A História passa e há mundos que ficam esquecidos, como se fossem tabus de um país que já não de reconhecesse e como se as marcas não estivessem lá. Ivo Ferreira vai à procura das pontas soltas, dos caminhos transversos, da História mal contada de que ninguém se quer lembrar. Pedro (Gonçalo Waddington), a personagem principal, representa-a exceção num país, e numa geração, que pouco se inquieta com o resgate do passado, com as feridas mal saradas, apesar da fama de saudosista. Num ato de coragem, ele recusa-se a aceitar o silêncio, um silêncio conspirativo, e faz-se à estrada, num on-the-road em marcha atrás, porventura para apanhar balanço para o seu próprio futuro. Tudo se passa na atualidade, mas o que o filme busca é a recente e esquecida História de Portugal, não da revolução de 25 de Abril que pôs fim à tirania de quase meio-século, mas dos anos que se seguiram, em que a desilusão com o rumo dos acontecimentos, distante do ideário revolucionários que muitos apregoavam, levou alguns elementos a optar pela luta armada, criando grupos radicais, como as FP 25 de Abril. Foram períodos conturbados que hoje talvez pareçam demasiado distantes, mas tal como a brutalidade da Guerra Colonial (as cartas de Lobo Antunes é o próximo projeto de Ivo ferreira) ou os presos políticos (brilhante o 48 de Susana Sousa Dias), é um período que a sociedade não se deve esquecer. Tal como as pessoas, as sociedades saudáveis têm de viver bem com o seu passado. O lento levantar do pano por Pedro não é feito pelo lado moralista, apesar de existir inevitavelmente um choque com os acontecimentos revelados. Mas tão revoltante como os crimes e acidentes é a própria insistência no segredo. Pedro viaja numa caravana de Lisboa para Mérida, uma paisagem seca e desértica, onde o passado se enche de decadência num mundo de faz de conta. Que é literalmente o cenário que ele encontra: um western desenquadrado no tempo e no espaço, com balas a fingir, que na realidade é um parque de entretenimento perto daquela cidade espanhola, onde descobre um velho companheiro do pai a trabalhar. Pedro viaja sozinho. Mas há duas outras viagens em simultâneo, perseguições emocionais. Os caminhos que obviamente se cruzam: a namorada grávida, a avó, a mãe… As perguntas ficam sem resposta. Porque é difícil entender os excessos ideológicos numa época taciturna e cheia de desilusões. Na nossa civilização, matar por ideais parece ainda mais intangível do que matar por amor. O filme de Ivo Ferreira, que já tinha realizador de obras como Em Volta e Vai com o Vento, apesar de apresentar algumas fragilidades, tem sem dúvida o mérito de partir à procura de um país, sem medo de quebrar tabus. É bom que se conte esta História Águas Mil, de Ivo M. Ferreira, com Gonçalo Waddington, Joana Seixas, Adelaide João, Lídia Franco, Cândido Ferreira, 90 min
ÁGUAS MIL:entre as pingas da História
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Um filme que resgata questões mal resolvidas e histórias mal contadas da História recente de Portugal