Tem mais ou menos o efeito Polaroid mas aplicado ao som. Se se abanar e aguardar um bocadinho, um lento fade in auditivo vai-se fazendo ouvir, gradualmente, até a mudez se tornar sussurro e os murmúrios se tornarem vozes e os rumores palavras, cada vez mais nítidas e claras. Foi mais ou menos isto que a realizadora Susana de Sousa Dias fez no documentário 48 (estreia-se hoje, dia 21), com as fotos de cadastro de 16 resistentes (na sua maioria do PCP), presos e torturados, durante quase meio século de fascismo em Portugal. Em 2000, Susana “caiu” nos arquivos da Pide para fazer Enfermeiras do Estado Novo e Natureza Morta (2005). Nunca mais de lá saiu. Nem quer sair tão cedo. Quando abriu os dossiers eram centenas e centenas de rostos, alguns deles muito jovens, de olhar frontal, a três quartos e de perfil. “Era um mundo fantasmático”, depressa se apercebeu. Quis descobrir o que havia por detrás daqueles olhares, o que eles revelam, e escondem, o que não é aparente nem descortinado à primeira vista.
Todo o filme, 93 minutos, é construído através da montagem das diversas filmagens das fotos de cadastro, acompanhadas de depoimentos dos protagonistas na actualidade, que nunca aparecem, apenas se lhes escuta as vozes, as palavras, as lembranças e sobretudo os silêncios, as pausas, aquelas pequenas reticências que chegam antes de uma recordação difícil. Aparentemente, só aparentemente, o filme é a negação do cinema. A imagem parece estática mas há pequenos movimentos de câmara, quase imperceptíveis, numa slow motion calculada, para manter a atenção do espectador e criar um efeito quase hipnótico. Primeiro aquelas imagens que surgem do escuro. E antes da voz, o som do silêncio (o paradoxo é possível) que começam a formar o espaço cinematográfico. Os pequenos rumores da presença física, de quem está do outro lado e observa aquelas fotos e tem de se confrontar com experiências dolorosas e traumáticas, um inspirar mais profundo, um “ai”, um choro suprimido, um suspiro, um esfregar de olhos ou de testa que se adivinha… As imagens não competem com o som, antes se irmanam e fundem numa sintonia desconcertante. E as histórias que vão surgindo, ora de jorro, ora a conta gotas, e cada palavra ganham uma dimensão avassaladora. Como se atrás dela se perpetuasse um eco.
O “nojo e a revolta” que uma das torturadas sentia pelos algozes da PIDE. A camisa que daí a nada se encheria de sangue. O “casaquinho branco” com que mulheres eram forçadas a limpar as próprias necessidades e a menstruação que escorria para o chão, perante o gáudio dos agentes: “Pareço um cão à beira da estrada morto e a cheirar mal”. A voz de Dias Lourenço, entretanto falecido, (18 anos de prisão) que nas suas fotos de cadastro “usava” sempre uma expressão desafiadora: “A mim não tinham a alegria de me ver com cara de torturado”. E a idade a avançar nos rostos e nas rugas dos resistentes. Com mais de uma semana de tortura do sono em cima (“a tortura do sono é a morte lenta”), com mais uma dezena de anos de clausura, mais cabelos brancos nas mulheres, mais entradas nas cabeças dos homens… Por vezes um riso inusitado, a intromissão do absurdo, como a história do preso que foi levado de eléctrico e ainda queriam que pagasse o bilhete…
Mas depressa se regressa ao horror da tortura, dos choques eléctricos, da estátua, do medo de falar e comprometer camaradas, da pancada, do sono, do desejo da morte. “Como é possível estar 18 dias sem dormir e o coração não parar?”. Quando a morte deixa de ser medo, e se torna desejo. O choro de uma mãe a quem ameaçam matar o bebé. O relato de um pai a quem a filha pequena estranha quando o vê “inteiro” numa visita presencial: “Pensava que eu não tinha pernas”, sempre o vira a meio corpo, no parlatório. As alucinações da privação do sono, os pêlos azuis que cobriam os corpo, as “rendas lindas” que cobriam as paredes de cima abaixo, os pássaros pretos que saltavam no chão de madeira. E as descrições tremendas dos presos moçambicanos (que nem tinham direito a foto) que recordam os gritos lancinantes, e o som do chicote na carne, “o cavalo marinho suporta-se, mas os cabos de aço levam a pele agarrada”. E a morte, sempre atenta. “Mas ela nunca vem quando mais se deseja”. E para muitos a única corda de liberdade a que se podiam agarrar, na voz de Domingos Abrantes: “Nós tínhamos um poder único, que era o de não falar”.