meu disco, ela estará a dizer um disparate, uma frase sem sentido…
O que lhe interessa aqui é apenas o lado musical e emocional das vozes, é isso?
Sim. A própria maneira de abordar o canto, principalmente na Ásia, é muito variada. As formas como se canta no Vietname, na China ou na Tailândia são completamente diferentes…Uma das músicas é baseada num canto japonês. É um homem, embora possa parecer uma mulher, e tem uma voz estranhíssima aos nossos ouvidos, são precisos anos de prática, certamente, para conseguir tirar aquela sonoridade da voz… Os sons guturais, os gargarejos, digamos assim, que se conseguem tirar da voz são fantásticos. Tudo isso nos traz novidade… Este é um disco para ser ouvido algumas vezes, porque sinto que há músicas que, às primeiras audições, podem causar alguma estranheza, uma certa rejeição, até… Encontramos, por exemplo, aquelas vozes chinesas, muito gritadas, muito agudas e estridentes… É uma questão de ouvir até conseguir respirar juntamente com… Entender. Na minha opinião, a música entende-se não estudando mas ouvindo. É a partir de uma relação de intimidade que nós passamos a entender as músicas.
É a sua primeira incursão por este universo das músicas do mundo, étnicas?
Não. Há uns anos, num espetáculo com a Rita Guerra e o Paulo de Carvalho, chamado Da Gama, que foi editado num disco que não vendeu nada, usava também cantos tradicionais, em palco, com músicos de jazz e vozes que saíam do computador e funcionavam como leitmotiv.
Há aqui um lado de manipulação técnica muito importante. A ideia de sampler, que, há uns anos, ainda era um bocado estranha, está muito presente neste disco?
Claro. Aqui fui buscar os temas ao material que tinha, transformando-os em motivos para serem desenvolvidos em cada uma das peças. Há umas décadas, não seria só mais difícil, em certa medida era mesmo impossível… Pode haver fragmentos em que as vozes desafinam ao cantar, e hoje afina-se em meio segundo, um clic e está afinado. Posso mesmo mudar uma nota. Sem alterar o caráter essencial da música, se quiser puxar uma nota mais para cima é muito fácil fazê-lo…
Quando começou a fazer música isso era ficção científica… Fascina-o esta evolução tecnológica? Adaptou-se bem?
Sempre fui um maníaco da tecnologia. Desde o ZX Spectrum… Mas esse para a música não dava.
Se trabalhasse numa grande loja de discos em que prateleira arrumava este Cantos da Babilónia?
Na de world music. Acho que é lá o seu lugar, pela origem das vozes e por toda a ambiência do disco.
Há uma geração, ou mesmo várias, que continua a associar o seu nome aos arranjos de muitas canções do Festival da Canção, ao longo dos anos, quando o festival era um acontecimento… Quais as melhores e mais compensadoras memórias da sua vida profissional?
Posso falar das coisas que fiz e que mais prazer me deram… Passei uns anos a produzir música para os espetáculos do Casino do Estoril, o que me deu um grande prazer. Talvez uma das minhas obras primas – quando digo “obra-prima” é uma coisa muito relativa, relativa a mim… – seja a música que fiz para um desses espetáculos, Tempo. É daquelas coisas que, de vez em quando, ainda vou ouvir e penso “sim senhor, valeu a pena, ficou bem feito”. Gostava muito de escrever mais música para cinema, mas, infelizmente, as condições hoje são complicadas, mesmo economicamente…
Nessas suas recordações põe mais a tónica no lado do compositor, do trabalho mais solitário de composição…
Eu sou fundamentalmente um compositor. Para ser maestro tinha de ter uma orquestra e eu não tenho orquestra…Tenho memórias de palco, claro, mas o lado da composição é muito mais forte. A música que fiz para O Processo dos Távoras, uma série muito bem feita, é uma coisa que me satisfaz. Como se costuma dizer, ouço aquilo e não me envergonho…
Tenho recordações fantásticas, por exemplo, do espetáculo que fiz com o Paulo de Carvalho, o Carlos Mendes e o Fernando Tordo, o Só Nós Três… Foi uma grande curtição, um trabalho completamente mergulhado em prazer.
Tem a ver, também, com cumplicidades e amizades, já não estamos só a falar de música…
Pois. Mas saiu bem, saiu bem… Como outro espetáculo que depois fiz com as meninas, a Lena d’Água, a Rita Guerra e a Helena Vieira, As Canções do Século, e também me deu muito gozo. Um espetáculo daqueles não se faz sem trabalharmos sete ou oito meses, muitas horas, ali metidos no meu estúdio. Depois, andámos seis anos na estrada, foi muito agradável.
Mas onde se sente mais confortável, já percebi, é ali no seu estúdio, a trabalhar…
Sim, sim. Chego ao estúdio, ligo os zingarelhos todos e… fico feliz. Esqueço-me de almoçar, de lanchar, das horas…
É mais diurno ou noturno a trabalhar?
Diurno. Trabalhei à noite durante muitos anos, e fartei-me…
Aquelas primeiras aventuras na música, as bandas pop em que participou, não lhe trazem também boas recordações, de uma certa idade da inocência?
Não, musicalmente não… Andava a tentar descobrir como é que se fazia, e os resultados finais não me enchiam propriamente de prazer. Foi uma época muito divertida, isso é verdade. Toquei no Quinteto Académico, e divertíamo-nos muito, depois toquei num trio, fiz um quinteto de música soul, e por aí fora, mas… Divertia-me, sim senhor. Aliás, eu acho que tive uma vida privilegiada, porque a passei a fazer aquilo de que mais gosto, e ainda por cima sendo pago para isso. Tive uma vida muito divertida e muito agradável, apesar dos maus momentos que houve. O mercado musical, em Portugal, é muito instável. Foi particularmente instável desde os anos 70 até à entrada do século XXI. Na música, fiz tudo, até cantei num Festival da Canção, misturado com outros, o Carlos Alberto Moniz e o Samuel, no grupo SARL, Sociedade Artística Recreativa Lusitana.
Em que lugar ficou?
Ficámos em segundo.
O maestro é do Porto mas já perdeu completamente o sotaque… Ou nunca teve?
Tinha, tinha muito sotaque… Fizeram-me uma lavagem ao cérebro, aqui em Lisboa. Mas ainda digo “cruzeta” em vez de “cabide” e “aloquete” em vez de “cadeado”. Sou completamente do Porto. Vim para Lisboa em 1968, porque, nessa altura, quem quisesse ser músico tinha que vir para Lisboa, não havia outra hipótese. Mesmo hoje, para se ser músico na área da música ligeira, no Porto, ainda se enfrentam bastantes dificuldades. Não tenho casa no Porto, mas tenho lá a minha família toda. Tenho muitas casas no Porto.